Tanto a pesquisa científica quanto a sua interpretação para políticas públicas são feitas por seres humanos que agem dentro do contexto de seus ambientes sociais e institucionais. A revista Climatic Change organizou um debate sobre as emissões hidrelétricas entre este autor [1, 2] e o então presidente da ELETROBRÁS [3, 4]. O debate foi arbitrado por Cullenward e Victor [5], que apontou que “uma grande proporção do trabalho publicado neste campo vem diretamente de pesquisadores ligados a empresas de hidroeletricidade, como a Eletrobrás ou Hydro-Québec”, e como resultado sugeriu que “um mecanismo é necessário para remover qualquer mancha de interesse para que projetos de MDL [mecanismo de desenvolvimento limpo] e inventários nacionais possam ganhar confiança.

A comunidade internacional tem um mecanismo prontamente à mão para corrigir o problema: um relatório especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).” Um relatório especial especificamente sobre emissões de hidrelétricas não foi realizado, mas em 2011, o IPCC lançou o Relatório Especial sobre Fontes Renováveis de Energia e Mitigação de Mudança Climática (SRREN), que incluía a energia hidrelétrica [6]. As listas dos autores das seções sobre hidrelétricas incluem funcionários da Eletrobrás e de Hydro-Québec [6, 7]. Nas diretrizes IPCC de 2006, ambos os dois apêndices lidando com reservatórios (Apêndices 2 e 3) têm autores da Hydro-Québec e da Eletrobrás ([8], Volume 4, Capítulo 7, p. 7.2). McCully [9] documentou a predominância de longa data da indústria em pesquisas acerca das emissões das barragens hidrelétricas.

O relatório especial do IPCC tem sido criticado pela organização não governamental (ONG) Rios Internacionais por não discutir as altas emissões de metano dos reservatórios tropicais, que simplesmente está listado em uma tabela, em contraste com a maior atenção dada às baixas emissões em regiões temperadas e boreais [10]. A crítica também aponta que, ao contrário da prática normal do IPCC, um quarto da seção sobre as emissões de hidrelétricas é dedicado a apresentar os resultados preliminares de um trabalho exploratório (“scoping paper”) sem revisão científica que foi liderado pela Associação Internacional de Energia Hidrelétrica (IHA), um grupo da indústria [11]. O relatório especial também destaca o trabalho mais recente do grupo IHA sobre procedimentos para quantificar as emissões, que estava em andamento na época, mas que tem sido, desde então, concluído. O acesso ao relatório IHA requer um compromisso de sigilo, tornando o relatório impróprio para uso pelo IPCC ou para citação em literatura científica.

A contabilidade adequada das emissões das hidrelétricas tropicais é essencial para conter a mudança climática. Negociações internacionais no âmbito da UNFCCC são destinadas a estabelecer quotas (montantes atribuídos) para emissões nacionais, tal que a emissão líquida global de todas as fontes (incluindo fontes “naturais”) é consistente com o objetivo de impedir que as concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa atinjam níveis que causem “interferência perigosa no sistema climático” ([12], Artigo 2), agora definido como um aumento da temperatura média em 2º C acima da média pré-industrial. Se inventários nacionais apresentados por cada país não refletem a verdadeira quantidade de emissão porque emissões tropicais de hidrelétricas foram omitidas ou subestimadas, consequentemente, as quantidades atribuídas negociadas no âmbito da UNFCCC serão insuficientes para conter a mudança climática e os impactos de ultrapassar o limite de 2º C se seguirá (e.g., [13]).

Conclusões

As orientações (“guidelines”) para inventários nacionais de emissões de gases de efeito estufa, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), devem ser revistas, tal que o nível exigido de relatórios sobre barragens reflita toda a extensão das suas emissões de todos os gases de efeito estufa. O IPCC também precisa proceder um exame minucioso do assunto independente da indústria de energia hidrelétrica [14].

 

 

NOTAS

[1] Fearnside, P.M. 2004. Greenhouse gas emissions from hydroelectric dams: Controversies provide a springboard for rethinking a supposedly “clean” energy source. Climatic Change 66: 1-8. doi: 10.1023/B:CLIM.0000043174.02841.23.

[2] Fearnside, P.M. 2006. Greenhouse gas emissions from hydroelectric dams: Reply to Rosa et al. Climatic Change 75: 103-109. doi: 10.1007/s10584-005-9016-z.

[3] Rosa, L.P., dos Santos, M.A., Matvienko, B., dos Santos, E.O., Sikar, E. 2004. Greenhouse gases emissions by hydroelectric reservoirs in tropical regions. Climatic Change 66: 9-21. doi: 10.1023/B:CLIM.0000043158.52222.ee.

