Após 14 anos de espera, no início de dezembro de 2017, o governo peruano finalmente reconheceu a existência de povos indígenas isolados nas áreas reivindicadas como Reservas Indígenas Yavarí Tapiche e Yavarí Mirim, no departamento de Loreto. Uma comissão multisetorial do governo peruano aprovou os Estudos Prévios de Reconhecimento, realizados a partir dos esforços da Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana (Aidesep) e da Organización Regional de los Pueblos Indígenas del Oriente (Orpio), que atestam a presença e circulação de povos indígenas isolados na região de fronteira Brasil-Peru.

As propostas da Reserva Indígena (RI) Yavarí Tapiche e da Reserva Indígena Yavarí Mirim estão tramitando desde 2003, quando Aidesep e Orpio apresentaram para o Estado peruano os estudos para o seu reconhecimento. As duas reservas fazem limite com a Terra Indígena Vale do Javari, no lado brasileiro, e com a Comunidade Nativa Matsés no Peru. Desde o início da articulação do povo Matsés em defesa de seus direitos nos dois países, o reconhecimento da existência de povos indígenas isolados na região e a regularização de seus territórios têm sido uma das pautas prioritárias.  Essas articulações tiveram o apoio do Centro de Trabalho Indigenista a partir de 2009 quando acontece a I Reunião Binacional Matsés Brasil-Peru.

De acordo com a lei peruana para a proteção de povos indígenas em situação de isolamento voluntário e recente contato (Lei n° 28736 de 2006) e sua regulamentação, a aprovação dos Estudos Prévios de Reconhecimento de Povos Indígenas em Situação de Isolamento e em Situação de Contato Inicial é a primeira etapa do processo de reconhecimento e regularização dos territórios destes povos. A avaliação destes estudos é feita por uma Comissão Multissetorial estabelecida pela mesma lei, atualmente presidida pelo Ministério da Cultura e composta por representantes de outros ministérios, da Defensoria do Povo, de governos regionais, de municipalidades provinciais, de universidades e de duas organizações indígenas (Aidesep e Confederación de Nacionalidades Amazónicas del Perú – Conap).

A última etapa do processo é a aprovação do Estudo Adicional de Categorização de Reservas Indígenas, também de competência da Comissão Multissetorial da Lei 28736, o que Aidesep e Orpio apontam como urgente, já que os isolados que habitam a região estão constantemente ameaçados, seja pelas concessões de exploração oferecidas pelo próprio governo peruano, seja pelas inúmeras iniciativas de exploração ilícitas.

As Reservas Indígenas no Peru são terras delimitadas pelo Estado a favor dos povos isolados, de caráter intangível e para uso exclusivo dos mesmos. Contudo, sua intangibilidade é transitória, ou seja, deve vigorar apenas enquanto se mantenha a situação de isolamento ou contato inicial dos povos em questão. Mesmo nestes casos, a intangibilidade das Reservas Indígenas é relativa, já que a mesma lei prevê o aproveitamento de recursos naturais por terceiros, desde que “mediante métodos que não afetem os direitos dos povos indígenas em situação de isolamento ou em situação de contato inicial”, ou quando sua exploração “resulte de necessidade pública para o Estado”.

A lentidão do Estado peruano em reconhecer e regularizar as reservas indígenas Yavarí-Tapiche e Yavarí Mirim têm exposto povos isolados da região à ação de madeireiros e de empresas petrolíferas, além de fomentar conflitos de interesse relacionados ao uso da terra, dificultando ainda mais o ordenamento territorial na região.

Boa parte da área proposta para a RI Yavarí Tapiche encontra-se sobreposta por Áreas Naturais Protegidas – a maior parte pelo Parque Nacional Sierra del Divisor e, a norte, pela Reserva Nacional Matsés. Em novembro de 2015, a então Zona Reservada Sierra del Divisor foi categorizada como Parque Nacional, a categoria de ANP de maior proteção na legislação ambiental do Peru. Como até então o governo peruano não reconhecia a existência de povos indígenas isolados na região, o Decreto Supremo de Criação do Parque ignorou a presença destes povos. A RI Yavarí Mirim encontra-se sobreposta pelas comunidades nativas Fray Pedro e Nueva Esperanza, além da Área de Conservação Regional Tamshiyacu Tahuayo e da Concessão de Conservação Lago Preto-Paredón.

A RI Yavarí Mirim encontra-se sobreposta por diversas concessões florestais. A partir do ano 2000 foi estabelecido um regime de concessões florestais por meio do qual o Estado peruano tem fomentado a atividade madeireira na Amazônia.  A maior área de concessões em Loreto, conhecida como Zona 8, se sobrepõe à Proposta de Reserva Indígena Yavarí-Mirim. A Zona 1, por sua vez, se sobrepõe à Proposta de Reserva Indígena Yavarí- Tapiche. Estudos realizados pelo ecólogo e colaborador do CTI Hilton Nascimento apontam que “o sistema de concessões estabelecido em 2000 não coibiu a desordem e informalidade que caracterizou historicamente a atividade madeireira na região, sendo frequentes as práticas de ‘branqueamento’ de madeira retirada fora das áreas concessionadas, de utilização de mão de obra infantil e de trabalho escravo, de emprego de indígenas de recente contato e de lavagem de dinheiro do narcotráfico”.

O perigo das concessões

Segundo dados da Orpio, em maio de 2017 o Serviço Nacional Florestal e de Fauna Silvestre (Serfor) do Peru, o Governo Regional de Loreto e a Autoridade Regional Ambiental, realizaram processos para oferecer 197 novas unidades de aproveitamento florestal. Destas, 35 estavam dentro das propostas de Reservas Indígenas para isolados. Das 59 concessões florestais no Departamento de Loreto outorgadas durante o ano de 2017, 29 estavam sobrepostas à Reserva Indígena Yavarí Mirim. Outras duas concessões feitas em 2016 foram realocadas para a área da Reserva Indígena Yavarí Tapiche. No documento em que faz a denuncia das medidas do governo peruano, a Orpio alerta que “estas medidas constituem uma grande ameaça para os povos indígenas em isolamento voluntário que habitam a zona Yavarí Tapiche e Yavarí Mirim”.

Nos últimos dez anos a área da RI Yavarí Tapiche permaneceu extensamente sobreposta pelos Lotes petrolíferos 135 e 137, concessionados em 2007, durante o governo Alan Garcia. Desde 2007, quando foram a leilão, os dois lotes se tornaram a maior preocupação territorial das comunidades Matsés no Peru e no Brasil. Por meio da Comunidad Nativa Matsés (CNM) no Peru e da Organização Geral dos Mayuruna (OGM) no Brasil, o povo Matsés iniciou um conjunto de articulações binacionais, sendo a Reunião Binacional Matsés Peru-Brasil a mais expressiva delas. Após intensa resistência do povo Matsés à atuação de petrolíferas em seu território e em territórios de indígenas isolados, em julho de 2016 a empresa Pacific Stratus Energy (subsidiária da canadense Pacific E&P no Peru) anunciou o fim de suas atividades no Lote 137. No início de 2017 a mesma companhia se retirou do Lote 135. Parte da RI Yavarí Tapiche ainda se encontra sobreposta pela porção sudeste do Lote 95.

POR RAFAEL NAKAMURA – Realização: CTI – Governo peruano reconhece a existência de povos indígenas isolados na região das Reservas Yavarí Tapiche e Yavarí Mirim | CTI (trabalhoindigenista.org.br)