O fim da Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), assinada pelo presidente Michel Temer, abriu um precedente perigoso: os conflitos socioambientais e fundiários inerentes a uma ocupação humana súbita e à extração mineral em uma região cercada de terras indígenas e unidades de conservação. Ainda que o governo tenha aparentemente voltado atrás na decisão, após a mobilização da sociedade, o ato demonstra a necessidade de se discutir com mais profundidade decisões que podem impactar as próximas gerações.

A Renca é uma área de 47 mil quilômetros quadrados de mata fechada entre os estados do Amapá e Pará – do tamanho do Espírito Santo ou oito vezes o Distrito Federal – criada em 1984 no apagar das luzes do governo militar, que não teve tempo de explorá-la, como era a intenção.

“Abrir uma área desse tamanho em uma região tão preservada e com essas características fundiárias é, de fato, temeroso”, alerta Ane Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

Atualmente apenas 0,31% da área de floresta da RENCA se encontra desmatada, de acordo com dados do PRODES. Segundo cálculos do IPAM, esse percentual deve aumentar para 5%, mesmo que a proteção das áreas ambientais não seja alterada, ou ainda chegar a 31%, caso estas áreas protegidas percam a efetividade em conter a pressão do desmatamento que pode ser causada pela multiplicação de garimpos legais e ilegais, principalmente na área da Floresta Estadual do Paru, até 2030.  “Isso quando deveríamos proteger mais, e não menos, a floresta: além de ser um patrimônio ambiental dos brasileiros, ela presta um serviço fundamental para regulação do clima e do ciclo hidrológico”, afirma Alencar.

A Renca está localizada em uma das áreas com maior riqueza predita de mamíferos brasileiros ameaçados de extinção. Esse é o caso, por exemplo, do peixe-boi-da-amazônia, espécie aquática ameaçada que já foi observada na Floresta Estadual do Paru, área que agora permite exploração mineral em seu interior. Atividades de mineração são especialmente danosas aos ambientes aquáticos e podem liberar metais pesados, causando intoxicação na população e biodiversidade local. Estudos do ICMBio já identificaram a altíssima contaminação de peixes por mercúrio em área vizinha.   

O mapa mostra a altíssima prevalência de mamíferos ameaçados de extinção na Renca: 

Ainda que o texto do decreto diga que “a extinção da Renca não afasta a aplicação de legislação específica sobre proteção da vegetação nativa, unidades de conservação da natureza, terras indígenas e áreas em faixa de fronteira“, há exemplos históricos sobre o impacto negativo que medidas como essa causam.

Em Roraima, entre 1986 e 1988, mais de 40 mil garimpeiros contaram com o apoio do governo para invadir as terras do estado e em especial o território ianomâmi, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade. O presidente da Funai, na época, era Romero Jucá, atual líder do PMDB no Senado. Como o documento descreve, “comunidades inteiras desapareceram em decorrência das epidemias, dos conflitos com garimpeiros, ou assoladas pela fome. Os garimpeiros aliciaram indígenas, que largaram seus modos de vida e passaram a viver nos garimpos. A prostituição e o sequestro de crianças agravaram a situação de desagregação social.” Estima-se que até um quarto dos ianomâmis tenham morrido por efeitos diretos ou indiretos do garimpo.

“Mesmo com as regras supostamente preservadas como diz o governo federal, o impacto de fora para dentro é enorme. Pode atrair sim invasão de terras, gerar contaminação e outros problemas conhecidos, sendo devastador para a região”, afirma Alencar. Reportagem especial da Agência Pública revela que, na Amazônia Legal, um terço das áreas indígenas tem processos minerários registrados no DNPM, que vão do desejo de explorar ouro, diamante e chumbo a minérios como cassiterita, cobre e estanho. Na região, a proporção é de uma terra indígena para cada dez processos minerários. Campeão nacional, o Pará concentra 50% desses processos em TIs já identificadas oficialmente pela Funai.

A área da agora extinta Renca engloba nove áreas protegidas: o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, as Florestas Estaduais do Paru e do Amapá, a Reserva Biológica de Maicuru, a Estação Ecológica do Jari, a Reserva Extrativista Rio Cajari, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru e as Terras Indígenas Waiãpi e Rio Paru d’Este.

Uma análise da ONG WWF revela que menos de 30% da Renca estará acessível à exploração dos recursos minerais. As regiões que apresentam contexto geológico favorável à mineração estão inseridas em áreas protegidas, que bloqueiam a extração mineral, o que deve estimular o conflito. Reportagem da BBC mostra que mineradoras canadenses souberam da extinção da reserva 5 meses antes do anúncio oficial.

No momento, são 28 títulos outorgados (autorizações de pesquisa e concessões de lavra) e 189 requerimentos de pesquisa prévios à criação da reserva que deverão ser analisados pelo DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), que, de acordo com as regras publicadas por Temer, será substituído pela Agência Nacional de Mineração (ANM), uma troca vista com desconfiança por especialistas e que, tudo indica, tem a intenção expressa de acelerar processos travados. 

* Texto atualizado em 1º de setembro de 2017, para inclusão de desdobramentos da decisão no primeiro parágrafo.

FONTE:  IPAM Amazônia – Notícias 

http://ipam.org.br/abolicao-de-reserva-na-amazonia-afeta-animais-em-extincao-e-terras-indigenas/