O chefe do setor de clima do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que também era responsável pelo inventário nacional de gases de efeito estufa que foi entregue a Convenção de Clima em 2004, convocou uma reunião sobre as emissões das hidrelétricas, e depois colocou o transcrito do evento no site de MCT. Nisto ele deixou explícito que o grupo da ELETROBRÁS foi chamado para elaborar esta parte do relatório justamente para evitar consequências políticas indesejáveis se grandes emissões de hidrelétricas fossem admitidas:

Nós [o setor de clima do MCT] conversamos com o Prof. Pinguelli [Rosa] e eu pedi ajuda da ELETROBRÁS [sobre o assunto de emissões de gás de efeito estufa de hidrelétricas]; aliás quem coordenou esse trabalho [i.e., as estimativas das emissões por hidrelétricas, apresentadas no Inventário Nacional [1]] foi a ELETROBRÁS exatamente por causa disso, porque esse assunto estava virando político. Ele tem um impacto muito grande no nível mundial, nós vamos sofrer pressão dos países desenvolvidos por causa desse assunto. E esse assunto era pouco conhecido. É maltratado. Ele é maltratado e continua sendo maltratado pelo próprio Philip Fearnside e nós temos que tomar muito cuidado. Esse debate que esta acontecendo agora na imprensa mostra claramente isso, quer dizer, você pega qualquer declaração e leva para um lado para mostrar que o Brasil não é limpo, que o Brasil está se omitindo muito, que o Brasil, implicitamente, no futuro tem que ter compromisso [para reduzir as emissões]. Esse que é o grande debate político e nós estamos nos preparando para isso.” [2]

 

De fato, as emissões muito pequenas calculadas no Inventário Nacional para hidrelétricas omitem completamente as emissões da água que passa pelas turbinas e vertedouros ([1], p. 152). A emissão dada para a hidrelétrica de Tucuruí no Inventário Nacional foi de apenas 0,56 milhões de toneladas de carbono equivalente a CO2 por ano (para 1998-1999), uma discrepância de 1.437% comparado com meu valor de 8,55 ± 1,55 milhões de toneladas de carbono equivalente a carbono de CO2 por ano para 1990 [3].

Para a hidrelétrica de Samuel o Inventário Nacional calculou 0,12 milhões de toneladas de carbono equivalente a carbono de CO2 por ano (para 1998-1999), uma discrepância de 1.150% comparado com meu valor de 1,5 milhões para 1990 ou 146% comparado com meu valor de 0,29 milhões para 2000 [4, 5].

O mesmo grupo persiste em alegar que:

 

“Muita polêmica tem sido estabelecida recentemente a partir de estudos realizados em reservatórios amazônicos, especialmente a partir de estudos teóricos e baseados em extrapolações desprovidas de critérios científicos estabelecidos. Estes estudos têm forte viés contra qualquer tipo de aproveitamento hidrelétrico na Amazônia e colocam em dúvida a viabilidade destes empreendimentos no que se refere às emissões de gases de efeito estufa e foram realizados para as hidrelétricas de Tucuruí, Samuel e Balbina (Fearnside 1995 [6], Fearnside 1996 [7], Kemenes et al. 2007 [8]).” [9]

 

Infelizmente, quem lê os trabalhos citados na passagem acima encontrará um mundo diferente. Kemenes et al. [8] mediram uma grande emissão na hidrelétrica de Balbina e fez os cálculos para outras represas amazônicas, indicando todas as outras barragens como sendo pior do que os combustíveis fósseis [10]. Erros adicionais nos cálculos do grupo ELETROBRÁS pioram ainda mais o quadro para hidrelétricas, aproximadamente triplicando a parte da emissão por bolhas e difusão pelas superfícies dos reservatórios [11, 12].

As emissões previstas para barragens planejadas do tipo armazenamento mostram emissões mais elevadas do que os combustíveis fósseis [13, 14]. Em 2013, a Presidente Dilma Rousseff anunciou uma mudança na prioridade, deixando de priorizar barragens a fio d’água para dar prioridade às barragens do tipo armazenamento na Amazônia [15]. Esta mudança de política foi confirmada pelo governo de Presidente Michael Temer por uma declaração do Diretor-Geral da Agência Nacional de Energia Elétrica-ANEEL [16].[19]

 

NOTAS

[1] Brasil, MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia) (2004) Brazil’s initial national communication to the United Nations Framework Convention on Climate Change. MCT, Brasília, DF. 271 pp. http://www.mct.gov.br/upd_blob/0005/5142.pdf

[2] Brasil, MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia) (2002) “Degravação do workshop: Utilização de Sistemas Automáticos de Monitoramento e Medição de Emissões de Gases de Efeito Estufa da Qualidade da Água em Reservatórios de Hidrelétricas. Centro de Gestão de Estudos Estratégicos do MCT, Brasília – DF, 06 de fevereiro de 2002” MCT, Brasília, DF (Postado de 2002 a 2006 em: http://www.mct.gov.br/clima/brasil/doc/workad.doc). Disponível em: http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/Other%20side-outro%20lado/Hydroelectric%20emissions/Degravacao%20de%20workshop-workad.pdf

