O VIII Fórum Social Panamazônico (Fospa) aconteceu entre os dias 28 de abril e 1º de maio na cidade de Tarapoto, no Peru. Reunindo cerca de 1.500 pessoas de nove países da Panamazônia e dos Andes, teve como ponto central debates sobre como colocar em prática modelos alternativos, vindos de baixo, de gestão sobre território da Amazônia no Brasil, Equador, Venezuela, Bolívia, República Cooperativa da Guiana, Suriname, Colômbia, Peru e Guiana (francesa).
A caminhada entre a Plaza de Armas de Tarapoto e a Universidade Nacional de San Martin, local que abrigou a quase totalidade das atividades do Fórum, chamava a atenção de todos os que desconheciam que naquela cidade estava ocorrendo um dos mais importantes eventos de organização política da região. Mistura de protesto e procissão, teve início logo após a volta dos participantes que estiveram na cerimônia de abertura (com ritual realizado pelo Povo Kichwa-Lamista, na cidade de Lamas, a 30 km de Tarapoto), a mescla de vestimentas, músicas, gritos e cantos não passava despercebida, atiçando a curiosidade de todos.
Com comissão de frente formada majoritariamente por mulheres indígenas, seguida de grupos quilombolas, pequenos agricultores, padres, freiras e militantes, caminhávamos sob o som de tambores brasileiros tocados por jovens peruanos e gritos de protesto. Justo acima de nossas cabeças, uma loja de motos com lugares para passageiros atrás, transporte comum na cidade de Tarapoto – algo como um moto-táxi para até três pessoas – exibia um cartaz que anunciava uma promoção: “Não espere mais, e acelere seu progresso!”.
Progresso. Justamente esse pode ter sido o termo mais debatido em todo o Fórum, desde as mesas de abertura, até a de finalização, passando pelas não menos importantes conversas de corredor, de almoços e de encontros fortuitos. Afinal de contas, a quem serve o progresso preconizado pelo modelo extrativista que hoje vigora na Amazônia e nos Andes? Certamente aqueles que têm os seus territórios ocupados por megaprojetos petroleiros, mineiros, madeireiros e de hidroelétricas têm algo a nos dizer a respeito de como veem este progresso.
Organização e atividades
Cerimônias, plenárias gerais, espaços de diálogo e debate, atividades culturais, lançamento de livros, exibição de filmes e documentários e um tribunal de justiça e defesa dos direitos das mulheres de toda Amazônia e dos Andes.
Com uma quantidade gigantesca de atividades simultâneas acontecendo, impressionou a todos a capacidade de organização do Fórum. A começar pela iniciativa pioneira da qual essa gestão muito se orgulha – e com razão: a criação de Pré-Fóruns nacionais na Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela e Brasil (onde se realizaram cinco destes eventos em Manaus, Macapá, Belém, Santarém e Itaituba), que propiciaram a construção descentralizada das pautas e eixos temáticos a serem debatidos em Tarapoto.
No final da tarde de sexta-feira (28), com a cerimônia de abertura solene, sob a lona de circo montada no campo de futebol da faculdade, os participantes da mesa trataram de explicar o funcionamento geral do evento, e colocar as questões fundamentais que passaram a guiar os debates: a predominância do feminismo indígena e a luta pelo território; o rechaço aos projetos extrativistas impostos de cima abaixo pelos Estados em parceria com empresas multinacionais; a luta contra essa face mais recente do processo de colonização tomando como base saberes ancestrais.
“Existem apenas duas possibilidades” – dizia o representante de uma rádio comunitária peruana da região de Tarapoto – “ou com os poderosos, ou com os de abaixo”. Nos cabia, então, escutar, e aprender a pensar a partir de outros paradigmas, que não os do capital ocidental explorador. Que o mundo escute o clamar dos povos da Amazônia e dos Andes, diziam os organizadores, que como tantos outros povos sabem como alinhar o chamado viver bem à defesa de seu território.
A intervenção do governador da região de San Martin (da qual Tarapoto é capital), Victor Manuel Noriega Reátegui, porém, foi por outro caminho. Algo inflamado, e aparentemente necessitando responder de maneira contrariada às colocações dos militantes e indígenas, clamava, em tom elevado, acerca da necessidade de desenvolver a região e da importância de investimentos privados internacionais para fazê-lo.
”Todo ato ou voz genial vem do povo e vai ao povo”, César Vallejo, o maior poeta peruano (1892-1938)
No sábado e no domingo pela manhã, as atividades tiveram início com mesas compostas por indígenas, militantes e pesquisadores, acerca de temas-chave a partir do quais os debates foram conduzidos. Ali estabeleceram-se bases para os debates referentes a modos alternativos ao modelo extrativo-capitalista para se viver no território amazônico. A primeira mesa, de sábado, tratou justamente de refletir acerca do conceito de territorialidade; e a primeira mesa de domingo, sobre os cuidados aos bens da natureza.
