A fronteira Brasil-Peru, região onde vive o maior número de povos indígenas isolados do planeta, foi tema das mesas de debate durante o Encontro Internacional Olhares Sobre as Políticas de Proteção aos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, realizado em Brasília no mês de junho. Informações sobre a situação atual, experiências vivenciadas na região e as diferentes perspectivas sobre a relação com povos indígenas isolados e recém-contatados foram apresentadas por indígenas do Vale do Javari e da região entre o Acre e Madre de Dios, no Peru. 

As discussões tiveram como enfoque prioritário a troca de experiências entre os diferentes povos que vivem na região. A provocação para o debate foi o desafio das políticas de proteção em um cenário de intensificação das ameaças aos direitos indígenas no campo político e de constantes pressões de invasores em seus territórios.

Só na área de abrangência da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari (FPEVJ), no Amazonas, o Estado brasileiro trabalha oficialmente com 16 registros de povos indígenas isolados, 10 são referências já confirmadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), três referências em estudo e outras três informações ainda não qualificadas.

“A Funai confirmou dez grupos de isolados na Terra Indígena Vale do Javari. Para nós indígenas existem mais grupos. Em algum momento eles irão sair nas aldeias, como aconteceu no Massapê, aldeia do povo Kanamari em 2014”, diz Paulo Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Para Paulo, o aumento das pressões externas às Terras Indígenas com presença de isolados aumenta o risco das situações de contato. “O risco de contato é real, pode acontecer a qualquer momento. Nesse momento, os invasores estão entrando nos rios Quixito, Itacoaí, Ituí, que são territórios de isolados. Nosso medo é que os isolados tentando impedir essas práticas, sejam atacados pelos caçadores com armas de fogo”, comenta.

Adauto Kulina, da Associação Indígena Kulina do Vale do Javari (AIKUVAJA) é outro que chama atenção para o risco constante de encontros com invasores. “A qualquer momento se eles virem caçadores pescadores e madeireiros, que são muitos no rio Curuçá, com certeza vai haver conflito. Eles não conhecem as pessoas, eles pensam que vai voltar tudo outra vez os massacres que os antepassados deles tiveram”, reforça.

Na área de abrangência da Frente de Proteção Etnoambiental Envira, no Acre, são X registros, Y referências confirmadas, Z referências em estudo e W informações ainda não qualificadas. Existe ainda uma série de informações no lado peruano do Vale do Javari e em Madre de Dios, no Peru, sem que exista uma política de Estado consolidada para atender a estes povos.

Na fronteira Brasil-Peru as invasões atingem diversas áreas de circulação de isolados. Atualmente cinco das dez propostas apresentadas por organizações indígenas no Peru não contam com reconhecimento por parte do Estado, apesar de alguns processos tramitarem há mais de quinze anos nos órgãos responsáveis. A falta de uma política do Estado peruano na proteção de isolados e as concessões para exploração de riquezas nos territórios indígenas foi criticada por Julio Cusurichi, líderança indígena do povo Shipibo e presidente da organização peruana Federação Nativa Madre de Dios (Fenamad).

“Ainda não existe uma política pública do governo peruano para atender a estes povos. Existe a ameaça de pessoas externas, como madeireiros, e as reservas criadas nesta região não são intangíveis. Se o governo decide, pode outorgar direitos [a terceiros]. Já existe inclusive o interesse de rodovias que podem afetar os territórios de isolados”, diz Julio Cusurichi.

As concessões madeireiras, a presença do narcotráfico e a falta de um sistema de controle e vigilância fez com que muitos dos grupos de isolados do Peru passassem a circular também no Acre, região do Alto Envira, onde estão as Terras Indígenas Alto Tarauacá, TI Riozinho do Alto Envira, TI Kampa e Isolados do Rio Envira e TI Mamoadate.

