O dançador de coroa dourada, encontrado unicamente em área de conflito no Pará, é uma das quatro espécies híbridas do mundo. E já está ameaçado de extinção. Sua história evolutiva aponta um dos fatores para a riqueza de espécies no bioma amazônico.
Parceria firmada em 2010 entre o Museu Paraense Emílio Goeldi (BR) e a Universidade de Toronto (Canadá) permitiu o reconhecimento da primeira espécie de ave híbrida para a Amazônia. O dançador da coroa dourada (Lepidothrix vilasboasi) é a quarta híbrida registrada no mundo, anuncia o pesquisador Alexandre Aleixo, curador da coleção ornitológica do Museu Goeldi e coordenador brasileiro do estudo, que recompôs a evolução da espécie e elucidou um mistério científico.
A história singular do dançador de coroa dourada tem cerca de 158 mil anos e confirma que a hibridização é fator importante na geração da riqueza de espécies de aves na Amazônia.
O Lepidothrix vilasboasi é uma ave endêmica do estado do Pará, praticamente restrita ao distrito florestal da BR-163, mais especificamente à margem direita do rio Tapajós e à margem esquerda do rio Jamanxim, onde está localizada um complexo de unidades de conservação que inclui o Parque Nacional do Jamanxim. Única para a ciência, o dançador da coroa dourada está ameaçado de extinção – o reconhecimento da vulnerabilidade ocorreu em âmbito estadual no ano de 2007 e em âmbito nacional em 2014.
Mistério – Desde que foi registrada pela primeira vez pelos cientistas na década de 50 do século XX, a pequena ave L. vilasboasi tem provocado perplexidade. Ela foi encontrada pelo ornitólogo Helmut Sick em uma área dominada por duas outras espécies muito próximas: o cabeça de prata (Lepidothrix íris) e o uirapuru-de-chapéu-branco (Lepidothrix nattereri).
A esse mistério, somou-se um longo período de 45 anos no qual o dançador de coroa dourada não foi visto. Em parte porque a área de sua ocorrência é remota – Sick foi um dos primeiros naturalistas a percorrer a região habitada pela ave. No período de ausência de registros, foi ventilado a hipótese de o dançador de coroa dourada ser apenas um híbrido ocasional entre as espécies aparentadas mais próximas (cabeça de prata e uirapuru-de-chapéu-branco), sendo esse o motivo para não ter sido detectada por um período tão longo.
Mas, em 2002, os ornitólogos Fábio Olmos e José Fernando Pacheco reencontraram a espécie na região do rio Jamanxim e, desde então, vários novos registros se somaram àqueles já conhecidos, mas sempre na região do distrito florestal da BR-163.
Geograficamente, o pequeno dançador de coroa dourada ocupa um território fronteiriço ao das duas outras aves Lepidothrix.
Chave – A composição genética do dançador é “rigorosamente intermediária entre o cabeça de prata (L. íris) e o uirapuru-de-chapéu-branco (L. nattereri), espécies relacionadas ao dançador e cujas distribuições o circundam. Dados genéticos obtidos a partir de todo o genoma confirmam a hipótese de origem híbrida para o dançador de coroa dourada. Mas, contrário do que se pensava anteriormente, a hibridização que deu origem à nova espécie não foi recente ou fortuita, mas, sim, relativamente antiga”, pontua Aleixo.
A descrição do estudo de Alfredo Barrera Guzmán (Universidade de Toronto), Alexandre Aleixo, e seus parceiros do Brasil, Canadá e Bélgica, está descrita no prestigiado periódico “Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America”.
Ponto crítico – Pesquisas de campo, o olhar atento para detalhes e tecnologias empregadas na análise de código genético elucidaram uma questão crítica da história evolutiva do dançador e que o distingue dos seus parentes próximos – o topete amarelo.
Aleixo conta que a coloração amarela do alto da cabeça dos machos do dançador de coroa dourada tem uma origem em penas cujas estruturas são também intermediárias entre aquelas encontradas no topo do cabeça de prata e no uirapuru-de-chapéu-branco. A descoberta coincide com a hipótese da origem híbrida e foi uma das etapas delicadas da investigação.
