Criado em 2005, o PAE Lago Grande é um dos maiores assentamentos do Brasil, e fica numa região rica em sociobiodiversidade entre os rios Tapajós e Amazonas, no oeste do Pará

Muitas pessoas sentadas em um galpão aberto e um homem de pé, falando ao microfone.

A audiência pública reuniu representantes de 140 comunidades do assentamento. – Foto: Ascom/MPF/PA

Cerca de 500 representantes das 140 comunidades que integram um dos maiores assentamentos de reforma agrária do Brasil, o Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande, entre Santarém e Juruti, no oeste do Pará, se reuniram no último dia 14 de julho em uma audiência pública convocada pelo Ministério Público Federal (MPF). A audiência ocorreu na comunidade Muruí, dentro do assentamento, e deu espaço para os comunitários relatarem as crescentes pressões de grileiros, madeireiros, sojeiros, indústrias pesqueiras e da multinacional Alcoa, que extrai bauxita em áreas vizinhas à região.

Coordenada pela procuradora da República Luisa Astarita Sangoi e pela promotora de Justiça Ione Nakamura, a audiência teve a presença de representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), da Federação de Associações do Lago Grande (Feagle), que reúne 80 associações comunitárias, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STTR) de Santarém, da organização Terra de Direitos e da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase).

Antes da audiência, a equipe do MPF percorreu várias comunidades do Lago Grande, conversando com lideranças e recebendo denúncias dos moradores. “Nós vimos necessidades, encontramos pobreza, encontramos desmatamento, mas vimos muita floresta preservada, água limpa, comunidades unidas, manifestações culturais ricas. Vimos um povo que está unido e que tem a segurança de estar sobre a própria terra e vamos trabalhar para que as políticas públicas cheguem, as ameaças sejam afastadas e as comunidades possam viver bem”, disse a procuradora Luisa Sangoi durante o evento.

Criado em 2005, o PAE Lago Grande fica numa região rica em sociobiodiversidade entre os rios Tapajós e Amazonas, no oeste do Pará. Nele estão abrigadas cerca de 35 mil moradores no total. Treze anos depois da criação, os limites do assentamento estão indefinidos por falhas do Incra no levantamento fundiário da área. Por conta dessa indefinição, a maioria das comunidades até hoje não recebeu investimentos da política de reforma agrária e continua aguardando a emissão do Contrato de Direito Real de Uso (CDRU).

A demora na emissão do CDRU, ao lado da ausência das políticas públicas para o assentamento, deixa as famílias em situação de fragilidade frente ao assédio de grileiros e madeireiros ilegais. Para piorar, uma medida provisória do governo de Michel Temer, convertida na Lei 13.465 em julho do ano passado, enfraqueceu a reforma agrária e instituiu uma política de regularização fundiária que prioriza a entrega de títulos aos assentados. Pela regra anterior, o Incra só poderia emitir títulos aos assentados depois de comprovar a autossuficiência dos assentamentos, a fim de evitar que essas terras voltem logo ao mercado e gerem reconcentração fundiária.

Graças à nova lei, o Incra vem acelerando os processos de titulação e entregando títulos provisórios e definitivos em vários assentamentos no Pará, em lotes individuais, por meio de um instrumento chamado de Contrato de Concessão de Uso (CCU), um documento provisório e precário, que pode levar a venda de lotes que deveriam ser destinados à reforma agrária. Esses títulos têm sido entregues às famílias até mesmo em projetos de assentamento diferenciados, com previsão de titulação coletiva (por meio de um CDRU), como o PAE Lago Grande.

Na modalidade de assentamento do Lago Grande, agroextrativista e formado por comunidades tradicionais, o título coletivo protegeria contra a entrada de grileiros, mas a distribuição de CCUs já vinha sendo anunciada pelo Incra como meio para viabilizar a implementação das políticas de reforma agrária aos assentados. Segundo várias denúncias feitas durante a audiência pública, isso tem contribuído para aumentar os conflitos relacionados à venda ilegal de terras. Comunitários entregaram documentos ao MPF relatando a compra de lotes de reforma agrária dentro das comunidades por “laranjas” que representariam interesses de grileiros e madeireiros.

O Incra esclareceu durante a audiência que o CCU não gera uma propriedade privada, nem dá direito à venda do lote, mas, pelas denúncias, o mercado de terras está aceitando o documento, assim como aceita outros documentos questionáveis de posse – uma das principais bases para a grilagem de terras na região amazônica. O temor dos moradores e das autoridades que acompanham a questão é que o CCU pode causar um aquecimento do mercado para a grilagem, normalmente acompanhada de conflitos agrários graves e assassinatos por terra.

A Lei 13.465, que instituiu a nova política de regularização fundiária, foi questionada pelo MPF em uma ação direta de inconstitucionalidade que está aguardando julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). A ação do MPF foi antecedida do envio, por 61 entidades ligadas à defesa do meio ambiente e do direito à terra, de um documento denunciando os riscos da lei, sobretudo na região amazônica. O relator da ADI 5.771 é o ministro Luiz Fux. Ele negou o pedido de liminar que suspenderia a validade da lei. Com isso, o Incra vem emitindo CCUs em vários assentamentos.

