O primeiro abandono foi aos três anos de idade. Querendo interromper a morte da mãe, o menino, de corpo esculpido pelas privações do sertão, adoeceu horas antes. De nada adiantou: ela morreu após parir as últimas crias. A cena nunca mais saiu da memória de Fernando Gomes, hoje com 60 anos, que sobrevive de juntar o que não tem mais serventia para os outros.

Foi assim, remendando o destino, que Fernando fugiu de casa aos 12 anos, escapou da morte por três vezes, perdeu três casas para doença sem nome e largou no meio do caminho os únicos laços de sua existência: os filhos Fernando e Delzinete. “Não vejo eles há mais de 30 anos. Nem sei se ainda estão vivos”, revela.

Num terreno alugado por R$ 300 mensais, em bairro classe média alta de Boa Vista, em Roraima, Fernando reconstrói a vida debaixo de uma cobertura de telhas velhas de zinco, sustentada por pedaços de perna-mancas. Amontoado entre portas, fogões, tapumes, uma coleção incompleta da Barsa, um álbum de família perdido em alguma mudança e tantos outros cacarecos, ele faz seu balcão de negócios como se estivesse numa venda de carros de luxo.

“Sou conhecido pelo respeito e amizade. O negócio é ser honesto, ter o nome limpo na praça”, diz, se referindo à clientela conquistada em 14 anos no ofício de catador de lixo. “Nessa crise, as pessoas estão segurando mais. Antes, sempre tinha cama, berço, geladeira; compravam novos e se desfaziam dos usados”, explica. “Janela, porta, grade, portão, tudo sai porque é barato”, garante.

Protegido do sol no puxadinho e escapando da chuva, ele faz planos, sonha, alimenta e dá abrigo para cachorros de rua. “O Charmoso e a Chiquita são de dentro de casa”, diz apontando para os vira-latas deitados no piso grosso da sala. “Tem mais quatro que apareceram desde nascença: Bia, a dengosa, Bicó – que nasceu cotó –, Negão, o preto. e Vaquinha, porque mama”.

Da morada humilde e improvisada, o catador fez um ponto de encontro social. O café, preparado por ele e servido todos os dias, pela manhã e à tarde, é o atrativo para o entra e sai no barraco, fechado por uma porta de grades sem os vidros. “O café é o que o dinheiro der”, explica sobre a marca usada e as doações que recebe para não faltar a bebida na mesa.

“Aqui vem engenheiro, professor, até juiz”, diz abismado o dentista Evandro Pontes. “Eu venho todo dia”, avisa. Foi dele que Fernando ganhou 250 vinis, mas nem tinha ideia do que eram aqueles bolachões. Os amigos com diploma – ou não – começam a chegar ao final da tarde. Vão se acomodando em cadeiras de plásticos quebradas, colocadas umas sobre as outras, pedaços de concreto em cima de armações, latas de tintas – tudo é usado como assento.

Leonídio Ribeiro, 80 anos, não é mais vizinho do catador. Morando na periferia da cidade, aproveita a ida ao bairro nobre para ver a casa que alugou e pôr a conversa em dia com o amigo. “Já, já, vou embora; estou aqui desde as três da tarde”, avisa. Já passava das 17 horas e mais gente se acostava. “O senhor estava doente?”, indaga Ozanete Sarmento, 70 anos. Ela foi oferecer cercas de madeira que não lhe servem mais.

Fernando é sempre o centro das atenções. Dá pausa na conversa quando chega um freguês à procura de alguma peça só encontrada ali no monturo de velharias. Apesar da bagunça, ele é capaz de achar agulha se o cliente quiser comprar. Cada objeto tem valor inestimável para o catador de coisas inúteis, pois sabe que a qualquer hora alguém pode ir atrás do que ninguém deu valor. “Os materiais eu vou buscar na casa da pessoa. De carroça ou então na Kombi”, conta.

