Na Operação Jurerei foram presas 14 pessoas, entre elas, o grileiro Nelson Bispo dos Santos, fazendeiros, posseiros e policiais militares, que informavam quando havia ação de fiscalização na reserva.

A Polícia Federal, a partir de 19 mandados de prisão expedidos pela Justiça Federal em Rondônia, desarticulou no dia 2 de agosto duas quadrilhas acusadas de invadir, grilar e desmatar a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, no oeste do estado.  Entre os 14 presos está Nelson Bispo dos Santos, coordenador da Associação dos Produtores da Comunidade Curupira, em Ariquemes.

Suspeito de comandar um grupo de grileiros que vendia lotes de terras da reserva por até R$ 40 mil, Santos teve a prisão preventiva decretada por crimes de estelionato e organização criminosa. Ele está preso no presídio Urso Branco, em Porto Velho.

Outras cinco pessoas, que tiveram as prisões preventivas decretadas pela chamada Operação Jurerei, estão foragidas. É o caso do fazendeiro Ari Martins, suspeito de comandar outra organização criminosa que praticava desmatamentos e roubava madeira, causando um prejuízo ambiental da ordem de R$ 22 milhões à terra indígena. Jurerei é o nome de um grupo de índios Uru-Eu-Wau-Wau que vive isolado na terra indígena.

Segundo a PF, também foram presos na Operação Jurerei Corino Francisco da Silva, membro da Associação Curupira, o tipógrafo Isaac Moreira da Costa, o fazendeiro Silvano Ferreira de Lima, e três policiais militares. Os PMs são suspeitos de informar aos líderes das quadrilhas sobre as ações de fiscalizações e operações dentro da TI Uru-Eu-Wau-Wau. Os policiais não tiveram os nomes divulgados.

O delegado que comandou a operação, Daniel Peixoto, disse à agência Amazônia Real que a Associação Curupira, comandada por Nelson Bispo dos Santos, havia dividido a terra indígena em 328 lotes de 2.000 por 4.000 metros quadrados. A maioria dos lotes, segundo o policial, não estava ocupado por posseiros. “O Nelson Bispo era reincidente na prática [de grilar terras públicas]. Ele tem 10 anos que faz esse tipo de crime. Ele apostava na impunidade. Tratava com desdém a atuação dos órgãos de fiscalização”, afirmou o delegado Peixoto. Ele destacou que, apesar das 14 prisões, as investigações sobre os crimes praticados na TI Uru-Eu-Wau-Wau continuam em curso.

Conforme a investigação independente dos índios Uru-Eu-Wau-Wau, estariam acampados irregularmente dentro da terra indígena de 800 a 5.000 pessoas, aguardando a regularização de lotes pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). As quadrilhas haviam desmatado mais de 1.000 hectares (ou 10.000 metros quadrados) de floresta da reserva.

A área desmatada da terra indígena fica no limite do Projeto de Assentamento Burareiro, criado nos anos 1970 pelo Incra. O projeto é considerado ilegal pela Funai, que ingressou com uma ação que tramita na Justiça Federal desde a década de 70. Por causa do conflito agrário, a reserva passou a ser alvo de invasões e especulação imobiliária nas regiões de Ariquemes e Monte Negro (distantes 250 km de Porto Velho).

Mesmo depois da operação da PF, a reportagem apurou junto a ambientalistas que atuam na região, que a invasão dentro da terra indígena e no Parque Nacional dos Pacaás Novos, uma das unidades de conservação mais importantes de Rondônia, continua. O parque, que tem limites com a reserva, tem dois milhões de hectares de florestas, e está localizado entre as bacias dos rios Guaporé, Mamoré e Madeira.

Homologada, a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau tem 1.867.118 hectares, mas é cercada por 12 municípios com intensa produção agropecuária e madeireira na região do Alto Jamari, daí as constantes invasões de terra.