“Quando cresceu a questão de madeireiras ilegais no lado peruano chegou a ter quase cinco mil madeireiros ilegais no rio Las Pedras. Os parentes isolados andam nessa área e começaram a ir cada vez mais para o lado brasileiro, chegando perto da nossa Terra Indígena”, conta Lucas Manchineri, da TI Mamoadate.

Respeito ao isolamento
Durante o Encontro Internacional Olhares Sobre as Políticas de Proteção aos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato os participantes relataram o aumento dos relatos de situações de avistamento ou mesmo de ocasiões de aparições de isolados nas aldeias. Os debates também reforçaram a necessidade do respeito ao direito de isolamento voluntário e da autonomia desses povos.

“Os isolados aparecem nas aldeias e mexem nas nossas coisas, pegam macaxeira, banana. Mas nós temos de respeitar, não podemos mexer com eles”, comenta Ricardinho Kampa, da aldeia Nova Floresta, TI Kampa e Isolados do rio Envira.

Iva Rapa Matis, liderança da aldeia Bukuwak, TI Vale do Javari, também falou sobre as aparições dos isolados e a preocupação de seu povo. “Nós não chegamos perto dos isolados, sabemos que hoje em dia temos doenças e não podemos levar isso para eles. Mas eles podem aparecer em nossas aldeias e quanto a isso não podemos fazer nada. Eu fico triste sem saber o que vamos fazer, pois são nosso parentes”, lamenta.

Para fazer valer esse respeito ao isolamento, os diversos povos que compartilham territórios com isolados na fronteira Brasil-Peru tem buscado seus próprios acordos e estratégias para garantir a proteção.

“Tivemos uma reunião na cidade de Atalaia do Norte e dissemos que nós mesmos iremos proteger e vigiar aquela área do rio Curuçá porque a situação da Funai é muito ruim”, diz Adauto Kulina.

“Nós Kanamari discutimos que nós não devemos impactar povo nenhum, não queremos que eles tenham contato nenhum. Basta a gente, o que sofremos hoje com toda essa calamidade pública em que não temos nenhuma assistência”, conta Adelson Kora Kanamari, assessor da Associação Kanamari do Vale do Javari (Akavaja).

As estratégias passam também pela forma como as comunidades indígenas que compartilham seus territórios com isolados reservam áreas de uso. Durante a elaboração do Plano de Gestão Territorial, o povo Manchineri e Jaminawa começaram a discussão de reservar uma parte de seu território tradicional para os isolados, já que os madeireiros estavam encurralando esses grupos.

“Nós dividimos essa área para que eles possam fazer as caçadas deles, a pescaria, seus roçados. Até agora são três anos que não andamos nessa área para respeitar e evitar o conflito com nossos parentes isolados daquela região”, explica Lucas Manchineri.

No Acre, em 2009 os Kaxinawá convidaram a FPE Envira para trabalhar em uma oficina de informação e sensibilização sobre povos isolados. Passaram em todas as aldeias coletando depoimentos de contato visual, vestígios, saques e até mesmo conflitos no passado. Começaram a mapear por onde os isolados habitam e perambulam e ao mesmo tempo conscientizar as comunidades do entorno sobre os direitos dos povos isolados e de como lidar com as ocorrências.

“O que mais avançou foi a conscientização dos próprios Huni Kuin e de seus vizinhos ribeirinhos, seringueiros”, opina Nilson Huni Kuin, da TI Kaxinawá do rio Humaitá.

Os Kaxinawá também decidiram criar um ponto estratégico de vigilância, fiscalização e monitoramento desses povos no alto rio Humaitá. Recentemente, os Matsés também fizeram oficinas de formação em vigilância territorial onde as experiências acumuladas através dos muitos anos de invasões em seu território foram compartilhadas. Através das oficinas, os Matsés construíram um Plano de Vigilância que leva em consideração a proteção dos isolados que vivem no entorno de suas aldeias no Brasil e no Peru.

