Manaus (AM) – Dois trechos dos 180 quilômetros da rodovia federal BR-317, que liga Rio Branco, no Acre, a Boca do Acre, no sul do Amazonas, permanecem sem asfalto, enquanto aguardam a aprovação dos estudos de impactos sobre populações indígenas da etnia Apurinã. No total, são 34,5 quilômetros dentro do estado do Amazonas, que permanecem sem o licenciamento ambiental e, portanto, não podem ser asfaltados.
O asfaltamento da rodovia da BR-317, que começou a ser aberta nos anos 1950 pelo governo federal, pode aumentar os desmatamentos e os conflitos fundiários na região do Purus, uma das mais protegidas do Sul do Amazonas. É o que dizem lideranças indígenas e extrativistas que participaram do Seminário de Licenciamento e Grandes Obras no Sul do Amazonas, realizado pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), entre os dias 10 e 12 de julho, em Manaus.
“Muitas vezes, as pessoas não acreditam no grande impacto que foi causado pela BR”, lamenta Geraldo Amazonas, liderança, da Terra Indígena Apurinã Km 124, cortada pela rodovia. De acordo com o indígena, um dos impactos mais sentidos pelas comunidades é contaminação e diminuição das fontes de água potável.
A Terra Indígena Apurinã Km 124 tem de 42.198 hectares, onde vivem 209 pessoas, segundo informações do Instituto Socioambiental. Um trecho da rodovia de 18 quilômetros corta a área. A BR-317 atravessa também 16,5 quilômetros a Terra Indígena Boca do Acre, com 26.240 hectares e onde vivem 248 pessoas, segundo dados do ISA.
Embora não seja cortada pela rodovia, a Terra indígena Camicuã, com 58.519 hectares e população de 454 pessoas, está na Área de Influência Indireta da BR-317, pois seus limites estão a menos de 25 quilômetros da rodovia.
“Há 30 anos, onde você chegava naquele trecho das duas Terras Indígenas, você encontrava mina d´água”, lembra Geraldo Amazonas. “Com a pavimentação quase concluída, estamos com dois caminhões da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) para fazer o abastecimento, porque não tem mais mina naquela região. E as águas que temos hoje estão contaminadas, porque nossos igarapés são dentro das fazendas, que usam veneno para zelar do pasto”, completa a liderança.
Nova versão do PBAI
O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) apresentou no mês de julho uma nova versão do Plano Básico Ambiental do Componente Indígena (PBAI) da rodovia, que ainda falta o processo de licenciamento. É a quarta versão do documento, que ainda precisa ser aprovado pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
O Plano Básico Ambiental Indígena (PBAI) é uma exigência da Funai no qual o empreendimento, no caso o Dnit, apresenta os programas de compensação e de mitigação causados às populações indígenas. O PBAI deve apresentar programas específicos para cada impacto ambiental.
A BR-317 começou a ser construída sobre um antigo caminho de seringueiros em 1956, mas só no ano 2000 ela começou a ser pavimentada. O asfaltamento foi abandonado dois anos, depois devido à falta de recursos, e retomado após alguns anos.
A obra integra o projeto de construção da Estrada do Pacífico, que vai ligar o Brasil a portos do Peru. Mas também vista como um vetor de desmatamento.
Boca do Acre, que já perdeu 11% de sua cobertura florestal original, é o segundo município mais desmatado no Amazonas. Em 2017, foram derrubados 9.120 hectares de florestas em Boca do Acre, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A obra começa na fronteira do Acre com o Peru e segue em direção nordeste, cruzando com a BR-364, entre Porto Velho (RO) e Rio Branco (AC). Ela atravessa a divisa com o Amazonas e chega a Boca do Acre (AM). Já está asfaltada em quase toda a sua extensão, exceto os dois trechos que cortam as Terras Indígenas do Amazonas. O mapa de rodovias planejadas indica planos de que ela seja estendida no futuro até Lábrea, onde encontraria a BR-230, a Transamazônica.
Impactos socioambientais da rodovia
A BR-317 foi um dos temas em discussão durante o Seminário de Licenciamento e Grandes Obras no Sul do Amazonas, que aconteceu em Manaus, entre os dias 10 e 12 de julho.
Realizado pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), o evento reuniu lideranças indígenas e de populações extrativistas com gestores da Funai e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) de municípios do sul do Amazonas, Acre e Rondônia.
Durante o Seminário, as lideranças conheceram um pouco mais sobre aspectos legais relativos ao licenciamento e como andam esses processos, além de demonstrar suas preocupações e impactos que vêm sofrendo devido a grandes empreendimentos na região.
Além da BR-317, a região é afetada pela pavimentação da BR-319, que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM), por um porto graneleiro em Humaitá (AM), além das hidrelétricas do Rio Madeira e de Tabajara, que está sendo planejada para o Rio Ji-Paraná, em Rondônia.