[3] Fearnside P.M. (2005) “Brazil’s Samuel Dam: Lessons for hydroelectric development policy and the environment in Amazonia” Environmental Management, 35(1) 1-19. doi: 10.1007/s00267-004-0100-3

[4] Fearnside P.M. (2005) “Do hydroelectric dams mitigate global warming? The case of Brazil’s Curuá-Una Dam” Mitigation and Adaptation Strategies for Global Change, 10(4) 675-691. doi: 10.1007/s11027-005-7303-7

[5] Fearnside P.M. (2002) “Greenhouse gas emissions from a hydroelectric reservoir (Brazil’s Tucuruí Dam) and the energy policy implications” Water, Air and Soil Pollution, 133(1-4) 69-96. doi: 10.1023/A:1012971715668

[6] Fearnside P.M. (1995) “Hydroelectric dams in the Brazilian Amazon as sources of ‘greenhouse’ gases” Environmental Conservation 22(1) 7-19. doi: 10.1017/S0376892900034020

[7] Fearnside P.M. (1996) “Hydroelectric dams in Brazilian Amazonia: Response to Rosa, Schaeffer & dos Santos” Environmental Conservation, 23(2) 105-108. doi: 10.1017/S0376892900038467

[8] Kemenes A., Forsberg B.R. & Melack J.M. (2007) “Methane release below a tropical hydroelectric dam” Geophysical Research Letters, 34 L12809. doi: 10.1029/2007GL029479. 55.

[9] dos Santos M.A., Rosa L.P., Matvienko B., dos Santos E.O., D´Almeida Rocha C.H.E., Sikar E., Silva M.B. & Manuel P.B. Junior A. (2008) “Emissões de gases de efeito estufa por reservatórios de hidrelétricas” Oecologia Brasiliensis, 12(1) 116-129.

[10] Kemenes A., Forsberg B.R. & Melack J.M. (2008) “As hidrelétricas e o aquecimento global” Ciência Hoje, 41(145) 20-25.

[11] Fearnside P.M. & Pueyo S. (2012) “Underestimating greenhouse-gas emissions from tropical dams” Nature Climate Change, 2(6) 382–384. doi: 10.1038/nclimate1540

[12] Pueyo S. & Fearnside P.M. (2011)Emissões de gases de efeito estufa dos reservatórios de hidrelétricas: Implicações de uma lei de potência” Oecologia Australis, 15(2) 114-127. doi: 10.4257/oeco.2011.1502.

[13] de Faria F.A.M., Jaramillo P., Sawakuchi H.O., Richey J.E. & Barros N. (2015) “Estimating greenhouse gas emissions from future Amazonian hydroelectric reservoirs” Environmental Research Letters, 10(12) 124019. doi: 10.1088/1748-9326/10/12/124019

[14] Fearnside P.M. (2016) “Greenhouse gas emissions from Brazil’s Amazonian hydroelectric dams” Environmental Research Letters, 11(1) 011002 doi: 10.1088/1748-9326/11/1/011002

[15] Borges A. (2013) “Dilma defende usinas hidrelétricas com grandes reservatórios” Valor Econômico, 06 de junho de 2013. http://www.valor.com.br/imprimir/noticia_impresso/3151684

[16] Borges A. (2016) Diretor-geral da ANEEL defende retorno de hidrelétricas com grandes reservatórios. O Estado de São Paulo, 30 de setembro de 2016. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,diretor-geral-da-aneel-defende-retorno-de-hidreletricas-com-grandes-reservatorios,10000078947

[17] Fearnside P.M. (2017) Planned disinformation: The example of the Belo Monte Dam as a source of greenhouse gases. In: Liz-R. Issberner & P. Lena (eds.) Brazil in the Anthropocene: Conflicts between Predatory Development and Environmental Policies. Routledge, Taylor & Francis Group, New York, E.U.A., pp. 125-142.

[18] Fearnside P.M. (2012) “Desafios para midiatização da ciência na Amazônia: O exemplo da hidrelétrica de Belo Monte como fonte de gases de efeito estufa” In  Fausto Neto A. (ed.) A Midiatização da ciência: Cenários, desafios, possibilidades, Editora da Universidade Estadual da Paraíba (EDUEPB), Campina Grande, Paraíba. pp. 107-123.

[19] Este texto é traduzido e atualizada de [17], que foi adaptado de [18]. As pesquisas do autor são financiadas pelo Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq: proc. 304020/2010-9; 573810/2008-7), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM: proc. 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA: PRJ15.125).

Leia os artigos da série: Desinformação no EIA de Belo Monte: 1 – Resumo da série

Desinformação no EIA de Belo Monte: 2 – Barragens como a “única opção”

Desinformação no EIA de Belo Monte: 3 – A energia que “precisamos”

Desinformação no EIA de Belo Monte: 4 – Barragens como “energia limpa”

Desinformação no EIA de Belo Monte: 5 – A “Fábrica de metano”

Desinformação no EIA de Belo Monte: 6 – Coca-Cola versus Guaraná

 

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link