Fraude no CAR

Segundo a investigação da PF, o tipógrafo Isaac Moreira da Costa concedia ilegalmente o Cadastro Ambiental Rural (CAR) para as pessoas que compravam áreas loteadas da terra indígena vendidas por Nelson Bispo. O CAR é um registro de imóvel rural (propriedade ou posse) obrigatório e exigido pelo governo federal. Ele pode ser feito em órgãos ambientais, sindicatos ou mesmo por escritórios especializados (saiba mais)

As investigações da PF comprovaram que o fazendeiro Ari Martins era o responsável pela retirada e exploração de madeira dentro da TI Uru-Eu-Wau-Wau. Ele vendia toras de madeira para o comerciante e fazendeiro Silvano Ferreira de Lima, que atuava nos Distritos de Grotão e Terra Nova, no município de Campo Novo. “O Ari Martins invadia, retirava a madeira e vendia para o Silvano. O Ari não é ligado a nenhuma associação. É um fazendeiro que tem áreas vizinhas à terra indígena”, disse o delegado Peixoto.

Durante a operação, a Polícia Federal prendeu em flagrante na terra indígena 15 posseiros, mas a Justiça concedeu a eles a liberdade provisória.

Risco de confronto era iminente

A Polícia Federal disse que a investigação da Operação Jurerei começou em outubro de 2016. Mas, cansados de esperar pela ação da PF, da Funai e do Ministério Público Federal (MPF), os índios Uru-Eu-Wau-Wau decidiram investigar a grilagem de terra no território indígena sozinhos e expulsar os invasores em fevereiro deste ano. Na ocasião, sete guerreiros foram para um loteamento clandestino aberto na localidade Linha 5, no município de Monte Negro. Eles expulsaram três invasores.

Segundo o delegado Daniel Peixoto, uma das preocupações da PF em desmontar as duas quadrilhas era com a ameaça real de um confronto entre os índios Uru-Eu-Wau-Wau e os invasores. Ele disse que a operação contou com o apoio da Funai, do MPF e da Associação de Defesa Etnoambiental – Kanindé.

“Foi também um trabalho para preservar vidas humanas. A história dos Uru-Eu é marcada pelo sangue. Várias pessoas já perderam a vida em disputa por terra e invasão para exploração de minério. A história estava quase se repetindo. O conflito era iminente. A situação estava muito tensa. Os índios estavam se rebelando e se arriscando”, disse o delegado.

Peixoto afirmou que a investigação constatou que havia uma situação de risco, com os invasores dispostos ao confronto. “Os índios iam com arco e flecha e o sujeito [invasor] estava com espingarda”, afirmou o delegado, destacando que a operação da PF na TI Uru-Eu-Wau-Wau continua em curso.

A reportagem não conseguiu localizar os advogados de Nelson Bispo dos Santos, Corino Francisco da Silva, Ari Martins, Isaac Moreira da Costa e Silvano Ferreira de Lima.

A assessoria de imprensa da Polícia Militar de Rondônia foi procurada por telefone e e-mail para falar a respeito da prisão dos policiais, mas a instituição não respondeu até a publicação desta matéria.

Reunião no posto da Funai

A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau fica numa área de forte pressão madeireira e invasão de terras. Em reportagem publicada pela Amazônia Real no dia 9 de fevereiro deste ano, os indígenas relataram que as invasões se intensificaram em outubro de 2016, quando grileiros iniciaram abertura de lotes na área para cultivo de roçados e até mesmo para pastagem de gado.

“Tem grileiro invadindo nossas terras. Estão demarcando com estacas, retiram a madeira e depois arrendam as terras. Estamos precisando de ajuda. Já procuramos o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e Fundação Nacional do Índio, mas ninguém procura resolver o problema”, relatou na ocasião Djurip Uru-eu-wau-wau, presidente Associação Jupaú, que representa as seis aldeias dentro do território tradicional.