O desmatamento ameaça até mesmo terras indígenas e unidades de conservação, terras protegidas por lei. A Reserva Extrativista Arapixi no Amazonas, que fica ao longo do Rio Purus, perto da divisa com o Acre, está fora da área de influência da BR-317, mas sofre impactos negativos devido a investimentos em infraestrutura.
O desmatamento e uso predatório dos recursos naturais que avança ao redor da cidade acreana de Sena Madureira chegam ao estado do Amazonas, afetando populações indígenas e trabalhadores extrativistas.
A secretária da Associação Mãe da Resex, Solange Gonçalves, teme o avanço da soja na região. Segundo ela, as terras no sul do Amazonas seriam adequadas para o cultivo.
“Na criação da Unidade de Conservação, em 2006, a gente já tinha o cuidado de proteger a floresta, mas o desmatamento era uma coisa pequena” recorda a dirigente da associação. “Hoje, não. Já está mesmo o deserto”, completa, destacando que a derrubada de floresta avança a partir do Acre e em um assentamento da Reforma Agrária, vizinho à Resex.
Falhas no licenciamento ambiental
O licenciamento ambiental para a pavimentação do trecho de 110 quilômetros, que vai da divisa dos estados do Acre e Amazonas, a partir do município de Boca do Acre (AM), deveria ser realizado pelo governo federal. Mas em 2009, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) transferiu a responsabilidade para o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), por meio de um convênio.
A obra já havia recebido a Licença Prévia, mas ainda precisava obter a Licença de Instalação e a Licença de Operação, última fase do processo. O Ipaam deveria garantir que exigências feitas pelo Ibama fossem cumpridas.
Porém, o Ministério Público Federal no Amazonas encontrou falhas no processo de licenciamento que havia ficado a cargo do Ipaam. Após avaliar que as condicionantes do licenciamento não estavam sendo cumpridas, a Procuradoria da República exigiu que o licenciamento fosse suspenso e retornasse à responsabilidade do Ibama.
O MPF impediu que a Licença de Instalação, que chegou a ser concedida mas venceu em 2012, fosse renovada, ao verificar que faltavam estudos de impactos sobre a população indígenas e de medidas para amenizar esses impactos. Só dois anos depois da licença estar vencida, o Dnit contratou uma empresa para elaboração dos estudos. Porém, o relatório final apresentado naquela ocasião foi reprovado pela Funai.
“Em 2014, a empresa fez o estudo sem a participação das comunidades e a gente não aceitou”, conta Geraldo Amazonas. “Depois, a gente fez um convênio com o Estado do Amazonas para ter recursos e fazer novos encaminhamentos, com a participação do governo e da sociedade. Levamos três anos para fazer os estudos e entregamos para o Dnit”, completa a liderança indígena.
O Ministério Público Federal chegou a abrir também um inquérito para investigar crime de responsabilidade depois que uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou indícios de irregularidades na obra. Instaurado em 2013, o inquérito foi arquivado em 2017, sem que fossem encontradas provas de crimes no processo.
Já no trecho entre Rio Branco, capital do Acre, e a divisa com o Amazonas, a pavimentação do trecho de 80 quilômetros foi concluída em 2008, após ter sido licenciada pelo Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac). Para manter essa parte da rodovia em boas condições de tráfego, foi aberta em julho deste ano uma licitação no valor de R$ 338 milhões. O processo de escolha para empresas trabalharem nos quatro trechos licitados ainda está em andamento.
Governo não ouviu os índios
Francisco Umanary, liderança da Terra Indígena Camicuã, fala de impactos ambientais e sociais. Ele conta que a abertura da estrada já havia facilitado o acesso de não-índios a região. Com o asfaltamento, os impactos negativos dela são mais intensos. “O governo não ouviu a gente antes de passar a BR”, protesta ele, que participou do Seminário de Licenciamento e Grandes Obras no Sul do Amazonas, em Manaus.
A Terra Indígena Camicuã, que foi homologada em 1989, sofre invasões de pescadores, caçadores e madeireiros. Ele teme que sem um bom planejamento e medidas para amenizar os danos provocados pela rodovia, esses problemas podem aumentar.
Geraldo Amazonas também demonstra preocupação com a criminalidade. Ele conta que em uma ação recente, os bandidos aproveitaram uma reunião de lideranças que roubaram seis casas, levando dinheiro, eletrodomésticos, equipamentos como motosserras e até armas dos índios. Com exceção do dinheiro, os bens levados foram recuperados após os bandidos serem presos em Acrelândia (AC).
“Eles diziam que o asfaltamento ia trazer desenvolvimento para Boca do Acre”, diz Geraldo Amazonas. “Tudo bem, está chegando o desenvolvimento, mas também a marginalidade”, lamenta ele.
FONTE: Amazônia Real
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