Outro elemento importante foi verificar que a cor amarela do alto da cabeça dos machos é explicada pelo acúmulo de carotenóides (o mesmo pigmento presente no mamão, por exemplo), algo sem paralelo no gênero de aves ao qual o dançador de coroa dourada pertence.
A descoberta inédita de híbridos de origem muito recente entre o cabeça de prata e o uirapuru-de-chapéu-branco e que não possuem o alto da cabeça amarelo, mas, sim, uma cor branca bastante opaca, elucidou de vez o mistério se o dançador era ou não uma nova espécie híbrida.
Com a soma das descobertas é possível explicar o motivo da cor amarela na cabeça do dançador do Jamaxim: houve provavelmente seleção por parte das fêmeas a favor de machos com um aumento progressivo de carotenóides nas penas do alto da cabeça, cuja coloração mais chamativa compensaria o tom opaco oriundo da mistura dos genomas de duas espécies que deram origem a ele.
“Uma cor opaca pode prejudicar a exibição destes indivíduos para as fêmeas, que procuram machos com cores aberrantes na cabeça para acasalarem. Ou seja, machos com cores não chamativas tendem a ser rejeitados por machos com cores mais fortes e atraentes. O mais interessante foi constatar que, em algum momento, as fêmeas passaram a preferir machos com a coloração progressivamente mais amarelada da cabeça do que machos das outras duas espécies próximas, o que definitivamente consolidou o status do dançador de coroa dourada como uma espécie completamente independente das outras”, ressalta Aleixo.
E de acordo com o estudo, esse processo se deu há cerca de 158 mil anos.
Implicações – A confirmação da origem híbrida do dançador de coroa dourada tem pelo menos duas grandes implicações, uma evolutiva e outra para a sua conservação. Em termos evolutivos, o estudo confirma que hibridização pode ser um importante fator na geração da maior riqueza de aves na Amazônia quando comparada à do Canadá, algo até hoje não reconhecido, já que espécies que tiveram origem comprovadamente híbrida são muito raras em aves. Já no que se refere à conservação, o estudo confirma, de uma vez por todas, que o dançador de coroa dourada é uma espécie 100% independente e que merece ser conservada.
Estas conclusões, alerta o pesquisador, reacendem a preocupação com o tipo de exploração humana na área de incidência do dançador de coroa dourada, fortemente pressionada pelo agronegócio, com aumento expressivo do desmatamento e ocupação do distrito florestal da BR-163, especialmente nos últimos anos.
Em 2017, parlamentares tentaram desmembrar, via medida provisória, 660 mil hectares da Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim para criar a Área de Proteção Ambiental (APA) do Jamanxim. O fato gerou grande mobilização contrária por parte de ambientalistas e, por sua vez, a defesa ferrenha por parte de ruralistas. O Congresso Nacional vetou integralmente a MP 756 no dia 30 de agosto, depois da longa disputa.
Novos passos – O Museu Goeldi e a Universidade de Toronto querem descobrir o porquê da diferença na diversidade das aves existentes na Amazônia e no Canadá, um país continental como o Brasil. O dançador de coroa dourada foi uma das espécies escolhidas para ajudar a encontrar respostas para essa questão. “Estima-se que a Amazônia tenha 10 vezes mais espécies de aves do que o Canadá, fato notável considerando que ambos territórios compartilham extensões geográficas similares”, exemplifica Aleixo.
Segundo o pesquisador do Museu Goeldi, a partir de agora, a parceria com o departamento de Biologia da Universidade de Toronto buscará entender em detalhes quais exatamente foram os genes envolvidos no processo de especiação do dançador de coroa dourada (relacionados com a aquisição e fixação da coloração amarela da cabeça) e que o diferenciaram de todas as demais espécies próximas com as quais ele teve contato.
Alexandre Aleixo também ressalta que as contribuições científicas serão utilizadas para garantir a sobrevivência da espécie encontrada no Pará. “A equipe brasileira do projeto já auxilia o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave)/Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)/Ministério do Meio Ambiente (MMA) num plano de ação para a conservação do dançador de coroa dourada, uma ave única, 100% brasileira”, ressalta Aleixo.
VER GALERIA DE FOTOS EM: A primeira espécie de ave híbrida da Amazônia — Museu Paraense Emílio Goeldi
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