Por volta das 16h do último domingo, 30 de abril, uma batalha campal se iniciava em Viana, município de 50.000 habitantes a pouco mais de 200 quilômetros da capital maranhense, São Luís. Em uma região em que quatro de cada dez pessoas é pobre, começava ali uma luta violenta de quem tem pouco contra quem tem quase nada. De um lado estavam indígenas da etnia gamela, que ocupavam uma área que reivindicam pertencer a seus ancestrais, expulsos dali no passado. Do outro, agricultores, alguns donos de uma quantia de gado possível de se contar nos dedos, que pretendem manter seu pedaço de chão para poder plantar. O enfrentamento deixou dezenas de feridos, vários deles com marcas de bala rasgadas pelo corpo. Quatro ainda estão internados em hospitais da capital. Dois indígenas tiveram as mãos quase arrancadas a golpes de facão, em uma cena que lembrou a alguns o tratamento dado, por vezes, a animais que ignoram cercas e entram em terra vizinha. Na pequena cidade, as imagens da barbárie ainda atormentam a população.

Naquele 30 de abril chegava ao ápice uma “tragédia anunciada”, conforme descrevem pessoas de ambos os lados. Era o clímax de um conflito que se agrava há mais de um ano, sem que as autoridades agissem para evitá-lo. No final de 2015, os gamela decidiram iniciar no município uma onda de “retomadas”, expressão usada pelos indígenas para definir a ocupação de um território ancestral retirado de seus parentes no passado. E, desde então, já ocuparam oito áreas onde antes existiam habitações de não-índios, incluindo a de um político local e a de uma juíza, contam eles.

Naquele domingo, fariam a nona. Pouco depois da hora do almoço chegaram em cerca de 30 pessoas ao sítio Ares Pinto, uma área de 22 hectares (cerca de 22 campos de futebol) no povoado Bahia. Entraram no local onde encontraram a mulher do caseiro Carlos Augusto Pinto do Nascimento. Ao mesmo tempo, a cerca de quatro quilômetros dali acontecia um evento intitulado “Marcha pela Paz”, em que, segundo os organizadores, cerca de 5.000 proprietários de terras de Viana, Penalva e Matinha, municípios vizinhos com áreas reivindicadas pelos indígenas, discutiam a situação das retomadas indígenas na região, com a presença do deputado federal Aluísio Mendes (PTN), que em uma entrevista em uma rádio, dias antes, chamou os gamela de “pseudo-índios”.   

Nascimento, o caseiro da terra ocupada pelos índios naquele domingo, conta ter saído para comprar farinha pouco antes do ocorrido. Quando voltou para o sítio e percebeu que os gamela haviam tomado a propriedade, pegou sua moto e foi até a reunião, onde a viatura da Polícia Militar da cidade estava estacionada. Aos berros, avisou à multidão, já de ânimos exaltados pelas falas inflamadas, que sua mulher se tornara “refém” dos gamela, algo que os índios negam. Os policiais entraram no carro e se dirigiram até o local, mas foram embora logo depois, quando perceberam que a turba enfurecida, decidida a fazer justiça com as próprias mãos, chegava ao local em dezenas de motos e carros. Segundo o tenente-coronel, José Maria Aires Neto, os PMs tiveram de sair para buscar reforço, já que não havia sinal para a chamada naquela região, mas voltaram apenas quando a desgraça já estava feita e entraram na área da mata com suas lanternas, em busca de possíveis corpos, conta o caseiro. “Você já viu uma multidão enfurecida? Quatro policiais não conseguem evitar isso. De jeito nenhum”, diz o comandante.

Os gamela acusam os não-índios de terem orquestrado um ataque. “Não foi um confronto o que aconteceu. Foi um massacre. Quem somos nós, com flechas, para confrontar armas de fogo?”, afirma Francisco Gamela, de 60 anos. Mas também são acusados pelo outro lado de atirar contra eles com armas de fogo. Em uma família de agricultores, três parentes foram baleados. Segundo a família, por armamentos dos índios. Segundo os gamela, por armamentos dos não-índios, durante a confusão generalizada. Um deles, Domingos Gomes Rabelo, ainda se encontra no hospital e corre o risco de perder os movimentos de uma das mãos, conta a mulher, Margarete de Jesus. “Meu marido estava na reunião e foi até lá porque conhecia esses que se dizem índios. Ele tentou negociar quando foi atacado. Juntaram e encheram ele de paulada. Ele levou tiros nas mãos e nas pernas. Meu filho foi ajudar e também foi agredido. Depois aconteceu o mesmo com o irmão do meu marido.”