“Em que momento perdemos o controle sobre nossos territórios, sobre nossas vidas?” questiona, emocionada Ketty Marcelo Lopez, indígena Ashaninka peruana e presidenta da Onamiap (Organização Nacional de Mulheres Indígenas Andinas e Amazônicas do Peru). Ela conta, com tristeza, uma experiência pessoal, no momento em que caminhando pela floresta com companheiras indígenas lê um cartaz: “Proibido retirar frutos das árvores. Sujeito à tiros”.
O debate sobre o modelo de desenvolvimentismo que entra em conflito com as populações ancestrais foi o ponto estruturante do Fórum, e não apenas um adaptar-se, com medidas paliativas, a um modelo predefinido de exploração e acumulação de riqueza. Organizadores e participantes não pouparam críticas aos Estados Nacionais que, mesmo signatários de convenções internacionais como a 161 da OIT, que determina que povos tradicionais tenham direito de consulta sobre projetos a serem implementados em seu território, não as respeitam. Segundo eles, tais acordos não passam de letra morta.
A partir destas ideias-chaves debatidas, participantes do evento foram divididos em espaços de diálogo e debates, para apresentar seus problemas, anseios, caminhos de lutas e de alianças. Não cabe descrever minuciosamente os pontos debatidos por cada um dos grupos, apenas reiterar que se trataram de propostas de discussões críticas a todo um paradigma de exploração do território e da vida, planteando possíveis outros caminhos, embasados em experiências reais: Mulheres pan-amazônicas e andinas, mudança climática e a Amazônia, soberania e segurança alimentícia, megaprojetos e extrativismo, educação Comunitária Intercultural, juventude pan-amazônica e andina (na cidade de Lamas), cidades para viver na Pan-Amazônia e nos Andes, descolonialidade do poder e autogoverno comunitário, e comunicação pan-amazônica para a vida.
Resistência política
Como se pode imaginar, uma das reais dificuldades de um evento como o Fórum Social Panamazônico é a mobilização de populações que vivem em áreas remotas. A Amazônia ocupa 40% da área da América do Sul, e conta com 33 milhões de pessoas de cerca de 370 povos. Mas, afinal de contas, quem veio ao VIII Fórum Social Panamazônico? Populações indígenas que vivem próximas à cidade de Tarapoto, representantes de ONGs e militantes talvez tiveram mais facilidade. Mas a todos impressionava a presença de pessoas dos lugares mais diversos deste vasto território.
O efeito difusor de alianças, de se fazer ouvir e escutar, era reivindicado por muitos, comprometidos a levar às suas comunidades as experiências destes dias intensos. Nisso, os Pré-Fóruns regionais também auxiliaram. As estratégias de resistência política não violentas, como forma de pressionar os governos para que as leis de proteção às populações tradicionais sejam de fato cumpridas, e que se leve a sério uma discussão sobre a necessidade de mudança de paradigma, talvez sejam os caminhos principais que se decidiu seguir.
A cerimônia de finalização, destinada a um balanço geral do Fórum e dos grupos de discussão, à leitura da Carta de Tarapoto e à apresentação da próxima sede, foi também marcada por uma cerimônia “mística”, como a definiram os organizadores. Tratava-se de uma homenagem aos índios Gamela do Maranhão (Brasil), que sofreram um massacre organizado por fazendeiros, em conivência com o Estado. Todos muito emocionados, como se a palpabilidade de tudo aquilo discutido nestes quatro dias tivera que se fazer ainda mais real, ainda mais chocante.
Foi decidido que a próxima sede para o evento será na Colômbia. E escutamos, com algo de alegria, que a sua décima edição será na Guiana Francesa (como fazem questão de grafar seus habitantes nos crachás do Fórum). Em 2021, talvez já Guyane, independente.
Fábio Zuker é antropólogo e jornalista. Com este texto de abertura, ele inicia uma série de reportagens da cobertura exclusiva para a agência Amazônia Real sobre o VIII Fórum Social Panamazônico. A série terá entrevistas realizadas com participantes de diferentes partes da Amazônia. São personagens que resistem, de baixo, à destruição de seus territórios e modos de vida na Floresta Amazônica.
FONTE: Amazônia Real
VER CONTEÚDO COMPLETO E FOTOS EM:
http://amazoniareal.com.br/escutar-o-chamado-da-floresta-viii-forum-social-panamazonico/
Deixe um comentário