A população da comunidade de remanescentes quilombolas do Forte Real Príncipe da Beira, fortaleza construída no século 18 pela Coroa Portuguesa, no município de Costa Marques, em Rondônia, fronteira com a Bolívia, diz que é hostilizada por militares do 1º Pelotão Especial de Fronteira (PEF). O motivo é uma disputa fundiária de décadas. Na Justiça Federal, onde tramita um processo aberto à pedido do Ministério Público Federal em 2014, o Exército Brasileiro reivindica a posse de parte das terras tradicionais alegando que a área é de segurança nacional e que a população não seria descendente de negros africanos.
“O Exército alega que a comunidade não é quilombola, mas só um estudo antropológico vai definir o perfil dos moradores”, contesta o procurador da República em Ji-Paraná, Alexandre Eiras.
As famílias quilombolas denunciam que sofrem restrições de suas atividades produtivas, como roça, pesca e extrativismo, o que estaria provocando um “forçado abandono” do território tradicional pela população. Na década de 1980, a comunidade tinha cerca de 4.500 habitantes. Atualmente são 276 moradores de 74 famílias, segundo levantamento da Associação Quilombola do Forte (Asqforte).
O presidente da associação, Elvis Pessoa, 40 anos, natural do Forte e bisneto de escravos, cita, entre as restrições impostos pelos militares às comunidades, a proibição de usar veículos para transportar materiais de pesca para o rio Guaporé, vista pelos comunitários como cerceamento da liberdade de ir e vir.
Morador da comunidade do Forte desde os nove anos de idade e vice-prefeito de Costa Marques, Amauri Arruda, 53 anos, é filho de um militar que trabalhou como enfermeiro no Forte. Ele acusa o Exército de proceder “um massacre silencioso” contra as comunidades e “um apartheid”.
“Eles [os militares] conseguiram tirar os direitos sociais e o pessoal foi desestimulando e indo embora. A comunidade foi diminuindo, porque eles pressionam, não deixam pescar, não deixam fazer uma roça, nada, nada. Eles vão fechando o cerco para a pessoa desistir e ir embora”, denuncia Arruda.
O conflito motivou o Ministério Público Federal em Rondônia a ingressar com uma ação civil pública, exigindo que o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) faça a demarcação da área do Forte Príncipe da Beira, que fica no município de Costa Marques, a 700 quilômetros de Porto Velho. Também destacou que o Exército não coloque obstáculos a este processo. A ação civil pública tramita na Justiça Federal desde 2014.
Na ação o MPF destaca que a comunidade do Forte enquadra-se nos conceitos previstos no artigo 1º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da ONU. A comunidade “vive no local há décadas” e possui ”formas singulares de organização”, com o “uso comunitário de bens naturais, por meio da agricultura e da pesca, bem como de sua ligação diferenciada com aquela terra”.
Em 2005, a Fundação Palmares emitiu a Certidão de Autorreconhecimento dos Remanescentes de Quilombolas do Forte Príncipe da Beira. Esta certidão é o primeiro passo do processo de demarcação.
Em 2010, o MPF constatou, em inquérito civil público, que o processo de demarcação do território estava em andamento na Divisão de Ordenamento Fundiário do Incra, mas que os funcionários encarregados do trabalho eram impedidos de entrar na área pelos militares.
De acordo com a ação, os militares alegavam ter “jurisdição” sobre parte do território tradicional e sugeriam a remoção dos moradores, com a construção de casas do programa Minha Casa, Minha Vida.
Em 2014, a Justiça Federal determinou a realização de uma audiência de conciliação entre as partes envolvidas no processo. Nesta audiência, realizada em 2015, os militares apresentaram uma proposta para finalizar o conflito que não foi acatada pelos moradores.
“Pela proposta, os militares poderiam entrar em qualquer uma das casas dos moradores, sem aviso prévio, entre outras exigências consideradas abusivas”, afirma o coordenador do Serviço de Regulamentação dos Territórios Quilombolas do Incra em Rondônia, William Coimbra.
O processo tramita atualmente na 2ª. Vara Federal em Ji-Paraná e de acordo com o procurador Alexandre Ismail Miguel, do MPF, “ já tramitou tudo o que tinha que tramitar, o Incra, a União e o MPF já foram ouvidos”. O juiz responsável pelo caso, Marcelo Elias Vieira, procurado pela reportagem, explicou que não se manifesta sobre processos em andamento.
O que diz o Exército?
Em resposta à agência Amazônia Real, o Exército Brasileiro negou as acusações de hostilidade das comunidades quilombolas. Diz que o quartel do 1º Pelotão Especial de Fronteira (1º PEF) possui no seu entorno o Real Forte Príncipe da Beira. A área está sob jurisdição militar, localizada na linha/faixa de fronteira com a Bolívia, “região de constantes episódios de apreensão de drogas, armas e outros ilícitos”
O Exército afirmou que sempre esteve disposto a solucionar qualquer conflito com moradores locais. Disse que apresentou, entre os anos de 2014 e 2015, à comunidade uma proposta de Concessão de Direito Real de Uso Resolúvel (CDRUR), contrato administrativo não oneroso, “o qual não foi aceito pelas lideranças locais.”