Na cidade, diante das investigações e da repercussão do caso, é difícil achar quem afirme ter participado do fato. Em uma versão corroborada pelo caseiro, durante a confusão um grupo de não-índios cercou ainda dois gamela já caídos após terem sido alvejados por tiros. Foi nessa hora que, após uma bala atingir suas costas, Aldeli de Jesus Ribeiro foi atacado nos dois braços pelos golpes de facão. Uma foto registrou o estado de seus membros: totalmente abertos e ensanguentados. Ele está hoje na cama de um hospital, com ferros nos dois punhos e em uma das pernas, também dilacerada. Está acompanhado por José Ribamar Mendes, que também acabou com cortes profundos na mão direita, e por José André Ribeiro, que levou pauladas na cabeça e um tiro no peito. Uma parente que os acompanha no hospital, em São Luís, e pediu para ter a identidade preservada, afirma que Aldeli disse ter se fingido de morto para que as agressões cessassem. “Ele diz que gritavam: deixa esse desgraçado que eu vou matar e botar fogo.” Na confusão, os outros índios correram e atravessaram uma mata fechada, que separa a propriedade que eles pretendiam retomar de uma área já retomada por eles em 2015. Muitos ainda mancam devido às feridas causadas pelos espinhos e os troncos com que toparam no caminho.

A luta pela identidade

A luta dos gamela na região de Viana não é recente, afirmam os indígenas. Há ataques registrados em pelo menos duas outras ocasiões: no final da década de 1960, quando escrituras de terras onde eles viviam começaram a aparecer com o nome de outros donos, e em 1987. Como em diversas regiões do país, o conflito reflete a dificuldade que rege a titularidade de terras rurais. Uma história que passa por expulsões de pessoas mais vulneráveis de suas áreas, por grilagem e ocupações irregulares e, até, pela conivência de cartórios, que em décadas passadas faziam registros falsos de acordo com o gosto de quem pudesse pagar mais. Em um cenário onde o estoque de terras vêm se esgotando, os conflitos parecem estar se tornando cada vez mais frequentes.

Um mapa antigo, que faz parte do acervo da Biblioteca Nacional Brasileira, ajuda a corroborar a versão dos gamela. Ele aponta que em 1765 havia ali uma “terra dos índios” demarcada. Documentos históricos arquivados na Biblioteca Digital Luso-Brasileira também apontam que em dezembro de 1784 o governador e capitão-general do Maranhão e Piauí, José Teles da Silva, avisava por ofício o secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre as produções agrícolas encontradas em visitas feitas aos índios gamela estabelecidos nas margens do lago Cajari (em Penalva, município vizinho a Viana) e “outros locais da capitania do Maranhão”. Segundo os índios, a área a que eles tinham direito de acordo com essa demarcação colonial equivaleria a 14.000 hectares, o que abrangeria não apenas Viana inteira, mas também outros municípios vizinhos.

Pelas ruas da cidade, entretanto, essa identidade indígena é rechaçada por parte da população. “Eu vivi minha vida todinha aqui. Sou nascida e criada e nunca que vi essa história de índio por aqui. Eles eram nossos vizinhos, trabalhavam com a gente, estudaram com nossos filhos e agora posso perder a minha casa?”, diz a agricultora Marilene Lindozo Cutrim, 58 anos. Ela afirma que “não está mais dando conta dos nervos por causa da situação”. “Foi um livramento de Deus não acontecer morte de nenhum dos dois lados”, diz. “Todos os índios que a gente conhece pela TV têm característica de índio. Visualmente eles [gamela] são praticamente semelhantes para se passar por índio. Eles querem é regredir, ser aquilo que se era antes, mas a sociedade está evoluindo”, diz o pescador Gilverson Ricardo Sousa, 27.

Reunidos na última quinta-feira na agora aldeia Cajueiro Piraí, que junta parte das terras retomadas, os gamela explicam que muitos ali ouviram histórias de bisavós, avós ou pais que afirmam que eram proibidos de falar a própria língua. Ou de se referirem a si mesmo como índios por medo de represálias. Primeiro, eram chamados de caboclos (indígena mestiço). Depois, de descendentes de índios, algo que também se perdeu com o tempo. O mesmo aconteceu em outras partes do país, afirma a antropóloga Caroline Leal, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab-CE).

