Há 40 dias como ministro da Justiça e Segurança Pública, Torquato Jardim fez neste fim de semana a sua primeira viagem à Amazônia. O ministério disse que a ida a Boa Vista (RR) e a Manaus (AM) foi para fortalecer o diálogo e buscar soluções conjuntas das principais demandas das populações indígenas. Porém, a principal delas, que são as demarcações dos territórios tradicionais, irá esperar “o cuidado” do governo do presidente Michel Temer (PMDB) para “evitar liminares que sustem” os processos na Justiça. É o que disse o ministro à Amazônia Real.

 “Estamos examinando caso a caso para termos atendido adequadamente os requisitos técnicos. Por que o cuidado? Para evitar que haja por parte de outros interessados, públicos ou privados, recursos na Justiça, liminares que sustem o processo”, disse Torquato Jardim.

“Uma vez que haja uma liminar judicial sustando se perde de vista o tempo. Então, demorar um tempo no Ministério da Justiça é ganhar tempo [na demarcação], na medida em que se evita uma liminar judicial”, completou o ministro. 

Em um ano de governo completado no mês de maio, o presidente Michel Temer não homologou uma terra indígena no Brasil. Para Torquato Jardim, “o que está parado será atendido na maior velocidade possível, com razoabilidade.”

No final do ano passado, o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) denunciou que 19 processos de demarcação terras indígenas foram restituídos pela Casa Civil da Presidência da República ao Ministério da Justiça com recomendações de alterações e diligências para a Fundação Nacional do Índio (Funai) executar.

Desses processos, 13 são de áreas já homologadas, sendo que a maioria depende do decreto do presidente Michel Temer. Além desses processos, existem ao menos 14 territórios que foram regularizados pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) dias antes de deixar o governo, que podem ser revistos pelo governo Temer por pressões da bancada ruralista no Congresso. 

Na viagem à Amazônia, Torquato Jardim esteve acompanhado do delegado-geral da Polícia Federal, Leandro Daiello, e pelo presidente interino da Fundação Nacional do Índio (Funai), o general Franklimberg Ribeiro de Freitas. A comitiva visitou lideranças indígenas em Boa Vista e abrigos dos migrantes venezuelanos na capital roraimense e em Manaus. 

O ministro Torquato Jardim é advogado e foi professor de Direito Constitucional na Universidade de Brasília (UnB) de 1977 a 1995. Em 2016, foi ministro da Transparência do governo Temer. Desde 29 de maio ocupa a chefia do Ministério da Justiça.

Ele disse à reportagem da Amazônia Real que desde que assumiu o cargo tem recebido lideranças indígenas de várias partes do país para tratar dos mais diversos temas, em especial a demarcação de terras. Para ele, essa não é uma questão simples de se resolver, demandando esforços.      

“[A demarcação de terras] pede tempo, pede dinheiro e leva sempre ao confronto. Você tem o primeiro passo que é o parecer técnico do antropólogo da Funai, que fica em contraste com pareceres técnicos de outros antropólogos, às vezes vários. Há as partes afetadas que têm o direito legal de, em 90 dias, contestar aquele primeiro [parecer]. Muita coisa é levada a juízo. Muitas questões estão sustadas na Justiça por ordem liminar”, afirmou.

O processo de demarcação de terras indígenas no Brasil, regulamentado pelo Decreto nº 1.775/96, consiste em três etapas, todas elas de competência exclusiva do Poder Executivo. São elas: 1) Identificação (que incluiu a delimitação do território a cargo da Funai), 2) declaração dos limites (a cargo do ministro da Justiça) e 3) homologação da demarcação, a cargo da Presidência da República.

Entre os processos de demarcação que podem ser revistos pelo governo Temer estão a Terra Indígena Sawré Muybu, ameaçada pelo projeto de um conjunto de usinas hidrelétricas na Bacia do Rio Tapajós (PA), e a Terra Indígena Dourados Amambaipeguá 1, em Caarapó, no Mato Grosso do Sul, dos índios Guarani-Kaiowá, que são ameaçados por produtores de gado e soja. Em Boa Vista, índios Macuxi reivindicam a demarcação das terras da Comunidade Indígena Anzol, que já foi determinada pela Justiça Federal. 