Na ação, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu ao STF a suspensão imediata da lei, via liminar, pelos prejuízos que poderia causar. Isso porque a norma permite a privatização em massa de bens públicos, o que consolidará situações irreversíveis, como a elevação do número de mortes em razão de conflitos fundiários, o aumento da concentração fundiária e a concessão de anistia a grileiros e desmatadores. “A lei impugnada tem o efeito perverso de desconstruir todas as conquistas constitucionais, administrativas e populares voltadas à democratização do acesso à moradia e à terra e põe em risco a preservação do ambiente para as presentes e futuras gerações”, sustenta.

O título precário que pode favorecer a grilagem de terras públicas vem sendo entregue em várias regiões do Pará e, muitas vezes, com a presença de políticos. Em Santarém, o MPF pediu à Justiça Federal que afastasse o superintendente local do Incra, Mario Sérgio Costa, que vinha fazendo entregas de CCUs em verdadeiros comícios,com a presença do irmão, o deputado federal Wladimir Costa. A Justiça não afastou o superintendente, mas proibiu a presença do deputado em eventos do Incra.

Julianna Malerba, da Fase, ressaltou a importância da audiência pública como momento para diálogo sobre a política fundiária e agrária do Incra nos últimos dois anos. “O governo vem reduzindo os recursos para apoio dos assentamentos e priorizando a concessão de títulos individuais, o que viola o sentido da política de reforma agrária, enfraquece a permanência das pessoas na terra e prejudica sobretudo os assentamentos coletivos, que existem por uma reivindicação dos povos amazônicos”, disse. A promotora Ione Nakamura, que atua na região e é especializada em casos agrários há muitos anos, pediu aos moradores que sejam feitas as denúncias contra madeireiros e grileiros de forma oficial, tanto ao MPF quanto ao MP do Pará.

O morador da comunidade Curuai, Jorge Vasconcelos, resumiu a tensão no assentamento sobre a titulação individual: “O Incra propaga o CCU como uma solução. Mas nós queremos o CDRU, que é o que vai nos dar futuro para trabalhar na terra. Estamos pensando nos nossos filhos e netos. Eu nunca vi individualizar para fortalecer, que eu saiba o que fortalece é a união”. Pedro Martins, representante da Terra de Direitos na audiência pública, lembrou que a região do Lago Grande é reconhecida como área de comunidades tradicionais e que, portanto, está protegida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê, entre outros instrumentos, a consulta prévia, livre e informada sobre projetos que possam alterar a região.

O representante da Feagle, Antônio Oliveira de Andrade, reforçou que a missão da federação é lutar para que o território do Lago Grande permaneça íntegro para as futuras gerações de moradores. Manoel Edvaldo Matos, do STTR, informou que uma campanha procura esclarecer os comunitários para a importância de se proteger a integridade do território. A campanha “Não abra mão da sua terra” tem cartazes espalhados por todas as comunidades.

Sob a terra, a bauxita – A indefinição fundiária e a precariedade da atuação do Incra acabam empurrando moradores a aceitar, além do assédio de grileiros e madeireiros, ofertas da Alcoa, multinacional que explora uma mina de bauxita no município vizinho ao assentamento, a Juruti. Além da cobiça sobre as terras, as comunidades estão lidando com o interesse da mineradora sobre o que há embaixo do assentamento: um grande platô de bauxita. Moradores denunciaram ao MPF que a Alcoa vem assediando as comunidades com propostas de projetos nas escolas, sem consulta às associações comunitárias, muitas vezes criando inclusive cisões internas nas comunidades.

De acordo com as denúncias, a Alcoa vem fazendo reuniões com pessoas que não integram as associações representativas das comunidades, chamadas de diálogos sociais, em que são entregues jornais falando sobre os benefícios da mineração em Juruti. Também são entregues formulários às direções das escolas das comunidades, em que são oferecidos valores de R$ 10 mil a R$ 50 mil para projetos financiados pela Fundação Alcoa. Para muitos comunitários, a ação da Alcoa é uma tentativa de aliciamento. O conflito entre as comunidades do Lago Grande e a Alcoa não é novo.

Em 2008, a Alcoa chegou a realizar pesquisas dentro do Lago Grande. Comunidades se reuniram para impedir a entrada dos pesquisadores ligados à multinacional e acabaram processados na Justiça Federal. O pedido da Alcoa era para receber autorização para ingressar e dar continuidade às atividades de prospecção nas comunidades onde ela tinha interesses minerários. A ação tinha como réus o Incra, a Feagle e vários moradores do assentamento.

A Justiça Federal chegou a conceder liminar em favor da Alcoa, mas em sentença no último mês de abril, ficou constatado que as licenças que a multinacional dizia ter para pesquisa na região estavam vencidas. A sentença detectou também violações do Código de Mineração que prevê que, para pesquisa e lavra, a mineradora precisa entrar em acordo com os moradores das áreas em que pretende trabalhar e, a partir das indenizações pagas, apresentar o chamado Laudo de Servidão, em que se reconhece a área como de servidão mineral. A Alcoa não tentou a negociação com os moradores e não apresentou o laudo de servidão. Por esse motivo, a sentença extinguiu a ação da multinacional, sem resolução do mérito.

“Sem necessidade de apreciação de outras questões levantadas durante o curso da demanda, é de se destacar que a parte autora deixou de juntar aos autos documentos indispensáveis, que deveriam acompanhar a inicial quando do ajuizamento da ação, mesmo intimada para tal finalidade e advertida sobre a possibilidade de extinção do feito sem resolução do mérito”, diz o juiz Érico Freitas Pinheiro, da 2ª Vara Federal de Santarém, na sentença. O processo da Alcoa tramitava com o nº 0003227-15.2010.4.01.3902.

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