Durante décadas, afirmam eles, seus antepassados foram sendo expulsos, pouco a pouco, daquelas faixas de terra demarcadas pela Colônia. Até sobrarem apenas uma pequena parte dos 14.000 hectares. Neste processo, muitos deixaram a área, mudaram para povoados maiores e, neste processo, acabaram casando com não-índios. “Os mais velhos não tinham essa preocupação com o papel. A nossa escritura é nosso pé, é por onde a gente passa para caçar, pescar. Mas os espaços foram diminuindo. Os mais velhos foram forçados a aprender línguas e costumes que não eram os nossos. A maioria, nos documentos, foi registrado como parda ou negra “, explica Jaldemir Trindade Gamela. Mas eles afirmam que a luta pelo reconhecimento como povo não pode ser separada da luta pela terra. “A terra para gente não é mercadoria. É nossa cultura. É no rio Piraí, que passa aí na beira, que está a morada dos Encantados, nossos seres espirituais. Como somos apartados desse rio, perdemos a possibilidade de manter nosso modo de vida, nossa religião. As novas gerações já não sabem onde estão os Encantados porque os mais velhos não tiveram como mostrar”, explica Inaldo Serejo Gamela, uma das lideranças locais e membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Como será possível caçar, pescar, pegar a palha do guarimã para fazer o artesanato se não estamos nesta terra?”, questiona.

Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), os critérios adotados pelo Governo para a definição de indígena consistem na autodeclaração, ou seja, na consciência de um povo de sua identidade indígena, e na heterodeclaração, o reconhecimento dessa identidade por parte do grupo de origem. Os critérios são baseados em um decreto que promulga a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, da qual o país é signatário. Ele dispõe que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da Convenção.”

Os gamela afirmam ter entrado com um pedido de reconhecimento do território junto à Funai. E que têm cadastrados 1.185 índios da etnia naquela área. Mas o órgão, cada vez mais sucateado e sem funcionários, afirma que esta é uma das “400 áreas reivindicadas, aguardando estudo da Funai” no país. O deputado Aluísio Mendes, acusado pelos indígenas de incitar a violência na reunião do dia 30, algo que ele nega, afirma que a pedido da comunidade de agricultores procurou o órgão indigenista por duas vezes e recorreu até ao próprio ministro da Justiça, Osmar Serraglio, que na semana passada havia pedido 15 dias para solucionar o problema. Mas o ataque aos índios ocorreu antes do prazo acabar. “Eu estava alertando que ia acontecer uma tragédia. E isso aconteceu pela inoperância do poder público. Foi preciso acontecer isso para que se começasse a tomar uma atitude”, diz ele.

Agora, a Funai afirmou que realizará um mutirão de demarcação de terras, diante dos recentes conflitos similares no país. Enviou a Viana uma força-tarefa com funcionários para tentar resolver a questão. A perícia no local do crime só será realizada nesta segunda-feira, mas a cena do ataque não foi isolada e, segundo o caseiro da propriedade, crianças recolheram os vestígios de armamento, como cápsulas deflagradas e cartuchos de bala. A Polícia Civil diz ter vídeos que podem ajudar a identificar os suspeitos dos crimes. Segundo o Ministério da Justiça, nos próximos dias a Polícia Federal deverá assumir as investigações, por se tratar de um conflito envolvendo indígenas. E o policiamento na cidade foi reforçado, para evitar novos episódios de violência. “Boa parte dos nossos filhos estão impedidos de ir à escola, por conta do ódio e da discriminação. Quando a polícia for embora, o que vai acontecer? Como vai ser a nossa rotina? Como vai ser quando precisarmos sair da aldeia para comprar um remédio? Como será a nossa realidade de segunda-feira para frente? A nossa vida nunca mais será a mesma”, desabafa Jaldemir. Desde domingo, os índios estão fechados na aldeia, na primeira área retomada, onde um grupo de gamela permanece de prontidão encostado na porteira. Armados com facão, olham desconfiados para todos que chegam. Há medo dos dois lados do portão. 

Talita Bedinelli

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