Ameaçam as demarcações de terras também a Portaria no. 68 que criou, no governo Temer, o Grupo Técnico Especializado (GTE) para analisar os processos, tirando o poder que era exclusivo da Funai. Também há a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que prevê novas regras para demarcação de terras indígenas. Patrocinada pela bancada ruralista, a PEC está em tramitação no Congresso Nacional.  

Marco temporal no STF

Na avaliação de Torquato Jardim, um dos problemas que emperram a demarcação de terras no Brasil é a não deliberação, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), de pontos que foram estabelecidos a partir do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, em Roraima, no ano de 2009.

“O STF estabeleceu 19 condições [para as demarcações]. Até hoje o tribunal não deliberou em casos posteriores se são 19 que obrigam todo Brasil ou se são 19 para serem conversadas, negociadas a cada parte do território brasileiro”, disse o ministro.

A questão levantada pelo ministro Torquato Jardim no STF é a chamada tese do marco temporal foi adotada no julgamento da homologação da TI Raposa Serra do Sol em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal. A homologação havia sido assinada em 2005, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas o governo de Roraima contestou judicialmente. Na época do julgamento no STF, houve muita dificuldade de chegar a um acordo sobre as dimensões da Terra Indígena. As populações indígenas queriam que a homologação fosse contínua, contrariando interesses de ocupantes não-indígenas do território, sobretudo fazendeiros. 

Ao confirmar a homologação do território de 1,7 milhão de hectares de área contínua, em um julgamento que começou em 2008, o STF estabeleceu 19 condicionantes. Uma delas é que povos indígenas têm direito à posse de seus territórios tradicionais, mas com a condição que a comunidade já esteja ocupando efetivamente o local na data do dia 8 de outubro de 1988, data da Constituição Federal. Esta interpretação é criticada por juristas. Leia mais aqui.

Para Funai falta recursos

Segundo a Funai, o Brasil tem atualmente uma população indígena estimada em 1 milhão de pessoas. O general Franklimberg de Freitas disse que 438 terras indígenas estão demarcadas, 110 em processo de estudo e 14 com determinação da Justiça para fazer a demarcação. “Mas cadê o recurso para fazer imediatamente?”, questionou Freitas.

Além de verba, ele disse que faltam funcionários na Funai. “Na década de 90, tínhamos 4.500 servidores; hoje em dia temos 2.142 para atender a demanda de uma população de 1 milhão de habitantes”, explicou o presidente da Funai.

De acordo com o levantamento realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), no país existem 480 terras indígenas homologadas e reservas. Estão identificadas 44 áreas,108 em identificação e 72 declaradas.

Terras e mineração

Ainda em Manaus, Torquato Jardim falou sobre a diversidade de pautas das populações indígenas do país, não podendo se impor uma solução única, sendo necessário o respeito às especificidades de cada região. As demandas dos grupos de Roraima, afirma ele, não são as mesmas dos do Amazonas, Bahia ou Maranhão.  O ministro afirmou já ter recebido cerca de 100 lideranças indígenas de 15 etnias em seu gabinete.

“Os de Rondônia querem mineração. Produzindo sua própria mineração e riqueza no subsolo. Isso traz novos desafios para eles e para o governo. Se eles não querem os não-índios explorando, eles terão que adquirir conhecimentos de engenharia e gestão de negócios, operação de máquinas”, diz o ministro.

“Os de Mato Grosso do Sul têm mais preocupação com demarcação e mais espaço demográfico porque o espaço que lhes foi reservado já é insuficiente para a população”, disse Torquato Jardim, em referência ao caso dos índios Guarani-Kaiowá, que fazem a retomada do território tradicional nos municípios de Caarapó e Dourados.

Nomeação provoca saia-justa

Em Boa Vista, o ministro Torquato Jardim se encontrou com lideranças indígenas na manhã de sábado (8) no Conselho Indígena de Roraima (CIR), principal organização da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Lideranças Macuxi, Wapichana e Yanomami pediram uma ação efetiva do governo para as questões como demarcações de terra, saúde, educação e repudiaram a nomeação do novo coordenador regional da Funai, Armando do Carmo Araújo, que estava na comitiva do ministro.