Em um das incursões para monitorar as invasões, os indígenas encontraram dois homens que ocupavam lotes grilados. Um deles tinha um vídeo no celular com imagens onde aparecia Nelson Bispo dos Santos acompanhado de autoridades e políticos em uma reunião realizada no fim de janeiro dentro de um posto de vigilância da Funai. Entre as autoridades estavam a secretária-executiva de Agricultura de Rondônia, Mary Braganhol, e o vice-prefeito de Ariquemes, Lucas Follador, além do radialista José Giovanni Basilio, da rádio Verde Amazônia. Procurados na ocasião da publicação da reportagem, eles não quiseram conceder entrevista à Amazônia Real.

Posteriormente, a Associação Rádio Comunitária Educativa Verde Amazônia FM enviou uma nota à reportagem dizendo que “o jornalista Jose Giovanni não incentivou a invasão à TI Uru-Eu-Wau-Wau”. A associação afirmou em nota “que foi Nelson Bispo dos Santos, da Associação Curupira, que convidou a imprensa para registrar o evento que contou com mais de 400 pessoas, inclusive as autoridades estaduais”.

Índios querem vigilância permanente

Em entrevista à Amazônia Real, o líder indígena Djurip Uru-Eu-Wau-Wau alertou que é preciso que a operação da PF continue na terra indígena, pois os invasores podem voltar.

“Eles [policiais] precisam pegar todos os invasores. Todas as pessoas que entram e derrubam e ‘demarcam` [loteiam] terra. Eles podem voltar amanhã, depois de amanhã, na outra semana”, disse Djurip à Amazônia Real.

Segundo a liderança, os invasores cometem vários crimes. “Eles derrubam árvores, fazem pastagem dentro da terra indígena e fazem loteamento. Quando a PF vem, eles vão embora, mas depois voltam”, disse a liderança.

Djurip disse que a presença de invasores causa todo tipo de ameaça, não apenas ambiental. “Eles prejudicam a floresta, espantam os animais, sujam os rios e ameaçam a vida dos índios isolados. A gente sabe que quando eles desmatam, também querem chegar onde tem garimpo”, afirmou.

A coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, organização indigenista que atua em Rondônia, Ivaneide Bandeira, elogiou a operação ao destacar que ela, finalmente, prendeu os comandantes dos crimes na terra indígena, mas alertou para o risco dos suspeitos serem soltos.

“O grande mérito foi a operação ter pegado quem fomenta o crime. Há 20 anos a gente pede que se resolva a situação, mas a polícia sempre pegava o torero [cortador de tora de madeira], o cara que comprou a terra enganado, etc. A gente espera que o juiz não solte os que foram presos. A PF e a Funai gastam milhões, prendem o invasor, aí o juiz vai e solta. Esse mesmo invasor volta e continua invadindo”, afirmou.

Ivaneide diz que a Justiça também deveria obrigar os invasores a reflorestar e recuperar as áreas degradadas, além de ressarcir os indígenas pelos danos causados.

“O impacto na terra indígena é enorme. Eles derrubaram castanhais, que são a base da alimentação dos índios e a geração de renda deles. E não tem só as árvores. Tem os animais, tem os rios que são degradados. A região tem espécies raras de animais, como o gavião-real. Ou seja, tem o impacto na economia dos indígenas, na vida dos indígena, e na biodiversidade. Impacta os indígenas e as pessoas que dependem da água que nasce da terra indígena e vai para fora”, diz Ivaneide, que espera que as investigações continuem para que todos os envolvidos sejam indiciados e presos.

O procurador do Ministério Público Federal Daniel Azevedo Lobo, que pediu as prisões dos responsáveis pelos crimes dentro da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau, disse que há agentes públicos envolvidos nas atividades criminosa.

