No ano passado, o desmatamento na Amazônia voltou a crescer, violando os compromissos do Brasil ao aderir ao Acordo de Paris, de fazê-lo reduzir. Quase imediatamente, os governos da Noruega e da Alemanha reagiram. Criticaram e pressionaram o Brasil a adotar medidas contra a derrubada da floresta nativa. Sem resposta, a Noruega, principal investidor em ecologia na região, reduziu à metade a sua participação no Fundo Amazônia, que é de quase todo o seu orçamento. O Brasil perdeu 200 milhões de reais com essa decisão.
Em Brasília, São Paulo e outras capitais, houve indignação. Os países estrangeiros não estavam respeitando a autonomia nacional. Certamente posavam de bonzinhos não porque queiram preservar a Amazônia. É porque querem explorá-la. A Noruega, principalmente, em função dos seus interesses e investimentos realizados na área do Pré-Sal, com petróleo, e no controle do ciclo do alumínio no Pará, dentre outros objetivos. A Alemanha, porque vende tecnologia, produtos e serviços nesse setor.
Tudo pode ser até verdade. Algumas críticas procedem, outras são injustas, várias são fantasiosas ou mesmo mentirosas. Ainda que fossem integralmente verdadeiras, o que resultaria delas? Mais desmatamento, indiferentemente a uma razão para prossegui-lo. A suspensão das derrubadas, no utópico desmatamento zero, não é mais apenas por razões ecológicas ou humanitárias. É também por motivos econômicos.
Países que investem em maior conhecimento da natureza usufruem os benefícios de contar com um meio ambiente mais favorável à vida humana num planeta seriamente ferido. Eles também começam a ganhar dinheiro. Já há mercado que funciona quando alguém prova que a madeira comercializada vai continuar o seu ciclo porque sua origem está sendo mantida. Ou que a redução na emissão de gases de efeito estufa ou outros agressores do clima estão em baixa. Papéis já existem para avalizar esse novo circuito de dinheiro. Na Amazônia, apenas duas empresas preencheram todos os requisitos desse mercado especial, ambas estrangeiras.
O desmatamento cresceu, na contramão do que se exige para uma economia atualizada à consciência da humanidade neste século, porque os desmatadores ainda acham que a agricultura só floresce se não há mais árvores no terreno, que a mata é fonte de problemas ou se movem pelo interesse imediato do lucro maior e mais fácil. Uma utilização racional da floresta custa pelo menos 70% mais caro do que o mero abate e comercialização de árvores em pé ou transformadas apenas em toras. O futuro a Deus pertence, para lembrar a célebre frase de um ministro da Justiça da ditadura, Armando Falcão, cuja biografia tinha a ver com muita coisa, mas não com a justiça.
Como há mais de meio século, quando começou o ciclo da destruição intensiva da floresta amazônica, seu uso inteligente continua a ser mínimo. Calcula-se que a produção de bens de origem florestal por métodos racionais, atestados através de certificação por órgão de credibilidade internacional, talvez nem chegue a 1% do total. Pelo menos 80% das derrubadas são francamente ilegais, proporção que não baixa, apesar de todo avanço na política e na prática ecológica do Brasil.
A mentalidade do pioneiro, aquele que se defronta diretamente com as áreas ainda tidas como selvagens da Amazônia, rapidamente submetidas à “civilização”, é quase a mesma dos bandeirantes que desbravaram o interior do Brasil à base de machado e arma de fogo. Não surpreende que a natureza e o habitante nativo sejam suas vítimas. Nem que o brasileiro destrua mais natureza do que qualquer outro povo da Terra e que a violência nas áreas de expansão da economia nacional seja das maiores dentre todos os lugares do planeta, excetuados os países em guerra, aberta ou civil – mas nem todos.
É no ponto de contato desse pioneiro com os remanescentes do ambiente natural e humano que a ação do poder público se faz necessário, tanto na forma educativa e preventiva quanto na repressiva, com base nas leis e nas normas de proteção a interesses mais elevados (e prevalecentes) do que os dos pioneiros, por mais poderosos que sejam.
Quase sem colocar dinheiro seu no Fundo Amazônia, de mais de um bilhão de dólares, o governo usa os recursos sem respeitar suas regras. Ao invés de aplica-los exclusivamente em projetos em defesa da natureza (em número insuficiente até para absorver a totalidade da verba), os usa em atividades de custeio, como o pagamento dos fiscais do Ibama. Menos mal, porém: o efetivo baixou de 900 para 600. Já era insatisfatório. Agora se tornou simbólico.
Não parece ser um fato isolado ou casual. Faz parte de uma série de eventos que estão fazendo a Amazônia retroceder no caminho de uma aproximação mais harmônica do homem com a natureza, a partir de uma melhor compreensão do que a região é e significa. A investida do comércio exterior brasileiro em commodities é o motor do avanço sobre áreas novas, mesmo com um passivo imenso de áreas já degradadas, que poderiam ser reutilizadas. Mas ainda é mais imediato e lucrativo ir em frente, derrubando mata, do que investir em métodos superiores para retomar áreas abandonadas justamente por esse sistema de migração.
O componente político desse mecanismo dinamiza essa dinâmica perversa. Sob Lula e Dilma, em função da visão desenvolvimentista dos dois presidentes (fascinados pela diretriz do regime militar) de “integrar para não entregar”, e do defasado expansionismo do “socialismo real”, também antiecológico, dos ideólogos do PT. Sob Temer, pela fragilidade do seu governo, que depende do “centrão” e, dentro dele, da bancada ruralista, representante do agronegócio, para existir e fazer o que quer.
Nem todos os sinais e indicadores no horizonte são negativos. O Ibama, por exemplo, deverá adotar um novo sistema, totalmente eletrônico, para controlar a comercialização de madeira no Brasil. Talvez permita eliminar ou pelo menos reduzir substancialmente o uso de documentação fraudada para esquentar madeira extraída ilegalmente, sobretudo de áreas protegidas, que são o mais alvo atual (de que é o maior exemplo a pressão sobre a reserva de Jamanxim, no oeste do Pará).
O governo federal promete exigir de quem fornece para a administração pública ou executa obras por ela contratadas a comprovação da origem da madeira, que só será aceita se for obtida de forma considerada responsável. Novas promessas, e mesmo conquistas, que provavelmente não terão a extensão e profundidade necessárias para impedir que a derrubada de mata nativa prossiga na Amazônia. Talvez nem mesmo que volte a crescer. A Amazônia continuará a desaparecer a cada novo dia.
A Amazônia segundo Lúcio Flávio Pinto
Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Leia mais aqui. Veja outros artigos do autor.
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