Trazendo o filhote a tiracolo, uma fêmea de macaco-prego faz seu caminho pelo chão da floresta e depois sobe em uma árvore à procura de alimento entre as raízes. À primeira vista pode parecer um registro comum, mas a cena ganha contornos inéditos por representar um passo importante no conhecimento sobre a Amazônia.
Trata-se do primeiro registro oficial (veja vídeo e a galeria de fotos) de um sistema pioneiro para monitorar a biodiversidade em tempo real. Chamada Providence, a iniciativa é uma colaboração científica internacional liderada pelo Instituto Mamirauá. Pesquisadores concluíram os testes finais para o funcionamento da tecnologia e apontam um poderoso aliado na conservação da região amazônica.
Parceria
Além do Instituto Mamirauá, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), participam da iniciativa pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), o Laboratório de Aplicações Bioacústicas da Universidade Politécnica da Catalunha (UPC), e a organização científica australiana CSIRO. O Providence é financiado pela fundação norte-americana Gordon and Betty Moore.
Olhos e ouvidos na floresta amazônica
Uma rede de dez sensores foi instalada nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã, estado do Amazonas, em um trabalho de doze dias na mata e cerca de trinta pessoas envolvidas, entre especialistas e moradores locais. Somando mais de 3,5 milhões de hectares, as reservas são duas das maiores unidades de conservação do país e refúgio para várias espécies da fauna e flora, algumas delas encontradas somente nessa região. Os módulos da tecnologia Providence são equipados com câmeras e microfones que vão captar, 24 horas por dia, o movimento e comportamento da vida que habita o interior da floresta.
O grande avanço trazido pela tecnologia é sua capacidade de identificar espécies de animais (aves, répteis e mamíferos, e potencialmente peixes e insetos também) por imagem e som e enviar automaticamente essas informações (via satélite, wi-fi ou 3G) de qualquer lugar para um banco de dados que disponibilizará estes dados para a sociedade. A ideia é criar um observatório da biodiversidade na Amazônia, de fácil acesso e compreensão. “Para a próxima fase do projeto será criada uma plataforma online onde as pessoas poderão acessar livre e gratuitamente a informação gerada a partir desta tecnologia”, explica Emiliano Ramalho, pesquisador do Instituto Mamirauá e coordenador do Providence.
Sob esta perspectiva, o projeto é um convite à interatividade na proteção à natureza, a começar pela Amazônia. “Nós queremos que essas informações sejam úteis para outros pesquisadores, para que a ciência avance. Que o sistema seja usado como ferramenta de educação, de manejo de recursos naturais e conservação pelas comunidades locais e gestores de unidades e, de maneira geral, ser usado para enviar uma mensagem para o mundo sobre o que está acontecendo com a biodiversidade na Amazônia”, afirma o pesquisador.
Uma esperança para a conservação
Com uma experiência de quinze anos na Amazônia, Emiliano Ramalho conhece os obstáculos para se fazer ciência e conservação em florestas da região. Falta de investimentos, as dimensões da maior floresta tropical do mundo e o baixo número de pesquisadores trabalhando na Amazônia foram alguns dos desafios que ele tinha em mente quando concebeu a ideia do Providence. Um sistema inteligente, eficaz e sustentável com alcance e resultados mais amplos que os métodos tradicionais de monitoramento.
De acordo com Emiliano, o grupo de especialistas está em diálogo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para futuramente implementar o sistema em unidades de conservação federais, o que “será um avanço imenso, uma revolução na forma como se faz monitoramento de biodiversidade no Brasil”.
Como funciona o Providence
O Providence é composto por dois módulos, de imagem e som, que operam em conjunto para gravar e identificar espécies da fauna. Graças ao clima quente e úmido da Amazônia, o sistema é alimentado com painéis de energia solar. Para evitar consumos desnecessários, parte dos dispositivos funciona em estado semi-dormente, ou seja, é ativado somente quando um animal se aproxima dele. Completando a estrutura, antenas transmitem o material (fotos, aúdios ou um comando escrito com o nome da espécie) para o banco de dados do projeto.
Para a comunicação ser bem-sucedida, as antenas da tecnologia foram instaladas em pontos altos de floresta na Reserva Mamirauá, em geral árvores de grande porte, a exemplo da urucurana e do apuí. Um módulo sonoro também foi implantado dentro de um lago para “registrar sons de espécies subaquáticas, como o boto cor-de-rosa e o tucuxi”, diz o pesquisador Michel André, do Laboratório de Aplicações Bioacústicas da Universidade Politécnica da Catalunha.
Especialista em bioacústica, Michel conta que as tecnologias de som são um valioso aporte ao monitoramento, porque conseguem “alcançar distâncias maiores de captação do que os dispositivos de imagem, então mesmo que não tenhamos a imagem do animal, seremos capazes de identificar um animal pelos sons que emitem”. Os módulos de som do Providence têm dois microfones, um para frequências sonoras audíveis por seres humanos e outro para sons que escapam aos nossos ouvidos, como os produzidos por morcegos.
Os módulos de imagem são “os olhos” do sistema, habilitados para filmar bichos à luz do dia, na escuridão da mata à noite (com o auxílio de lentes infravermelho) e mesmo em condições climáticas adversas, como em temporais. “Com os testes feitos ao longo do ano passado até o momento, conseguimos adaptar os equipamentos às condições desafiadoras da Amazônia”, informa Paulo Borges, cientista da CSIRO.
A identificação de espécies de animais fica por conta de um sistema de inteligência artificial, desenvolvido pelo Instituto de Computação da Universidade Federal do Amazonas. Como informa a pesquisadora Eulanda Santos, na fase atual, o sistema está sendo treinado para reconhecer “mais de dez espécies de animais característicos da fauna amazônica, como a onça-pintada e duas espécies de mutum”.
De Mamirauá para toda a Amazônia
Com os testes realizados em março na Reserva Mamirauá, o projeto Providence encerra a Fase 1 de suas atividades. Nela, dez sensores da tecnologia foram instalados em diversas partes da reserva, provando que a tecnologia funciona em uma das regiões mais desafiadoras do mundo, as florestas inundáveis de várzea da Amazônia.
Na próxima fase, os parceiros planejam instalar cem sensores para monitorar toda a extensão da Reserva Mamirauá, tornando ela “a primeira reserva do mundo a ser monitorada 24 horas por dia”, como informa o pesquisador Emiliano Ramalho. Nessa etapa também será lançado o site do projeto Providence, para acesso público.
A terceira fase completa o projeto com a instalação de mil sensores Providence ao longo de toda a Amazônia Brasileira e possivelmente outros países cujos territórios têm a presença da floresta amazônica. Os pesquisadores estão em busca de financiamento para os próximos passos do sistema. “É fundamental que o governo também se aproprie dessa tecnologia, porque é uma tecnologia que está sendo desenvolvida por uma colaboração internacional, mas liderada por uma instituição de pesquisa brasileira”, considera Emiliano Ramalho.
Texto: João Cunha
FONTE: INSTITUTO MAMIRAUÁ
Deixe um comentário