A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) publicou no último dia 20 o relatório “A Expulsão de Ribeirinhos em Belo Monte”, elaborado a pedido do Ministério Público Federal (MPF) como forma de apontar caminhos que possam permitir o retorno dos ribeirinhos removidos pela construção da hidrelétrica e garantir a manutenção do modo de vida na região conhecida como Volta Grande do Xingu, no Pará. O documento foi produzido sob a coordenação das professoras Sônia Barbosa Magalhães e Manuela Carneiro da Cunha.
“As investigações levaram à conclusão de que a implementação da hidrelétrica de Belo Monte vem acompanhada de um processo de expulsão silenciosa das populações ribeirinhas do rio Xingu e os impactos não mitigados merecem efetiva e imediata ação reparatória”, afirmou Manuela Carneiro da Cunha durante a cerimônia de lançamento na ExpoT&C – mostra de ciência, tecnologia e inovação que faz parte das atividades da Reunião Anual da SBPC, neste ano realizada no campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte.
O relatório da SBPC foi elaborado por 26 especialistas multidisciplinares de diversas instituições do país, entre elas a Universidade Federal do Pará (UFPA), a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). O grupo incluiu antropólogos, ecólogos, ictiólogos, sociólogos, juristas, psicólogos, hidrólogos e engenheiros que se dedicaram a pesquisar a situação social, jurídica e ecológica da região.
A pesquisa foi feita por meio do levantamento das famílias expulsas, da análise do modo de vida pregresso dessas famílias e das avaliações delas sobre a adequação de possíveis áreas para reterritorialização. Os estudiosos e as famílias ribeirinhas analisaram os impactos na região e as alternativas para compor uma proposta para proteção e recomposição ambiental do rio Xingu.
Situação – Foram três grupos de ribeirinhos severamente atingidos por Belo Monte que não tiveram seus direitos reconhecidos e passaram por um processo de expulsão do rio: moradores da área que hoje é o reservatório de Belo Monte, moradores da área da Volta Grande do Xingu e indígenas nas duas áreas. Eles foram invisibilizados no processo de licenciamento ambiental da usina.
Os moradores da área onde hoje fica o reservatório da usina sofreram um processo violento de remoção compulsória no ano de 2015, quando a Norte Energia, empresa responsável pela hidrelétrica, passou a retirá-los sem considerar as peculiaridades de seu modo de vida, que dependia do rio e da cidade. Pessoas que viveram sempre de pesca e agricultura foram removidas, com indenizações irrisórias, e passaram a ocupar áreas periféricas no núcleo urbano de Altamira, longe do rio e sem qualquer possibilidade de reconstruir suas vidas.
As violações também são graves na região da Volta Grande do Xingu, onde não houve remoção de moradores, mas alteração brutal dos ecossistemas, com o desvio de mais de 80% da água do rio para movimentar as turbinas da usina. A região, batizada nos documentos do licenciamento ambiental de Trecho de Vazão Reduzida (TVR), não oferece mais condições ecológicas de sustentar as famílias ribeirinhas, tanto indígenas quanto não indígenas.
Conclusões – Uma das principais conclusões do relatório da SBPC é que a maneira como a empresa vem conduzindo o processo não garante condições para a reprodução da vida ribeirinha.
No processo de deslocamento compulsório provocado pela usina, se acumularam injustiças e violações de direitos e o modo de vida tradicional de boa parte da população foi ignorado. As irregularidades já haviam sido denunciadas em julho de 2015, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) – órgão licenciador de Belo Monte – chegou a suspender a retirada dos moradores das margens do Xingu. Em novembro de 2015, a usina recebeu a licença de operação, incluindo uma condicionante para que fosse garantido o modo de vida dos ribeirinhos. A constatação da SBPC é que não há essa garantia.
“Existe um vazio nesse processo de Belo Monte. Há um grupo, os ribeirinhos, que, embora sejam símbolo dos rios da Amazônia, foram invisíveis ao licenciamento da usina. Não é possível acreditar que esse processo vai ser corrigido se a mesma empresa que em 2015 expulsou os ribeirinhos do rio passa a se utilizar das mesmas referências e ainda assume a prerrogativa de definir o que é ser ribeirinho e o que ele precisa para reconstruir sua vida”, disse a procuradora da República Thais Santi, durante audiência pública realizada em novembro de 2016 em Altamira (PA) em que a SBPC apresentou os resultados de três meses de pesquisas, agora publicados em formato livro.
A SBPC critica a prática da Norte Energia de assentar os ribeirinhos em áreas de preservação permanente (APP) nas margens do rio, sem aquisição de novas áreas, o que excluiu muitos moradores de retornar ao Xingu.
