O barco de alumínio atraca na beira do Rio Quixito. André Marubo salta para a terra, amarra a embarcação e sobe por uma escada vacilante de madeira, até chegar à guarita improvisada do posto de vigilância que ajudou a erguer 13 anos atrás.

Do barranco da Base do Quixito, escondida nos extremos da Amazônia entre o Brasil e o Peru, o marubo mostra o que sobrou do pequeno casebre onde vai passar alguns dias, antes de partir para a sua aldeia. Parte das vigas de seu barraco apodreceu. A palha da caranã que cobria o teto se esparramou pelo assoalho. O índio caminha pelas tábuas que servem de passagem entre as casas quando a água do rio sobe. Tem as costas carregadas de sacos de mantimentos trazidos para alimentar aqueles que ficarão no posto de fiscalização quando ele for embora. André pouco fala. Ao ser questionado como é ver o esfacelamento do lugar que ele construiu, responde: “É triste. Tudo vai indo embora”.

A decadência que aos poucos corrói cada lasca de madeira da Base do Quixito, unidade de fiscalização controlada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), é um exemplo de como tem sido a condução de ações de proteção dos povos do Vale do Javari, terra indígena que concentra o maior número de índios isolados e de recente contato em todo o mundo.

Equipes formadas por indígenas e alguns agentes da Funai procuram, num misto de resistência, ideologia e compromisso com os povos tradicionais, proteger a terra indígena nesses extremos da Amazônia, uma área que abrange 84.570 quilômetros quadrados, o equivalente a dois Estados do Rio.

Essa imensidão de floresta contava, até pouco tempo atrás, com quatro bases da Funai em funcionamento para proteger cerca de 5 mil índios isolados e de recente contato que vivem no Javari. Cabia aos postos do Ituí-Itaquaí, Quixito, Curuçá e Jandiatuba barrarem a ação predatória que avança sobre a terra demarcada. Hoje esse trabalho está perto de ser inviabilizado.

A reportagem do Estado percorreu toda a região do Javari que vive pressão de madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores que insistem em invadir terras protegidas por lei. A base do Jandiatuba, erguida no Alto Solimões, está sumindo no meio da mata. Suas casas já foram engolidas pela floresta. Nos demais postos de fiscalização, que ainda funcionam precariamente, até pouco tempo atrás não havia nem sequer um gerador de energia disponível para os agentes que se metem na Amazônia para trabalhar na proteção das áreas. Na Base do Quixito, os três funcionários que permanecem no posto de fiscalização não contam nem sequer com uma embarcação disponível em tempo integral. Nada de internet ou celular. A comunicação depende de um pequeno aparelho de rádio, que funciona conforme os humores do tempo.

No ano passado, Marco Targino, indigenista da Funai responsável pelo posto Quixito, chegou a ficar 192 dias isolado na base, simplesmente porque não havia quem pudesse substituí-lo na função. “Foram seis meses e 12 dias no mato. Saí daqui surtado”, lembra. “Há tempos nossa preocupação era ter melhores condições de trabalho, uma melhor infraestrutura local, por conta das adversidades que enfrentamos aqui. Mas hoje, sinceramente, estamos num patamar abaixo disso. Nossa reivindicação é, basicamente, tentar garantir a permanência desse trabalho, prosseguir com essa política de Estado, que é a proteção dos índios isolados.”

As ações da Funai voltadas à defesa dos territórios dos povos isolados e de recente contato tiveram início nos anos 1980. A decisão de impedir a entrada de não índios e de empresas na região representou uma mudança radical na postura que a fundação mantinha até aquele momento. Foram décadas de iniciativas equivocadas, que se orientavam basicamente pela ideia de contatar e “amansar” os índios, práticas que eram defendidas pela própria Funai durante o regime militar.

Fronteira frágil

O trabalho protagonizado pelo indigenista Sydney Possuelo, baseado no respeito à vontade do índio de permanecer em isolamento, na preservação de sua cultura, de sua terra, identidade e modo de ser, representou uma guinada na forma de se relacionar com esses povos, mudança que se revelaria bem-sucedida. Hoje, porém, o destino de corubos, marubos, maiurunas, matis, canamaris e culinas está em xeque.

Até o início deste ano, havia apenas 19 servidores da Funai responsáveis por tomar conta de toda terra indígena em ações de fiscalização. Aos constantes cortes de orçamento da estatal, somam-se o encolhimento de seu quadro profissional e a desidratação de seus programas.

O Ministério da Justiça, que comanda a Funai, prefere não comentar o esvaziamento das políticas de proteção e o esquecimento que toma conta do Vale do Javari. A Funai afirma que tem procurado formas de dar continuidade às atuais políticas de fiscalização. “A Funai seguirá trabalhando para tomar as providências necessárias à proteção desses grupos, buscando garantir o pleno exercício de sua liberdade e de suas atividades tradicionais.”

São palavras de difícil compreensão para André Marubo, que tenta arrumar um canto para dormir em seu barraco sem teto, na Base do Quixito. Seu povo está entre aqueles de recente contato com não índios. Como os povos isolados, ele depende das ações de proteção para garantir seus direitos. “Não somos nós que saímos daqui”, diz André Marubo. “Vocês é que vieram para cá.”

Por: André Borges
Fonte: O Estado de São Paulo

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