Áreas da Amazônia alagadas por hidrelétricas podem aumentar níveis de mercúrio em peixes consumidos por moradores locais.
Contaminação além do garimpo. Áreas da Amazônia alagadas por hidrelétricas podem aumentar níveis de mercúrio em peixes consumidos por moradores locais.
As comunidades indígenas e ribeirinhas que vivem em áreas próximas a usinas hidrelétricas na Amazônia podem estar expostas a altos níveis de mercúrio. A suspeita é de um grupo de pesquisadores brasileiros e espanhóis coordenado pela bioquímica María Elena López, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará (UFPA). Eles analisaram amostras de fios de cabelo de 37 ribeirinhos que vivem em ilhas na região de Caraipé, no lago Tucuruí, nos arredores da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, a segunda maior do Brasil. Verificaram que mais da metade dos moradores apresentava níveis de contaminação até sete vezes superior ao limite de 10 microgramas de mercúrio por grama de fio de cabelo tolerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Mais de 80% do metal identificado estava em sua forma orgânica, o metilmercúrio”, afirma María Elena. Essa é a forma mais tóxica de mercúrio, capaz de driblar o sistema de defesa do organismo e atingir o cérebro. Nesses casos, pode causar uma síndrome neurodegenerativa grave chamada doença de Minamata, caracterizada por tremores, problemas de coordenação, distúrbios sensoriais, comprometimento da visão e da audição e, em casos extremos, morte. Apesar de apresentarem altos níveis de metilmercúrio no organismo, nenhum dos ribeirinhos havia sido diagnosticado com qualquer problema de saúde, o que já era esperado pelos pesquisadores. Sinais clínicos associados à contaminação por esse metal levam anos para se manifestar.
No estudo, publicado em janeiro na revista Ecotoxicology and Environmental Safety, os pesquisadores argumentam que os ribeirinhos de Tucuruí estão se contaminando a partir da ingestão de peixes. A primeira suspeita era de que o envenenamento pudesse ser uma consequência da atividade garimpeira. Isso porque os casos de contaminação por mercúrio na Amazônia quase sempre estão associados à extração de ouro. É comum os mineiros despejarem mercúrio em sua forma líquida à mistura de areia e cascalho extraída dos rios para atrair o metal precioso. Ao fazerem isso, liberam grandes quantidades de mercúrio no ambiente.
Mas, ao analisar o histórico da região, os pesquisadores constataram a existência de vários pontos de mineração, nenhum deles ligado à extração de ouro. Por isso, sugerem que a principal fonte de contaminação por mercúrio seria decorrente de um efeito indireto provocado pelo funcionamento da hidrelétrica de Tucuruí, construída entre 1974 e 1985.
Efeitos da barragem
María Elena explica que a construção da barragem criou ecossistemas fechados que periodicamente são inundados. “O tempo de retenção de água em algumas áreas do reservatório chega a 130 dias por ano”, diz a bioquímica. Assim, todos os anos, na época chuvosa, quando o rio transborda e invade a floresta, suas águas ricas em matéria orgânica em decomposição misturam-se à grande quantidade de matéria orgânica jovem. Com o tempo, sob a ação da luz solar, esses compostos produzem peróxido de hidrogênio (água oxigenada), que ajuda a liberar o mercúrio inorgânico estocado no solo. Em seguida, bactérias anaeróbicas convertem a substância em metilmercúrio, que entra na cadeia alimentar aquática.
A possibilidade de essa dinâmica se tornar um problema na região já havia sido apresentada há quase 20 anos pelo biólogo norte-americano Philip Fearnside, hoje no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em artigos publicados na revista Environmental Management. Em agosto do ano passado, um estudo publicado na PLOS ONE também destacou o risco de contaminação por metilmercúrio decorrente da construção de barragens na Amazônia.
“O solo amazônico é naturalmente rico em mercúrio em sua forma inorgânica, menos agressiva”, comenta María Elena. Em algumas regiões, as próprias características do solo e da água favorecem a concentração elevada do metal. É o caso da bacia do rio Negro, onde cada quilo de solo contém em média 172 microgramas de mercúrio, quase quatro vezes mais do que os níveis considerados normais para os solos em outras regiões (ver Pesquisa FAPESP nº 143). “O problema é que qualquer alteração ambiental pode fazer com que o mercúrio inorgânico seja liberado e convertido em metilmercúrio”, ela afirma.
Ao ser liberado no meio ambiente, o metal é absorvido por algas, alimento de pequenos peixes, que são consumidos por peixes maiores. “Os peixes que estão no topo da cadeia alimentar têm maior risco de acumular o mercúrio ao se alimentar de organismos menores contaminados”, explica María Elena. É o caso do tucunaré (Cichla sp.), uma das espécies mais consumidas na região e amplamente comercializada em Belém. “As amostras de tucunaré que avaliamos apresentaram níveis de mercúrio semelhantes aos encontrados em peixes da bacia do rio Tapajós, onde está a maior área de garimpos ativos do Brasil.” Um estudo publicado na revista Science of the Total Environment em 1995 já havia identificado a presença de metilmercúrio em outro peixe na região da hidrelétrica de Tucuruí, a pescada-amazônica (Plagioscion squamosissimus).
A Eletrobras Eletronorte, administradora da Hidrelétrica de Tucuruí, reconhece a complexidade e a importância da questão. Em nota, a empresa afirma que “promove e apoia estudos que contribuam para um melhor entendimento das origens do mercúrio em ambientes naturais e antropizados [alterados pelo ser humano] da região amazônica, bem como os mecanismos biogeoquímicos que contribuem para sua mobilização, acumulação e transferência entre diferentes compartimentos ambientais”. Também destaca que atualmente desenvolve uma pesquisa sobre o papel de microrganismos na mobilização e na acumulação de mercúrio no reservatório da usina, em parceria com a UFPA.
Riscos estendidos
Episódios de contaminação por mercúrio também ocorrem em outros pontos da Amazônia. É o caso de tribos do estado de Roraima. Em 2016, ao analisar amostras de fios de cabelo de 239 índios dos grupos yanomami e ye’kuana, de 19 aldeias, pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) verificaram que em algumas regiões até 92% dos indígenas apresentavam contaminação por mercúrio. Nesse caso, no entanto, o metal fora liberado no ambiente pela atividade garimpeira. “As crianças e mulheres em idade reprodutiva foram as mais afetadas”, explica o médico Paulo Cesar Basta, coordenador do estudo da Fiocruz.
Para ele, é importante estabelecer um plano de monitoramento ambiental para identificar as possíveis fontes de exposição ao mercúrio na Amazônia, que parecem extrapolar a atividade garimpeira. Mais de 400 hidrelétricas estão em operação ou em construção na região, sobretudo na bacia do Tapajós. “Outra estratégia seria aprofundar as análises dos corpos d’água na região e montar um mapa de risco de contaminação que pudesse ser usado para orientar as populações locais”, sugere. “Estamos falando de comunidades isoladas e pobres que dependem da pesca para sobreviver”, destaca María Elena. “Muitos sequer sabem que estão se contaminando.”
RODRIGO DE OLIVEIRA ANDRADE | ED. 265 | MARÇO 2018
FONTE: FAPESP – Mercúrio: ribeirinhos em risco : Revista Pesquisa Fapesp – Contaminação além do garimpo : Revista Pesquisa Fapesp