A carroça é uma bicicleta triciclo – também velha como tudo que existe por ali – e a Kombi é seu mais novo brinquedo, presente do amigo Jaime Agostinho, usada para carregar peças maiores e pesadas. Entre as inutilidades que ocupam cada canto do seu barraco, Fernando ainda tem mania de colecionar. “Tenho mais de 300 cartões de crédito e de banco. Não servem mais. Guardo aqui pra não deixar que alguém use o que é dos outros”, diz ao pegá-los em sacola guardada em seu quarto. “Não tenho conta no banco. Tenho vontade de ter”, confessa dedilhando os cartões.

“Também tenho perucas. Já teve época de ter mais de mil”, comenta tirando uma a uma e jogando sobre a cama coberta com edredom dos Incríveis. Roxa, loira, branca, verde, dezenas delas estão conservadas esperando que alguém lhes dê valor.

A morte companheira

Com um cisto para operar, só lembrado quando alguém pergunta o que é aquele nó na garganta, Fernando vem escapando da morte desde que nasceu. Primeiro, presenciou a mãe morrer em casa, desvalida ao alimentar a única filha que restou do nascimento de gêmeas. “Na hora em que ela adoeceu, eu caí doente também. Depois que ela morreu, eu fiquei bonzinho. Eu estava pressentindo a morte da minha mãe”, revela.

O prenúncio era de dias difíceis. Nunca mais receberia o amor materno, muito menos a proteção de quem deveria cuidar-lhe até que pudesse andar sozinho. “Com dois meses que minha mãe morreu, meu pai se casou novamente”. Aos 12 anos, cansado de apanhar da madrasta, ele saiu fugido de casa, às quatro da manhã, usando um calção velho e chinelos feitos de pneu. “O sofrimento me levou a fugir”, justifica. “Se eu não fizesse nada, ela [madrasta] dizia pro meu pai: ‘ele olhou com a cara feia pra mim’. E eu apanhava de novo”.

De Rafael Godeiro até Mossoró – municípios do Rio Grande do Norte – o menino viajou até a última linha do trem. “Cheguei com duas camisas e rede velha dentro de um saco de pano de açúcar”. Foi procurar abrigo debaixo de marquise do mercado central, cheio de poeira, sem rumo. “Só pensava na noite, a pessoa sem parente, nem aderente”, recorda.

A ajuda veio das mãos de uma desconhecida. “Ela me viu sentado ali e perguntou pelos meus pais. Eu disse que não tinha”. A mulher tornou-se a “mãe Tonha”, sua única referência de afeto e família. Até os 15 anos, Fernando trabalhou no hotel que era da mulher que lhe deu um teto para morar. Lavava louça, limpava mesas, tentava ser útil para não ser despachado por sua desimportância.

Na ingenuidade, arrumou um jeito de apagar o passado por debaixo das rodas de um caminhão “pau-de-arara”. “Mandei fazer uma carta dizendo que eu tinha sido atropelado e morrido”, conta. “Fiz isso pra ser esquecido. Tinha medo da maldição da madrasta”.

Anônimo, saiu correndo trechos sem eira nem beira. Trabalhou de cozinheiro em construção civil, foi dono de cabaré, onde viu e juntou dinheiro, que nem sabia existir. “Tive três boates: em Fortaleza, Piauí e Maranhão”. Numa delas, mantinha 14 mulheres fazendo programa.

Vivendo da noite, Fernando ergueu patrimônio: dois carros, conta em banco e estava acabando de mobiliar três casas quando, de novo, a morte laçou seu destino. “Fiquei três anos internado em hospital. Seis dias dentro de uma ambulância e ninguém me queria. Estava morto, fedendo”, explica. Dele, foram retirados três úlceras e um rim. Na UTI, passou seis meses. “Tive alucinação que estava mais no inferno do que na Terra. Quando acordei no mundo, estava no terceiro andar do hospital. Olhava para as tomadas e elas se transformavam em caretas; outra, numa rapadura. E eu doido pra comer”, comenta sorrindo.