“O Comandante do 1º PEF tem realizado esforços para manter um excelente relacionamento com a comunidade autodeclarada quilombola do Real Forte Príncipe da Beira em Costa Marques, em Rondônia. Essa comunidade se instalou no entorno do Forte em 1942, ano posterior à instalação do Pelotão naquela área (década de 1930)”. Leia a íntegra das respostas do Exército.
Escravos abandonados no Vale do Guaporé
Um grande contingente de escravos foi levado pela coroa portuguesa ao Vale do Guaporé, na fronteira do Brasil com a Bolívia, no século 18, para a extração de ouro e também para a construção do Real Forte Príncipe da Beira. O aparato militar – considerado como um dos maiores do país – visava impedir o avanço dos espanhóis na região e o contrabando de minérios, segundo a dissertação de Lorismar da Silva Barroso ‘Real Forte Príncipe da Beira – Ocupação Oeste da Capitania do Mato Grosso e seu processo construtivo (1775 – 1983)’ , Pontifícia Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Faculdade Católica de Rondônia.
Com a escassez do minério e a insalubridade da região, que se destacava pela alta incidência de doenças tropicais como o maculo (uma febre diarreica) e a malária, os portugueses abandonaram a região, deixando para trás os escravos considerados sem serventia.
Negros fugitivos do regime de escravidão se uniram aos escravos abandonados na região, dando origem a oito comunidades de remanescentes quilombolas no Vale do Guaporé: Forte Príncipe da Beira, em litígio com o Exército; Jesus e Seringueiras, tituladas em 2010 e 2017; Santo Antônio do Guaporé, Pedras Negras, Santa Cruz e Tarumã, que aguardam o Certificado de Autorreconhecimento da Fundação Palmares; e Laranjeiras, onde o INCRA está elaborando o Relatório Técnico de Identificação e Demarcação (RTID).
Para a construção do Real Forte Príncipe da Beira – de 1775 a 1783 – a Coroa arregimentou brancos, índios e escravos africanos. Escravos de ganho, que pertenciam a soldados, e outros da Coroa Portuguesa ficavam à disposição do empreendimento.
Antes da chegada dos portugueses, jesuítas espanhóis mantinham a Missão de Santa Rosa com indígenas que viviam na região. Estes missionários foram expulsos, em 1743, e a Missão deu lugar à fortaleza Nossa Senhora da Conceição, que foi desativada por causa de uma grande enchente do rio Guaporé. No local, ficaram negros que participaram da construção do aparato militar, originando a vila de Conceição, informa Elvis Pessoa, citando o historiador Matias Mendes, que é natural do lugar.
Em 1775, os portugueses iniciaram a construção do Real Forte Príncipe da Beira em um terreno mais alto, com visão estratégica e livre de enchentes, a oito quilômetros do Conceição. Em 1783, o Príncipe da Beira foi concluído, marcando o domínio português frente aos espanhóis na região.
No final do século 18, com a consolidação do domínio português, o Forte Príncipe da Beira perdeu sua importância estratégica e pouco a pouco foi abandonada pelos militares. Com a instalação da República, a fortaleza foi legada ao esquecimento.
Na década de 1930, o Exército instalou no local o Contingente Especial de Fronteira Real Forte Príncipe da Beira, reocupando a fortaleza, e “aos poucos os moradores da Vila Conceição mudaram para as suas proximidades”, segundo Elvis Pessoa.
Para ele, a construção da Escola General Sampaio, em 1948, pelos militares influenciou esta mudança. “Na vila, havia uma escola, mas quem precisava evoluir nos estudos passaram a morar mais perto do Forte”, explica Elvis Pessoa.
Ele aponta como causa “fundamental” para o despovoamento da Vila Conceição, a instalação de uma fazenda do Exército com criação de gado em pastos naturais. Estes animais pastavam livremente, invadiam e destruíam as roças dos moradores, fazendo com que muitos abandonassem o local.
“A vila de Conceição resistiu até a década de 1960, 1974. Depois disso alguns [moradores] foram saindo para Guajará-Mirim, Mato Grosso, Costa Marques …”, afirma Elvis Pessoa.
A convivência entre militares e civis
O procurador Alexandre Ismail Miguel, do MPF de Ji-Paraná, destaca a necessidade de agilizar o processo de demarcação da área do Forte Príncipe da Beira para cessar o conflito entre militares e a comunidade local. “Quanto mais se demora nesta demarcação, mais o problema se agrava, por isso o nosso foco é que os trabalhos de demarcação sejam realizados”, afirma.