Os estudos detectaram também um grave risco de conflitos se o processo continuar sem mudanças, tanto com fazendeiros donos de grandes propriedades próximas ao rio, como também entre os próprios ribeirinhos: há muitos casos de ribeirinhos retirados pela Norte Energia que viram as áreas onde sempre moraram serem entregues a terceiros.
De acordo com o relatório, a premissa básica do processo de reassentamento dos ribeirinhos terá que dar um giro de 180 graus: o princípio do autorreconhecimento, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, deverá ser cumprido e não pode caber à Norte Energia apontar quem tem direito aos beiradões e ilhas do Xingu.
Outro caminho apontado no documento é a necessidade de uma área contígua além das áreas de APP nas margens, em que os moradores tradicionais tenham oportunidade de reconstituir a vida ribeirinha, com recomposição de áreas degradadas e fortalecimento dos grupos e acesso a serviços públicos essenciais. A proposta é de criação de um território ribeirinho, iniciativa inédita no reconhecimento dos direitos dessas populações amazônicas.
Voz – Todas as propostas apresentadas no relatório foram discutidas com os próprios ribeirinhos, que, por recomendação da SBPC, criaram o Conselho Ribeirinho, reunindo 26 representantes de 13 localidades do Xingu.
Entre janeiro e fevereiro de 2017, em Altamira, o conselho se reuniu sete vezes para narrar e registrar as histórias das pessoas que, antes de Belo Monte, viviam nas localidades do Palhal, Cotovelo, Paratizinho, Trindade, Paratizão, Arroz Cru, Costa Júnior, Bacabal, Meranda, Pedão, Arapujá, Bom Jardim e Poção. A maior parte desses lugares foi engolida pelas águas da hidrelétrica, mas os moradores lutam para reconstruir a vida que sempre levaram e, para isso, fizeram um esforço de reconstituição das memórias e dos significados de viver como um ribeirinho.
“O ribeirinho tem uma história, ele tem um tempo de moradia no local, ele tem vizinhança, ele tem comunidade. Porque ribeirinho é família. O ribeirinho não vive sozinho. O ribeirinho não é só pescador. Ele é uma mistura. De pescador com agricultor, criador, caçador e extrativista. Ele vive na comunidade. E é na comunidade que ele divide a comida. E a comida ela não é comprada. É o peixe, é a caça, é a farinha, é a fruta do mato”, diz o documento produzido pelo conselho. “Ribeirinho tem história. Tem uma vida no rio. Um tempo prolongado no local. O que define o ribeirinho é a sua história, e não a casa ou o fato de estar na ilha num certo dia. A vida do ribeirinho é o rio”, explicam os ribeirinhos.
O conselho chegou a uma lista de moradores tradicionais que precisam ser reconhecidos pelo órgão licenciador de Belo Monte e pela empresa dona da usina. Da lista, alguns moradores já estão reassentados, muitos foram reassentados em áreas que não permitem a continuidade de modo de vida e outros foram completamente ignorados e vivem numa situação de marginalidade em Altamira. Há vários casos de pessoas que não têm nenhuma relação com o modo de vida ribeirinho mas que foram reconhecidas pela Norte Energia, em razão das limitações de seu cadastro, que não tem elementos para efetivamente identificar quem eram os moradores tradicionais do beiradão. Com isso, corre-se o risco de as margens do reservatório de Belo Monte serem ocupadas por pessoas que não têm um modo de vida sustentável.
“Criado o Conselho, foram os próprios ribeirinhos que impuseram sua participação na escolha dos destinos da comunidade, uma luta diária e ainda em curso”, destacou a procuradora da República Thais Santi durante o evento de lançamento do livro da SBPC.
No lançamento também estavam presentes a integrante do Conselho Ribeirinho Raimunda Gomes da Silva, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora titular aposentada da USP e professora emérita da Universidade de Chicago, e a professora titular da Unifesp Helena Nader, presidente da SBPC no período 2015-2017.
Comovida, Helena Nader reconheceu o trabalho como uma das principais realizações da SBPC em seus anos à frente da entidade, tendo afetado tantas vidas diretamente, e de forma tão profunda. Nader passou a palavra à integrante do Conselho Ribeirinho, que cantou um poema ribeirinho e emocionou a todos presentes no lançamento do livro.
- “Eita espinheira danada que o pescador atravessa para sobreviver,
- Vive com o barco nas costas, que dor insistente, não pode dizer,
- Sonha com belas promessas de gente importante, que vive ao redor,
- Mas entra ano, sai ano, e o tal de fulano é ainda pior,
- Esse é meu cotidiano, pois eu não me engano, pois Deus é maior,
- O mundo não acaba aqui, o mundo ainda está de pé,
- Enquanto Deus me der a vida, levarei comigo a esperança e fé.”
Acesse a íntegra do relatório.
Com informações da SBPC
Ministério Público Federal no Pará
Assessoria de Comunicação
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