As lideranças indígenas atuam em negociações internacionais do clima e se fazem ouvir em espaços políticos regidos por regras e lógicas não-indígenas, e por isso enfrentam limitações significativas para o estabelecimento de um diálogo igualitário. Essa é a conclusão de um artigo científico publicado essa semana pela pesquisadora do IPAM Isabel Mesquita, em que mostra os desafios que as vozes indígenas enfrentam para ser ouvidas e compreendidas nas negociações.
Para a autora, mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília, diferenças na organização do espaço, formato das discussões, regras de conduta, questões linguísticas e culturais colocam barreiras ao diálogo. “O Acordo de Paris (firmado em 2015 pela Convenção-Quadro da ONU para Mudanças Climáticas) já reconhece a importância dos povos indígenas para o clima, mas na prática as negociações não têm sido tão acolhedoras para esse público se manifestar”, diz a pesquisadora. “O artigo provoca que você pense como os povos indígenas podem ser ouvidos.”
No Brasil, as terras indígenas (TIs) são importantes estoques de carbono, pois os povos mantêm as florestas mais com sua forma de viver: só na Amazônia, calcula-se que as TIs guardem 13 bilhões de toneladas de carbono. Por isso, são fundamentais para o equilíbrio climático. Ao mesmo tempo, os povos indígenas são muito vulneráveis às alterações do clima já em curso, pois dependem de dinâmicas naturais – como chuva e seca – que têm modificado.
Como surgiu o interesse por estudar e trabalhar com povos indígenas?
Isabel Mesquita: Desde a faculdade quando cursava Ciências Sociais, nutria um interesse pelas questões de meio ambiente. Durante um estágio me deparei com pesquisas sobre povos indígenas e desde então me apaixonei pelo trabalho, dizem que quando você começa a trabalhar com a questão indígena não sai mais e é verdade. Li e tive contato com diversas histórias que me marcaram demais, envolvendo chacinas e genocídios. Saber sobre a diversidade de povos que existiam e que viviam de maneiras que eu nem imaginava só me fez querer contribuir para melhorar a realidade deles.
Em seu último artigo, você mostra a dificuldade dos indígenas em serem ouvidos e entendidos nos debates climáticos culturais. Por que isso acontece e quais mudanças precisam acontecer para que esse cenário seja mais igualitário?
Isabel Mesquita: O diálogo será entendido e aceito entre os participantes quando houver termos e regras comuns. Para que haja simetria, é necessário estabelecer um espaço razoavelmente democrático, em que um dos interlocutores não seja preponderante sobre outro. No caso dos indígenas, eles já traduzem suas visões de mundo para se fazerem entender, mas alguns conceitos se perdem.
Em negociações climáticas, seria preciso estabelecer espaços de diálogo minimamente democráticos, e reconhecer os representantes indígenas como interlocutores legítimos, com status de negociadores. Além disso, é importante ter um processo formativo longo, afinal as negociações são um espaço complexo.
Os indígenas estão correndo atrás para serem vistos como interlocutores legítimos: há indígenas de várias partes do mundo extremamente qualificados e que participam dos debates. Mas os não-indígenas precisam ter um mínimo de capacitação para dialogar com os indígenas, para assim construirmos espaços mais efetivos.
No artigo você fala sobre o REDD+ Indígena Amazônico, uma proposta alternativa ao mecanismo de REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal). Qual a importância dessa iniciativa?
Isabel Mesquita: O REDD+ Indígena Amazônico, ou RIA, foi desenvolvido pela COICA, que é a Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica e é um exemplo bem sucedido de como o movimento indígena conseguiu incluir pautas próprias no debate internacional sobre clima. Isso porque, ao formular uma proposta de REDD+, a COICA foi capaz de apresentar suas pautas de maneira a valorizar a importância dos territórios e dos indígenas para garantir seus direitos. O RIA tem como diferencial propor que o REDD+, além de garantir a redução das emissões de gases de efeito estufa mantendo as áreas de floresta, sirva também para dar visibilidade ao conhecimento indígena sobre a sua maneira de viver e manejar o território trazendo a linguagem das organizações indígenas, como as reivindicações por terra, autonomia e reconhecimento.
As terras indígenas são importantes para a mitigação das mudanças climáticas. Qual ação você gostaria de ver em prática por parte do governo brasileiro?
Isabel Mesquita: É importante reconhecer as terras indígenas que ainda não foram homologadas e avançar nesse tema. Para as terras que já são reconhecidas é preciso um olhar mais atento do governo e também da sociedade civil sobre o que está em volta: muitas delas ficam como ilhas, cercadas por áreas desmatadas, e sofrem com os problemas que acontecem no entorno, como derrubada da floresta e atividades produtivas com agrotóxicos, geração de lixo etc. A questão indígena não se encerra dentro da terra indígena.
Qual a maior dificuldade você encontra por ser uma mulher trabalhando com ciência indígena?
Isabel Mesquita: Tiveram muitos momentos em que fui a única mulher de uma reunião e no começo isso é bem intimidante. Via claramente a diferença de tratamento que recebia de indígenas homens quando comparado com a relação deles com lideranças não-indígenas masculinas. É desafiador para uma mulher estar nesses ambientes, mas enxergo com esperança. Em muitos espaços de organização política indígena, apenas os homens indígenas eram protagonistas, mas isso tem mudado de 2012 para cá. É incentivador ver que as mulheres indígenas estão ocupando mais os espaços políticos e que nós – mulheres indígenas e não-indígenas – nos fortalecemos ao ocuparmos juntas estes espaços.
No dia 19 de abril é comemorado o Dia do Índio. O que você gostaria de ver ser abordado e discutido pelas pessoas?
Isabel Mesquita: Me incomoda muito as pessoas acharem que o indígena tem de ser como as pessoas acham que os indígenas eram séculos atrás. Você ainda usa relógio de bolso como na época do seu avô? Não? As coisas mudam. A cultura está em constante transformação, e um indígena não deixa de ser indígena porque usa celular. As pessoas sabem pouco sobre o que é ser indígena de verdade, e muitas vezes têm uma noção sobre povos indígenas distante da realidade. Existem livros escritos por indígenas, jogos de videogame e rappers indígenas cantando em guarani, por exemplo. Para o Dia do Índio, gostaria muito de ver nas escolas alunos e professores se dedicando a falar sobre como é ser indígena hoje.
Karinna Matozinhos, do IPAM
FONTE: IPAM Amazônia – 12.04.2018 • Notícias
Deixe um comentário