Ele reconhece que a presença do Exército “é importante por se tratar de uma área de fronteira, muito visada, sendo que os militares contribuem para melhorar a segurança da própria comunidade que reside ali” e aponta que só um estudo antropológico vai definir se a área do Forte é um território tradicional de remanescentes quilombolas.
“Não é a minha versão, do MPF, de determinada pessoa ou instituição que vai prevalecer. Existe um procedimento que o Incra deve seguir, que vai levantar informações a respeito da comunidade. E é isso que o MPF pede, que o processo regulamentar seja feito para identificar quem está ali. Que direitos tem. Se tem direito, a até que ponto, em qual terra”, explica o procurador.
As restrições impostas pelos militares aos moradores do Forte Príncipe da Beira de acesso ao porto tradicionalmente utilizado pela comunidade, no final de 2017, reacenderam o conflito entre militares e civis no local. “Este porto foi projetado pra ficar do lado da igrejinha Imaculado Coração, que era pra fazer a chegada do Divino [Espírito Santo] ali próximo da igreja. Eles [os militares] alegam que é um porto militar. Só que nunca foi um porto militar. Ali sempre foi usado pela comunidade”, defende o presidente da Asqforte.
Alexandre Ismail Miguel diz que procurou o Exército para falar sobre a medida. “Nós temos tentado pedir esclarecimentos a eles [Exército] para que nenhuma restrição que seja imposta à comunidade extrapole limites. A militarização da vida da comunidade não é muito bem vista. A vida militar é voltada aos militares, não aos civis”, alega o procurador.
Litígio prejudica políticas públicas
Elvis Pessoa diz que enquanto o processo de demarcação da área tramita na Justiça, persistem os entraves à roça, pesca e extrativismo, estimulando a dispersão dos moradores do Forte. “Os moradores que resistem em permanecer no local vivem um pouco da pesca e um pouco da extração de castanha. Temos uns aposentados e um grupo de funcionários públicos”.
O litígio também dificulta a aplicação de políticas públicas, como o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, segundo declarações do vice-prefeito de Costa Marques, Amauri Arruda.
Sem autonomia, os moradores dependem dos militares para atender necessidades básicas. O abastecimento de água é feito em um poço artesiano do Exército. O posto de saúde é do quartel. O transporte público até a cidade de Costa Marques (a 28 quilômetros do Forte) depende de ônibus fretados pelos militares. Para os serviços, há um número de atendimento limitado e a prioridade são os militares. “É uma humilhação”, segundo Amauri.
O vice-prefeito informa que a prefeitura criou o distrito do Forte Príncipe da Beira, para facilitar o atendimento da comunidade, “mas o Exército não reconhece este ato”, acusa ele.
“A comunidade do Forte quer e precisa viver com autonomia”, segundo Elvis. Para tanto, os moradores reivindicam posto de saúde, ambulância, transporte público, construção de um poço artesiano, acesso ao programa habitacional Minha Casa, Minha Vida e estradas asfaltadas.
Até 2016, a escola General Sampaio, cercada dentro da área militarizada, deixou de ter o Ensino Médio, e os alunos foram transferidos para outro estabelecimento, de Costa Marques. Esta escola durante vários anos acirrou o conflito entre a comunidade e os militares. Com uma ampliação da área do Pelotão, a escola foi cercada e os professores, alunos ou outra pessoa da comunidade eram obrigados, diariamente, a apresentar documentos de identidade para acesso à mesma. “A medida revoltou a comunidade e só foi revista porque nós fizemos muito barulho”, relata Elvis Pessoa.
Segundo Amauri Arruda, os moradores reivindicam uma escola quilombola na região, que serviria para os estudantes do Forte e de Santa Fé, também localizada no município, e que recentemente teve sua terra titulada.
Para o desenvolvimento da economia local, os moradores do Forte pedem apoio para a produção agrícola e pecuária e turismo. Além da exuberância da natureza, a área do Forte tem um rico acervo arqueológico, composto por cemitérios antigos e gravações rupestres.
A área reivindicada como território tradicional dos quilombolas é de 20 mil hectares, sendo que parte dela é alagadiça e outra é coberta com pastos naturais, segundo o coordenador do Serviço de Regulamentação dos Territórios Quilombolas do Incra em Rondônia, William Coimbra.
Forte tombado está em ruínas
Com 970 metros de perímetro e muralhas de 10 metros de altura, o Real Forte Príncipe da Beira é uma das maiores fortalezas construídas no Brasil e representa uma atração turística importante na região do Vale do Guaporé, com cerca de mil visitantes anuais, segundo o Exército.
O Forte permaneceu completamente abandonado durante 50 anos e foi localizado pelo Marechal Cândido Rondon em 1914, responsável pela instalação da linha telegráfica Cuiabá/Rondônia. Em 1950, a fortaleza foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Atualmente, está em ruínas. Os militares fazem a limpeza e o escoramento das paredes e articulam uma parceria com o Iphan e o governo de Rondônia para restaurar o monumento histórico.
FONTE: AMAZÔNIA REAL
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