Encontrada na região do Médio Solimões, a piracatinga (Calophysus macropterus) é um bagre que se alimenta preferencialmente da carne de animais mortos. A dieta do peixe, muito apreciado na Colômbia, transformou jacarés e botos amazônicos em alvo de pescadores, que utilizam a carne desses predadores aquáticos como isca para atrair a piracatinga.
Frente a esta ameaça, foi publicada, em 2014, a Instrução Normativa nº6, que proíbe a comercialização do pescado por cinco anos, como forma de proteção das espécies usadas como isca. No entanto, a medida também foi responsável por eliminar uma importante fonte de renda das populações ribeirinhas da Amazônia brasileira e, embora essa seja uma prática bastante discutida entre pesquisadores e conservacionistas, não há dados sobre os aspectos biológicos dos animais utilizados como isca que permitam uma avaliação concreta dos reais impactos da atividade nas populações de animais caçados.
Em estudo recentemente publicado, a pesquisadora associada do Instituto Mamirauá, Natalia Pimenta, apresenta os resultados do monitoramento participativo de caça voltada para obtenção de isca para a pesca da piracatinga em comunidades ribeirinhas do médio rio Solimões, Estado do Amazonas.
Através do monitoramento de caça realizado entre março de 2013 e fevereiro de 2014 com 33 pescadores de 12 comunidades ribeirinhas da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, os pesquisadores obtiveram o registro de que 152 jacarés foram utilizados como isca, dos quais 90% eram jacarés-açu (Melanosuchus niger), enquanto 9,2% correspondem a jacaretingas (Caiman crocodilus). O estudo aponta que o jacaré-açu macho adulto é a principal isca para pesca de piracatinga.
Em um estudo anterior realizado através de entrevistas com os pescadres, o pesquisador do Programa de Pesquisa em Conservação e Manejo de Jacarés do Instituto Mamirauá e co-autor do artigo, Robinson Botero-Arias, observou que o uso de botos como iscas aporesentam um maior rendimento de piracatinga. Entretanto, durante o monitoramento participativo não houve nenhum registro de caça de boto, nem de encontro de carcaças de botos, com ou sem evidência de uso para pesca da piracatinga. De acordo com os participantes da pesquisa, a isca elaborada a partir da carcaça do mamífero aquático é a mais eficaz para a pesca do bagre, mas deixou de ser utilizada pelos pescadores da região por receio de sofrerem severas punições penais direcionadas a quem molesta ou agride a fauna ameaçada de extinção. “Também foi possível perceber na fala dos pescadores que a crença no poder do boto encantado segue presente na cultural local, motivo pelo qual preferem evitar o contato com o animal”, explicou Natalia.
A caça direcionada a jacaré-açu macho e adulto parece não ter impactos significativos nas populações do réptil que residem na RDS Mamirauá, que aparentam ser as mais abundantes em toda a área de distribuição da espécie. As técnicas, áreas e período de caça dos jacarés pelos pescadores de piracatinga, podem estar contribuindo para um manejo informal e sustentável da espécie alvo. O monitoramento participativo indicou que a pesca da piracatinga concentra-se próximo aos centros de distribuição do pescado para o mercado colombiano e intensifica-se durante o período da seca dos rios, quando as fêmeas estão protegidas em lagos inacessíveis pelos caçadores para desova. A atividade sazonal, que evita a exploração de jacarés jovens e fêmeas em fase reprodutiva, surge como uma fonte de renda adicional para a população ribeirinha durante o período de defeso, quando a venda de outras espécies de peixes de maior valor comercial está proibida.
O estudo, que também investigou o uso de iscas alternativas, sugere que testes adicionais acerca da rentabilidade de iscas elaboradas a partir de vísceras de outros peixes comercais, bem como o desenvolvimento de novas ferramentas e técnicas de pesca, poderiam promover a sustentabilidade da pesca da piracatinga, removendo a pressão da caça sobre jacarés e botos, ao mesmo tempo que mantém esta importante fonte de renda para a população local.
A líder do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Mamirauá, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), Miriam Marmontel, contribuiu com a pesquisa realizada na Reserva Mamirauá. Também assina a publicação o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas na Amazônia (INPA), Adrian Barnett.
Participação comunitária
A pesquisa desenvolvida por Natalia destaca a importância da participação das comunidades locais na gestão dos recursos naturais da Amazônia. A Reserva Mamirauá desponta como um modelo pioneiro de gestão participativa, reunindo representantes de comunidades locais, pesquisadores e membros de organizações governamentais e não-governamentais. Esse modelo de gestão reflete o crescimento da demanda por participação dos comunitários nas tomadas de decisões para melhoria da qualidade de vida da população ribeirinha.
Saiba mais
Para ler a publicação “When predators become prey: Community-based monitoring of caiman and dolphin hunting for the catfish fishery and the broader implications on Amazonian human-natural systems”, acesse o site da Biological Conservation. Link: https://doi.org/10.1016/j.biocon.2018.04.003
Texto: Laís Maia
FONTE: Instituto Mamirauá
Deixe um comentário