[4] Rosa, L.P., dos Santos, M.A., Matvienko, B., Sikar, E., dos Santos, E.O. 2006. Scientific errors in the Fearnside comments on greenhouse gas emissions (GHG) from hydroelectric dams and response to his political claiming. Climatic Change 75: 91-102. doi: 10.1007/s10584-005-9046-6.

[5] Cullenward, D., Victor, D.G. 2006. The dam debate and its discontents. Climatic Change 75: 81-86. doi: 10.1007/s10584-006-9085-7.

[6] Kumar, A., Schei, T., Ahenkorah, A., Caceres Rodriguez, R., Devernay, J.-M., Freitas, M., Hall, D., Killingtveit, A., Liu, Z. 2012. Hydropower, In: Edenhofer, O., Pichs-Madruga, R., Sokona, Y., Seyboth, K., Matschoss, P., Kadner, S., Zwickel, T., Eickemeier, P., Hansen, G., Schlomer, S., von Stechow, C. (Eds.), Renewable Energy Sources and Climate Change Mitigation: Special Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press, Cambridge, Reino Unido, p. 437-496. [Disponível em: http://www.ipcc.ch/pdf/special-reports/srren/srren_full_report.pdf].

[7] Moomaw, W., Burgherr, P., Heath, G., Lenzen, M., Nyboer, J., Verbruggen, A. 2012. Annex II: Methodology, In: Edenhofer, O., Pichs-Madruga, R., Sokona, Y., Seyboth, K., Matschoss, P., Kadner, S., Zwickel, T., Eickemeier, P., Hansen, G., Schlomer, S., von Stechow, C. (Eds.), IPCC Special Report on Renewable Energy Sources and Climate Change Mitigation. Cambridge University Press, Cambridge, Reino Unido, p. 973-1000. [Disponível em: http://www.ipcc.ch/pdf/special-reports/srren/srren_full_report.pdf].

[8] IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change). 2006. 2006 IPCC Guidelines for National Greenhouse Gas Inventories. Eggleston, H.S., Buendia, L., Miwa, K., Ngara, T., Tanabe, K. (Eds.), Institute for Global Environmental Strategies (IGES), Kanagawa, Japão. [Disponível em: http://www.ipcc-nggip.iges.or.jp/public/2006gl/index.html].

[9] McCully, P. 2006. Fizzy Science: Loosening the Hydro Industry’s Grip on Greenhouse Gas Emissions Research. International Rivers Network, Berkeley, California, E.U.A. 24 p. [Disponível em: http://www.internationalrivers.org/resources/fizzy-science-loosening-the-hydro-industry-s-grip-on-reservoir-greenhouse-gas-emissions].

[10] Parekh, P. 2011. Advancements in the field of reservoir emissions: A briefing on recent research and guidelines. International Rivers, Berkeley, California, E.U.A. 13 p. [Disponível em: http://www.internationalrivers.org/resources/advancements-in-the-field-of-reservoir-emissons-3764].

[11] IHA (International Hydropower Association). 2008. Assessment of the GHG Status of Freshwater Reservoirs – Scoping Paper. IHA/GHG-WG/3, United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO)Working Group on Greenhouse Gas Status of Freshwater Reservoirs and International Hydropower Association, IHA, London, Reino Unido, 28 p. [Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001817/181713e.pdf].

[12] UNFCCC (United Nations Framework Convention on Climate Change). 1992. U.N. Framework Convention on Climate Change. UNFCCC, Bonn, Alemanha. [Disponível em: t http://unfccc.int/resource/docs/convkp/conveng.pdf].

[13] Meinshausen, M., Meinshausen, N., Hare, W., Raper, S.C.B., Frieler, K., Knutti, R., Frame, D.J., Allen, M.R. 2009. Greenhouse-gas emission targets for limiting global warming to 2ºC. Nature 458: 1158-1162. doi:10.1038/nature08017.

[14] Isto é uma tradução parcial atualizada de Fearnside, P.M. 2015. Emissions from tropical hydropower and the IPCC. Environmental Science & Policy50: 225-239. http://dx.doi.org/10.1016/j.envsci.2015.03.002. As pesquisas do autor são financiadas por: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processos nº305880/2007-1, nº304020/2010-9, nº573810/2008-7, nº575853/2008-5), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (processo nº 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03).

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link.

ÍNTEGRA DISPONÍVEL EM: Hidrelétricas e o IPCC: 19 – A sociologia da ciência – Amazônia Real (amazoniareal.com.br)