Cerca de 35 indígenas participaram de audiência em que foram indicados locais sagrados a serem protegidos; em 60 dias deverá ser apresentada a forma de identificação desses locais. 

Um mapa contendo a identificação geográfica de 21 lugares de memória, considerados sagrados pelo povo Waimiri Atroari, foi apresentado por lideranças da etnia, durante audiência judicial realizada em Manaus, como parte do cumprimento de decisão liminar em ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas.

Na ação, o órgão requereu a reparação dos danos causados pelas violações praticadas contra o povo Kinja (como se autodenominam) durante o regime militar. A maior parte dos locais apontados foi palco de massacres durante a abertura da BR-174, no período da ditadura militar. 

Durante a audiência, os próprios waimiri atroari puderam relatar à Justiça os motivos que os levaram a indicar a necessidade de proteção dos locais identificados no mapa apresentado.

A lista de espaços sagrados inclui locais onde eram desenvolvidas as atividades da frente de atração (nos rios Camanaú, Alalaú e Abonari); as áreas e aldeias onde houve bombardeios que mataram centenas de indígenas; os acampamentos de trabalhadores, de funcionários e do Exército, que eram pontos onde os índios estabeleciam contato e onde relatam a ocorrência de conflitos; a área da terraplenagem, mencionada em depoimentos como o local onde os indígenas mortos eram enterrados, além de locais de plantio, caça e cemitérios que foram destruídos quando da passagem da rodovia.

Cerca de 35 representantes da etnia estiveram presentes na audiência, realizada na tarde desta quarta-feira (14), na sede da Justiça Federal, em Manaus, entre eles dois sobreviventes de um ataque a bomba ocorrido a uma aldeia à época da abertura da rodovia, em que morreram dezenas de pessoas. Na língua karib, eles relataram abertamente os massacres sofridos pelos índios no período da ditadura militar.

“Essas áreas são sagradas para nós, povo Waimiri Atroari, porque foi onde perdemos os grandes guerreiros, grandes líderes das aldeias e onde deixaram uma marca inesquecível. Queremos que fiquem intactas para que as futuras gerações possam conhecer e entender que esses problemas já ocorreram no passado, não são só de hoje”, disse Ewepe Marcelo, líder de uma das aldeias.

Diante da necessidade de definição sobre a melhor forma de identificação dos locais na opinião dos indígenas, a Justiça concedeu prazo de 60 dias para que as lideranças reúnam suas aldeias e decidam, entre si, se os espaços sagrados serão indicados por placas nominais ou marcos, além da indicação no mapa já elaborado. O desejo dos indígenas é proteger essas áreas e impedir qualquer interferência não consentida por eles.

De acordo com o procurador da República Julio Araujo, designado para atuar no caso, a participação direta dos indígenas na audiência, com possibilidade de manifestações individuais inclusive na própria língua materna, é um avanço importante na efetivação dos direitos indígenas de participação nas causas que os afetam diretamente e no aprofundamento da perspectiva dos waimiri sobre as violências que ocorreram no passado. 

“Precisamos que o estado brasileiro reconheça os indígenas como cidadãos de primeira classe, que têm direitos iguais a todos os outros e que podem falar, não devendo ser tratados como crianças ou pessoas incapazes. Os relatos das violações, feitos por eles mesmos, mostra a dimensão dos danos causados e o dever de reparação pelo Estado”, defendeu. 

A ação civil pública segue tramitando na 3ª Vara Federal do Amazonas, sob o número 1001605-06.2017.4.01.3200.  

Violações de direitos humanos – Na decisão liminar que determinou a realização da audiência, a Justiça Federal no Amazonas reconheceu violações praticadas contra os waimiri atroari quando da abertura da rodovia BR-174 e determinou ainda que empreendimentos capazes de causar grande impacto na terra indígena não podem ser realizados sem que haja consentimento prévio do povo indígena. A comunidade deve ser consultada, conforme a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de forma livre e informada, com base em regras a serem definidas pelo próprio povo Kinja, como os indígenas Waimiri Atroari se autodenominam. 

Para os Kinja, a determinação referente à necessidade de consentimento do povo indígena para a realização de empreendimentos que causem impacto na terra indígena é fundamental, já que existem tentativas de utilização de seu território sem a adoção de consulta prévia ou mediante um procedimento meramente homologatório. Um exemplo apontado pelo MPF na ação é o projeto de construção de linha de transmissão cujo traçado cruza o território Waimiri Atroari no trecho onde se situa a rodovia. A nulidade do edital do leilão que previu a linha é objeto de contestação judicial em razão da falta de consulta prévia, livre e informada e da não consideração de alternativas locacionais.

Depoimentos – Na ação, o MPF apresentou vasta documentação relatando a violação aos direitos do povo Waimiri Atroari. Na audiência realizada nesta quarta-feira, lideranças indígenas confirmaram pessoalmente a ocorrência dos massacres em diversos pontos da área tradicionalmente habitada por eles. “O nosso povo sofreu com a ditadura militar. Em vários pontos das aldeias, nos atacaram com canhões.

Houve genocídio. Derramaram muito do nosso sangue, uma lembrança muito triste para o povo waimiri atroari”, confirmou o líder indígena Ewepe Marcelo.

Além dos ataques militares, Ewepe ainda relatou uma série de outros prejuízos ao povo indígena, na época da construção da BR-174, que alteraram de maneira brusca seus modos de vida. “Quando não tinha a BR-174, nosso povo vivia em paz. Não tinha doença, não tinha gripe, não tinha sarampo. Quando passou a BR, veio todo tipo de doença e isso reduziu a nossa população. A construção da estrada trouxe uma série de problemas que até hoje não foram totalmente resolvidos”, ressaltou. 

Uma das sobreviventes aos bombardeios, Adje Rosa participou da audiência e contou, em sua língua materna, de que forma a tragédia afetou sua vida. “Eu sou uma das pessoas que escapou do massacre. Morreu o meu marido. Quem matou o meu marido deixou guariba morto lá próximo da aldeia. Escapei e todo o meu povo acabou”, relatou a indígena.

O indígena Bonaldo Warapiwa também sobreviveu a um dos ataques que dizimou toda a sua família e, na audiência, cobrou responsabilização pelo massacre. “Só escapei eu. Minha mãe e meu pai morreram. A comunidade inteira. Não identifiquei quem fez isso. Agora eu quero ouvir vocês para saber quem foi. Hoje, eu estou aqui como testemunha desse conflito”, disse na língua karib. 

Como representante do povo Waimiri Atroari, Mário Paruwe também falou das violações praticadas contra os indígenas, que foram presenciadas por ele naquela época. “Antes de acontecer tudo isso, nós vivíamos felizes. Quando chegou a abertura da estrada, começaram a ‘rasgar’ a nossa terra. Acabaram com duas aldeias nossas. Eu sou testemunha! Em uma delas, morreram 16 pessoas, ou por bombas ou por balas. Do outro lado da estrada, morreram mais 10 pessoas. Meu pai morreu, minha mãe morreu”, relembrou. 

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