Partindo-se da hermenêutica de um específico evangelho cristão, o de Mateus 15:1-20 (como já apontamos que estudaríamos na Parte 3), encontramos trechos de afirmativas bíblicas sobre honrarias e tradições a serem seguidas. Todavia, essas, se negadas, tendem a culminar em execuções penais a cristãos que não as praticaram.

O destaque (15:1-20) representa uma das maneiras como, no passado, ocorriam clássicas formas de se normatizarem atitudes individuais, familiares e sociais. Na antiguidade assim funcionava, como percebemos nas escrituras. E mesmo no presente tal trecho parece ser uma chave interpretativa para pensarmos a hibridização cultural das espiritualidades indígenas dos Wai-Wai, etnia que teve alguma participação nas guerras da Mundurukânia de outrora, mas, não obstante, angariou somente poucas dominâncias sociais interétnicas no Baixo Amazonas (Amazônia Central).

Ainda na parte em voga, de Matheus, de modo detido, acreditamos que se encontra uma partícula do que hoje a ciência psicológica denomina de “dissonância cognitiva” – que é quando ditos e afirmações de dada pessoa não correspondem, ao certo, com os modos como ela se porta em sociedade. Ou seja, parece que a dissonância é mais o resultado de um descolamento errático entre o que se diz (ou enuncia) e o que se faz no cotidiano do que uma partícula do mal humano em si mesma.

Quando lemos no Evangelho sublinhado que “não basta honrar com os lábios se o coração está longe daquilo que se diz honrar”, a bíblia do cristianismo aponta para a perspectiva de se fazer realmente aquilo que se enuncia, sendo esse fator sine qua non para a aceitação da doutrina em sua completude. Todavia, perguntamo-nos – lançando mão de uma dúvida: até que ponto estratégias grupais, de parentela, ou mesmo individuais, de escolha, muito observadas entre nações ameríndias, tendem a ser consideradas apenas segundo evangelismos cristãos para contextos de dissonância cognitiva?

Para explicar melhor a pergunta, destacamos que nossa intenção investigativa é também pensar sobre a existência de estratégias étnicas que fazem com que ocorra a dissonância, porém não de modo falho, o que, a nosso ver, seria o mesmo que afirmar que a ação (de crer e não realizar a crença) seja uma negativa consolidada. Por essa premissa, podemos compreender uma intenção de se projetar horizontes nativos sobre pressupostos ocidentalistas, havendo múltiplas interferências; e podemos sugerir, ainda, não ser esta a maneira mais correta de se dialogar com sociedades basilares da América do Sul.

E importa destacar: essas sociedades têm seus modos de vida consolidados ao longo de milênios. Suas crenças são adornadas e concretizadas por pelo menos 12 milênios de existência pregressa e esse fato não pode ser subsumido. As palavras ditas pelos Wai-Wai são a verbalização de suas cosmogonias, os registros sonoros e simbólicos de um tempo. Porquanto, se em Matheus é descrito que “a boca fala daquilo que o coração sente”, é de se crer que essa etnia, do Baixo Amazonas, agita-se no sentido de apalavrar suas historicidades por meio da espiritualidade ancestral que guarda em si mesma.

Não deixa de ser a fala, assim, uma estratégia de autoafirmação e autodeterminação. Os Wai-Wai, ao se verem confrontados com espiritualidades do novo mundo, cristãs, podem se utilizar de táticas que seriam supostamente entendidas como inapropriadas dentro da doutrina ocidentalista (as ditas dissonâncias cognitivas). Mas, a nosso ver, funcionam essas verbalizações como condutas para a manutenção de modos de vida nativos, e portanto não devem ser classificadas como decaimentos morais ou negatividades implícitas. São, ao fim e ao cabo, contra-ataques planejados em razão da resistência da etnia a avanços higienistas sobretudo do agronegócio.

Uma resistência que se dá, sim, por meio da Igreja, dos dogmas cristãos, porém que não se restringe a eles porque é muito mais ampla e consistente. É uma resistência de fala e de ação, contra o Estado, contra megaempresários, contra empresas multinacionais. E mesmo por vezes sendo ambas um tanto desconexas, as falas e as ações, são elas precursoras de um conjunto de cosmologias densas, primordiais para a manifestação das espiritualidades Wai-Wai. São essas espiritualidades que os sustentam, tanto no contexto da mente quanto do corpo.

– 

Leia outros artigos da série:

Renan Albuquerque é professor e pesquisador do colegiado de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e desenvolve estudos relacionados a conflitos e impactos socioambientais entre índios Waimiri-Atroari, Sateré-Mawé, Hixkaryana, junto a atingidos pela barragem de Balbina e com assentados da reforma agrária.

NOTA – A equipe do ECOAMAZÔNIA esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião deste ‘site”.