Ao final de todo suplício, não restou quase nada para o potiguar, a não ser cicatriz que corta sua barriga de cima abaixo. “Gastei tudo que tinha na doença. Saí do hospital sem dinheiro. Nem pra comprar uma balinha”. Mãe, pai, oito irmãos, três mulheres e um casal de filhos foram juntos na sua vida de perdas. “A pior dor é ser rico e ficar pobre”, confessa.

Um iletrado ilustre

O reencontro com a família seria a forma de reatar laços fraternos desatados pelo medo de morrer apanhando. Da audácia de fugir de casa, ganhou a indiferença do pai até a morte. “A vez que liguei pra falar com meu pai, ele não quis. Só recebi o recado: ‘se fosse mulher, eu ia atender. Mas, com macho, eu não quero falar não”, relembra. “Depois de 35 anos, foi o primeiro e último contato com ele”, diz Fernando, resignado.

Da tentativa de falar com o pai, restou ainda um vínculo, que seria mais tarde o empurrão para se levantar de novo. No extremo norte do Brasil, Odete Gomes, 59 anos, foi quem acolheu o irmão. “Cheguei a Boa Vista pesando 28 quilos. Peso de um bode”, compara. Em terras macuxis, encontrou no lixo a sobrevivência, amigos e o alento de não morrer cutião. “Não conheço ninguém feliz, melhor do que eu”, sentencia.

As letras que não aprendeu a juntar e formar palavras não lhe faltam na hora de negociar com clientes. “Fui no Mobral, mas só conheço as letras”, conta ao revelar que nunca aprendeu a assinar o nome. “Não nasci pra isso. Nasci com a inteligência que tinha que ser”, diz conformado. “Ele é muito inteligente, mas, infelizmente, não sabe ler”, lamenta o engenheiro Romário Ferreira, 69 anos. Ele conheceu o catador quando procurava uma geladeira usada para comprar. Do tempo que está em Boa Vista, cerca de dois anos, cultiva amizade e o hábito de visitá-lo constantemente. É quem lê mensagens que chegam ao WhatsApp, Instagram e Facebook do amigo analfabeto.

Os poucos dentes que lhe restam na boca foram condenados à extração. “Tirei sete de uma vez só na faculdade. Vou tirar o resto e pôr uma dentadura”, avisa Fernando. As extrações e os dentes novos são presentes de outro amigo que também costuma frequentar o barraco do catador.

De todas as privações que passou, apenas uma desalenta o retirante que sonha em ter o próprio terreno e construir quarto na laje, com portas secretas. “Só tem uma coisa que pesa em mim: nunca chorei. O choro não vem. Isso é o que mais me faz sofrer”, revela em um dos raros momentos que franze a testa.

Logo, ele volta a ser o Fernando bem humorado, que arranca gargalhadas com suas expressões curiosas e engraçadas. “Não tenho emoção [tristeza], só tenho alegria. Já sofri tanto”, encerra, voltando-se para dentro da cobertura onde planeja um mutirão para o fim de semana. “Vou levantar esse telhado até o final”, fala, apontando para a armação enjambrada.

Texto e fotos: Eliane Rocha – [email protected] (DISPONÍVEL EM: JUNHO DE 2017)

NOTA DA ECOAMAZÔNIA: O Sr. Fernando é apoiado pela ECOAMAZÔNIA – FUNDAÇÃO PARA O ECODESENVOLVIMENTO DA AMAZÔNIA,  www.ecoamazonia.org.br , com sede em Boa Vista. O Sr Fernando recebeu o prêmio  “AMIGO DO MEIO AMBIENTE ” outorgado pelos serviços prestados para a conservação do meio ambiente pelo Conselho Municipal do Meio Ambiente de Boa Vista/RR.  Para quem mora em Boa Vista/RR convidamos para conhece-lo e colaborar com seu trabalho, doando bens inservíveis e ajudando assim a reciclagem dos recursos naturais. O endereço do Sr. Fernando é Rua Mirixi, 569, esquina com a Avenida Pitombeira, Paraviana – Telefone (95) 99175-2609.