Intercâmbios
As mesas de debate também ressaltaram a importância das alianças entre as organizações indígenas do Peru e do Brasil. Lucas Manchineri e Julio Cusurichi contaram dos encontros que o povo Manchineri do Brasil e Peru fizeram para trocar experiências.

José Pacha Mayuruna e André Mayuruna, da Organização Geral Mayuruna (OGM), também falaram sobre as Reuniões Binacionais Matsés, encontros anuais que acontecem desde 2009 reunindo lideranças das aldeias Matsés do Brasil e do Peru e que em 2016 chegou a sua sexta edição.

Beatriz Huertas, antropóloga que pesquisa os povos indígenas isolados no Peru e já prestou assessoria para diversas organizações indígenas locais, lembrou as alianças e trocas de experiências que ajudaram as comunidades na conquista de importantes avanços. No ano 2000 foram feitos os estudos para a criação da Reserva Indígena Madre de Dios. Nesse mesmo ano a Fenamad foi até o Acre, e se articulou com líderes indígenas, com a Comissão Pró-Índio do Acre e com a Funai e pôde obter informações valiosas para fundamentar a existência da reserva e a existência de povos isolados nessa região

Nesse mesmo sentido a Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana (Aidesep) vem trabalhando para promover a criação de corredores territoriais para povos indígenas isolados que protejam os dois lados da fronteira.

“Com esta proposta se pretende proteger todos os povos indígenas isolados e recém-contatados da região e para isso se propõe a participação ativa das aldeias que estão no setor brasileiro, das associações indígenas, indigenistas e comunidades”, fala Nery Zapata Fasabi, da organização peruana Aidesep.

Cooperação internacional
Em uma Declaração Conjunta de Intenções, acordo firmado entre Alemanha, Noruega e Peru na política de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, foi criado um fundo para apoiar projetos que visem proteger a Floresta Amazônica peruana. Entre as atividades apoiadas está a proteção das reservas destinadas aos isolados com postos de controle e vigilância.

Para Beatriz Huertas, mesmo com o acordo entre os países, no Peru existem problemas estruturais de fundo que não permitem uma proteção efetiva das reservas.

“Os narcotraficantes seguem entrando, existem madeireiros ilegais e isso por uma série de razões. Existe muita corrupção que não permite que essas ações sejam efetivas. Também não existe um regime de sanções para pessoas que invadam territórios de povos isolados. Existem postos de controle, mas se alguém entra não acontece nada porque não existe uma lei, uma norma que sancione esse ingresso”, comenta Huertas.

As falhas do Estado peruano nas políticas de proteção de territórios indígenas se repetem no caso brasileiro. Essas falhas colaboraram para um corte de quase R$ 200 milhões no valor enviado pela Noruega ao Fundo Amazônia, diante da falta de garantias apresentadas pelo governo brasileiro em suas políticas socioambientais e do avanço do desmatamento em 2016.

Em outubro de 2016, a Folha de S. Paulo noticiou o conteúdo de um memorando interno enviado pela diretoria administrativa da Funai ao Ministério da Justiça que explicitava a crítica situação financeira do órgão. O documento previa impactos como a redução de 43% nas ações de fiscalização e combate a invasões de terras indígenas e o encerramento das atividades em 6 das 12 Frentes de Proteção Etnoambientais, o que ainda não se confirmou.

Ainda segundo a FSP, para o setor da Funai destinado a proteção de índios isolados e recém contatados, a previsão orçamentária de R$ 4 milhões em 2016 caiu para R$ 1,9 milhão em 2017. Parte dos efeitos já são sentidos na ponta, nos territórios indígenas. No Vale do Javari, duas das três Bases de Proteção Etnoambiental foram fechadas.

É justamente nesse cenário de desmonte da política indigenista de Estado que as comunidades indígenas no Brasil e no Peru buscam soluções conjuntas que reforcem sua autonomia sob os territórios indígenas. 

 

 

FONTE:  CTI – Centro de Trabalho Indigenista

NOTA

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