“Isso [invasão e grilagem] não é simplesmente uma atividade de pessoas necessitadas, de pessoas desvalidas. O Ari Martins tem recursos. Isso é uma atividade criminosa. A estruturação é de organização criminosa. Eles atuam de maneira bastante organizada e com gente financiando por trás. Gente do comércio, fazendeiros locais, policiais militares. Há agentes privados e agentes públicos envolvidos nessa atividade ilícita”, disse o procurador.

Sobre a atuação de Nelson Bispo dos Santos, o procurador afirmou que ele deixava transparecer nas suas ações de invasão que tinha apoio de agentes públicos para incentivar invasão do território indígena.

“Ele convida o agente para transparecer que estaria ali negociando os lotes e que aquela atividade seria regular”, afirmou Daniel Azevedo Lobo.

Funai tem conflito com Incra  

A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau possui seis aldeias. A mais afetada pelas invasões é a Alto Jamari. A terra é sobreposta ao Parque Nacional de Pacaás Novos, a maior unidade de conversação de Rondônia. Esta região é uma das mais impactadas pelo agronegócio e a exploração ilegal de madeira.

As invasões acontecem desde os anos 1970. O Incra expediu 122 títulos definitivos a agricultores no interior da TI Uru-Eu-Wau-Wau. Conforme documento do Instituto Socioambiental (ISA), a Funai notificou o instituto e interditou a área, mas até hoje o problema não foi resolvido.

Na década de 1980, o Incra concedeu mais 113 títulos indevidamente na parte sul do Projeto de Assentamento Burareiro, localizado dentro da TI Uru-Eu-Wau-Wau, diz o documento do ISA. Apenas em 1985, o Incra reconheceu que o assentamento era inviável devido à falta de estradas de acesso. Mas não reassentou os titulados em outra região.

Sem a definição judicial para o litígio entre o Incra e a Funai, a ação relativa ao Burareiro é usada de forma distorcida, segundo o ISA, por empresários e políticos de má-fé dos municípios de Ariquemes e Monte Negro para incentivar a invasão à terra dos Uru-Eu-Wau-Wau.

Em fevereiro de 2016, o superintendente do Incra em Rondônia, Cletho Brito, afirmou que a Associação dos Produtores da Comunidade Curupira, presidida por Nelson Bispo dos Santos, “pretende uma área de domínio que é da Funai”. Ele disse que a comunidade está localizada na Gleba Rio Alto, no setor Nova Floresta, que limita com o projeto de Assentamento Burareiro.

Na ocasião, Cletho Brito falou com a Amazônia Real que Nelson Bispo dos Santos informava aos produtores rurais que “compravam” lotes na TI Uru-Eu-Wau-Wau que a área tinha autorização do Incra.

O superintendente negou que o Incra tinha conhecimento da ocupação irregular. Ele disse que houve um mal-entendido ao ser procurado por agricultores e pelo radialista José Giovanni Basílio, e que confundiu as áreas, repassando informações sobre a situação fundiária do Assentamento Burareiro e não sobre a área requerida pela Associação dos Produtores da Comunidade Curupira (que fica justamente dentro da TI Uru-Eu-Wau-Wau).

Segundo Cletho Brito, a PA Burareiro tem 1.550 parcelas (lotes), sendo que 105 estão na área em litígio com a Funai. Oitenta por cento desses 105 lotes já estão regularizados, segundo ele, atendendo decisão judicial de 2014. O PA Burareiro está localizado nos municípios de Ariquemes, Rio Crespo, Cacaulândia e Monte Negro, sendo que a maior parte está fora da terra indígena, restando o trecho referente aos 105 lotes em litígio, afirmou o superintendente.

A Funai pediu na Justiça Federal a reintegração de posse da área da terra indígena invadida por grileiros, mas, em outubro de 2014, o juiz federal Dimis da Costa Braga extinguiu o processo. Segundo a decisão, a Funai não conseguiu identificar “os atuais proprietários dos lotes que almejam ser cancelados”. A Amazônia Real apurou que o Ministério Público Federal já recorreu dessa decisão.

FONTE: Amazônia Real

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