Infelizmente, há também uma história de casos paralelos nas barragens já construídas na Amazônia, onde as autoridades elétricas anunciaram que não iam fazer algo e depois fizeram exatamente aquilo que haviam prometido não fazer. No caso de Balbina, um “esclarecimento público”, divulgado dias antes de fechar a barragem, prometeu encher apenas até a cota de 46 m (a elevação acima do nível do mar), criando um reservatório de 1.580 km2 [1]. O enchimento até 50 m seria apenas após anos de estudos da qualidade da água. Porém, o que sucedeu foi que o reservatório foi enchido diretamente até os 50 m, e até mesmo um pouco (10 cm) acima desta marca.

Durante o processo de enchimento de Balbina, este autor obteve o plano a ser seguido pelos engenheiros da ELETRONORTE no local da barragem, indicando a intenção de aumentar o nível de água diretamente para a cota de 50 m [2]. O reservatório de Balbina hoje cobre 2.995,5 km2, de acordo com nossas medições de imagens de satélite [3]. O reservatório foi operado consistentemente acima da cota de 50 m, e em dois anos foi acima da cota de 51 m [3].

O outro caso de desinformação documentado, provendo um paralelo para o complexo Belo Monte/Babaquara, é o projeto Tucuruí-II, que acrescentou 4.000 MW de capacidade para a usina de Tucuruí no Estado do Pará. Nos termos da lei, qualquer projeto de hidrelétrica com mais de 10 MW precisava de um EIA (um limite posteriormente elevado a 30 MW). A ELETRONORTE estava preparando os termos de referência para este relatório quando o Presidente do Brasil simplesmente voou para o Pará e liberou o dinheiro da obra. A justificativa era que não aumentaria o nível de água no reservatório acima da cota de 70 m de Tucuruí-I, e, portanto, não teria nenhum impacto e não precisava do estudo [4].

Após a conclusão da obra, o nível da água foi levantado, e a usina de Tucuruí vem operando na cota de 74 m desde 2002 [5, 6]. Da mesma forma, após a construção de Belo Monte é provável que a construção de Babaquara (Altamira) simplesmente prossiga quando chegar a sua hora no cronograma. O cronograma antes de lançar o atual cenário oficial previa essa barragem enorme entrar em operação sete anos após Belo Monte ([7], p. 145).

Nunca foi tão relevante a famosa frase de George Santayana [8] de que “Aqueles que não conseguem lembrar do passado são condenados a repeti-lo”.

A lógica das barragens a montante vem do hidrograma do rio Xingu, ou seja, o fato que durante 3 meses não teria água suficiente para tornar uma turbina sequer na casa de força principal. Uma análise econômica, feita pelo Fundo de Conservação Estratégica (CSF), demonstra a completa inviabilidade de Belo Monte sem o armazenamento de água nas grandes barragens a montante [9].

A tentação financeira seria grande de construir Babaquara (Altamira) após a “crise planejada” de ficar sem água suficiente em Belo Monte, com um acréscimo de US$ 1,4-2,3 milhões por ano ao valor da energia gerada em Belo Monte ([9], p. 76). [12]

NOTAS

[1] Brasil, ELETRONORTE (Centrais Elétricas do Norte do Brasil, S.A.) (1987) “Esclarecimento Público: Usina Hidrelétrica Balbina. Modulo 1, Setembro 1987” ELETRONORTE, Brasília, DF. 4 pp.

[2] Brasil, ELETRONORTE (Centrais Elétricas do Norte do Brasil, S.A.) (1987) “UHE Balbina: Enchimento do reservatório, considerações gerais” BAL-39-2735-RE. ELETRONORTE, Brasília, DF. 12 pp + anexos.

[3] Feitosa G.S., Graça P.M.L.A. & Fearnside P.M. (2007) “Estimativa da zona de deplecionamento da hidrelétrica de Balbina por técnica de sensoriamento remoto” In  Epiphanio, J.C.N. Galvão L.S. & Fonseca L.M.G. (eds.) Anais XIII Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, Florianópolis, Brasil 21-26 abril 2007. Instituto Nacional d e Pesquisas Espaciais (INPE), São José dos Campos, São Paulo. pp. 6713–6720. http://marte.dpi.inpe.br/col/dpi.inpe.br/sbsr@80/2006/11.13.15.55/doc/6713-6720.pdf

[4] Indriunas L. (1998) “FHC inaugura obras em viagem ao Pará” Folha de São Paulo, 14 de junho de 1998, p. 1-17. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc14069828.htm

[5] Fearnside P.M. (2006) “Dams in the Amazon: Belo Monte and Brazil’s hydroelectric development of the Xingu River Basin” Environmental Management, 38(1) 16-27. doi: 10.1007/s00267-005-00113-6

[6] Fearnside P.M. (2006) “A polêmica das hidrelétricas do rio Xingu” Ciência Hoje, 38(225) 60-63.

[7] Brasil, ELETROBRÁS (Centrais Elétricas Brasileiras) (1998) Plano decenal 1999-2008. ELETROBRÁS, Rio de Janeiro, RJ.

[8] Santayana G. (1905) Reason in common sense. Vol. 1. In The Life of Reason: The Phases of Human Progress. Dover Publications, Inc., New York, NY, E.U.A., 5 vols.

[9] de Sousa Júnior W.C., Reid J. & Leitão N.C.S. (2006) Custos e benefícios do Complexo Hidrelétrico Belo Monte: Uma abordagem econômico-ambiental. Conservation Strategy Fund (CSF), Lagoa Santa, Minas Gerais. 90 pp. http://conservation-strategy.org/sites/default/files/field-file/4_Belo_Monte_Dam_Report_mar2006.pdf

[10] Fearnside P.M. (2017) “Planned disinformation: The example of the Belo Monte Dam as a source of greenhouse gases”. In: Liz-R. Issberner & P. Lena (eds.) Brazil in the Anthropocene: Conflicts between Predatory Development and Environmental Policies. Routledge, Taylor & Francis Group, New York, E.U.A., pp. 125-142.

[11] Fearnside P.M. (2012) “Desafios para midiatização da ciência na Amazônia: O exemplo da hidrelétrica de Belo Monte como fonte de gases de efeito estufa”. In: Fausto Neto A. (ed.) A Midiatização da ciência: Cenários, desafios, possibilidades, Editora da Universidade Estadual da Paraíba (EDUEPB), Campina Grande, Paraíba. pp. 107-123.

[12] Este texto é traduzido e atualizada de [10], que foi adaptado de [11]. As pesquisas do autor são financiadas pelo Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq: proc. 304020/2010-9; 573810/2008-7), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM: proc. 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA: PRJ15.125).

Leia os artigos da série: Desinformação no EIA de Belo Monte: 1 – Resumo da série

Desinformação no EIA de Belo Monte: 2 – Barragens como a “única opção”

Desinformação no EIA de Belo Monte: 3 – A energia que “precisamos”

Desinformação no EIA de Belo Monte: 4 – Barragens como “energia limpa”

Desinformação no EIA de Belo Monte: 5 – A “Fábrica de metano”

Desinformação no EIA de Belo Monte: 6 – Coca-Cola versus Guaraná

Desinformação no EIA de Belo Monte: 7 – Barragens no Inventário Nacional de gases de Efeito Estufa

Desinformação no EIA de Belo Monte: 8 – O EIA e o aquecimento global

Desinformação no EIA de Belo Monte: 9 – A emissão inicial de metano

Desinformação no EIA de Belo Monte: 10 – A “mentira institucionalizada”

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link.

FONTE: AMAZÔNIA REAL