As lideranças disseram a Torquato que não foram consultadas sobre o nome de Araújo, que é genro do deputado federal Édio Lopes (PR-RR), relator do projeto que prevê a mineração em terras indígenas.  Conhecido como “Neto” na política local, Armando foi nomeado por meio da Portaria no. 1.032, publicada no Diário Oficial da União em 7 de julho de 2017. Segundo os indígenas, quem indicou o coordenador foi o senador Romero Jucá (PMDB-RR), líder do governo e autor da “MP da Grilagem”

“O Conselho Indígena de Roraima é contrário à nova nomeação [de Armando Araújo]. Vemos isso como jogo político e nada mais”, criticou Enock Barroso, coordenador-geral do CIR.

O tuxaua Pedro Souza, da comunidade Guariba, na Raposa Serra do Sol, disse que há uma intervenção política nas decisões que tratam da questão do índio. “Fomos destruídos. A cultura foi invadida, a terra foi invadida e o pouco que sobrou a gente está aqui para defender isso”, criticou. Ele também questionou: “A terra é da União. Será que nós somos propriedade de um político? Queremos ser respeitados como indígena, como índio”, encerrou sob os aplausos dos “parentes”.

Abordados pela reportagem sobre a nomeação do coordenador Amando Nogueira, o ministro Torquato Jardim e o presidente da Funai, general Franklimberg de Freitas, não comentaram sobre a reação das lideranças.

Linhão na terra dos Waimiri Atroari

A reportagem da Amazônia Real apurou que um dos temas tratados pelo ministro Torquato Jardim com políticos de Roraima foi a obra de construção do linhão de Tucuruí entre as capitais Manaus e Boa Vista. No percurso de 721 quilômetros, 125 ficam dentro da Terra Indígena Waimiri Atroari. Os índios são contrários ao projeto devido aos impactos socioambientais. Jardim afirmou à reportagem que é favor do linhão, desde que se cumpram os princípios estabelecidos pela legislação.

“A linha de energia elétrica é fundamental, mas está seguindo a lei. O estudo básico, o quarto estudo básico, foi o primeiro que pôde ser aprovado, só foi aprovado em março passado”, declarou Torquato Jardim.

O ministro disse que as conversas com os Waimiri Atroari estão suspensas até o fim de agosto por respeito ao luto que eles estabeleceram pela morte do sertanista José Porfirio Carvalho.

“As comunidades com as quais ele trabalhava têm o rito de pêsames, de homenagens póstumas, que vai até agosto. Por isso eles já sinalizaram que voltamos a conversar em 1º de setembro. O timing está agora sustado em respeito à cultura dos grupos indígenas afetados”, afirmou.

Já o presidente da Funai, que já teve negado um pedido para conversar com os Waimiri Atraori, disse que “em setembro será o reinício das atividades referente ao licenciamento do Linhão de Tucuruí”, o que demostra que o governo Temer tem pressa em resolver a questão. Aliado do projeto da rede de transmissão, o senador Romero Jucá fez propaganda da obra em vídeo recentemente publicado na internet.

O temor dos índios Waimiri Atroari com a obra do Linhão de Tucuruí é que ela prevê a instalação de 250 torres com mais de 40 metros de altura, o que pode deixar a população vulnerável ao contato direto com operários. São mais de 1.600 indígenas considerados de recente contato pela Funai.

Antes de conversar com a imprensa em Manaus, o ministro Torquato Jardim visitou o abrigo de indígenas venezuelanos Warao. Em Boa Vista ele falou também sobre a ação humanitária na fronteira.

 

Fabio Pontes e Eliane Rocha, especial para a Amazônia Real

 

VER REPERTÓRIO FOTOGRÁFICO EM: http://amazoniareal.com.br/torquato-diz-que-processo-de-demarcacao-demora-no-mj-para-evitar-liminares-na-justica/