Os direitos dos povos indígenas são originários, precedem a formação do Estado Brasileiro, e seu reconhecimento constitucional não permite retrocessos. Essa foi a tese defendida pelo Ministério Público Federal (MPF) e por especialistas durante os debates do seminário Povos Indígenas e os Direitos Originários, realizado nesta terça-feira (25), na Procuradoria-Geral da República, em Brasília. Cerca de 500 pessoas, entre indígenas, estudiosos, operadores do Direito e representantes da sociedade civil acompanharam os debates. 

A ideia de um marco temporal – estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na análise do caso Raposa Serra do Sol – foi amplamente debatida durante o evento. Pelo entendimento do STF no julgamento do caso, a demarcação das terras indígenas só poderia acontecer em áreas ocupadas por índios na data da promulgação da Constituição atual, em 5 de outubro de 1988. Essa concepção restritiva, no entanto, é questionada pelo MPF e por especialistas na temática indígena, por violar o direito fundamental constitucional do indígena à terra, contradizer reconhecimento pelo próprio Supremo do papel reservado aos antropólogos, para definição de terras indígenas, e não ser compatível com os parâmetros internacionais de direitos humanos.

O coordenador da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6ª CCR), subprocurador-geral da República Luciano Mariz Maia, atribuiu ao Estado Brasileiro a responsabilidade pelas violações sofridas pelas populações indígenas. “Desde a Constituição de 1934, impõe-se à União o dever de proteger os índios e todos os seus bens, e determina-se o respeito à posse das terras dos índios”, frisou. Maia acrescentou  que, já sob a Constituição de 1946,  terras indígenas eram equiparadas a bens públicos, e a Constituição de 1967, reforçando o sentido de proteção, incluiu que as terras indígenas como bens da União. Para ele, o momento presente documenta uma vontade deliberada dos poderes constituídos em não reconhecer o direito dos índios às terras, nem proteger seus bens. “Se antes os índios eram mortos por facadas e balas, hoje mata-se com canetadas, quando são negados recursos para a Funai, para os sistemas de saúde indígena, quando se permite a supressão de direitos”, destacou.

A procuradora federal dos Direitos do Cidadão do MPF, subprocuradora-geral da República Deborah Duprat, destacou a importância da realização do seminário na mesma data em que ocorre, em Brasília, o Acampamento Terra Livre. A mobilização reúne milhares de indígenas na capital do país para a promoção de atos públicos em defesa dos direitos indígenas. Para ela, esse é um momento de potencializar a luta pela afirmação de direitos conquistados.

Duprat criticou a posição da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal em acórdão favorável à anulação da Terra Indígena Limão Verde, em Mato Grosso do Sul. Para a subprocuradora-geral, a decisão da turma é um “ponto fora da curva” nas decisões da Suprema Corte, já que não leva em conta o histórico de decisões do plenário do STF. Duprat ressaltou que a análise pelo Judiciário acerca da posse de terras não pode se embasar apenas na presença física de grupos indígenas, mas na integralidade dos laudos antropológicos – que levam em consideração as retiradas forçadas de população (esbulho) e o histórico das formas tradicionais de ocupação dos territórios e utilização dos recursos naturais.

Joênia Wapixana, advogada do Conselho Indígena de Roraima, mostrou preocupação com relação às más interpretações relativas à definição de marco temporal como critério para delimitação de terras indígenas. Segundo Joênia, há uma tentativa de frustrar futuras demarcações com a divulgação de um suposto fracasso da delimitação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Para a líder indígena, a delimitação de terras na forma de áreas contínuas deve levar em consideração as áreas de lavoura, o espaço necessário para o respeito à espiritualidade e às necessidades de sobrevivência dos grupos.

Sistema interamericano – A defensora pública federal em São Paulo Isabel Penido expôs a experiência da Defensoria Pública da União como amicus curiae (parte no processo) no caso Xukuru, que aguarda julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). O caso está relacionado com a violação do direito à propriedade coletiva da etnia em consequência da demora de mais de 16 anos no processo administrativo de reconhecimento, titulação, demarcação e delimitação de suas terras e territórios ancestrais, bem como da morosidade na regularização total desse território, localizado em Pernambuco.

Segundo a defensora, a Corte IDH tem desenvolvido uma jurisprudência indígena considerada de vanguarda. Entre os aspectos, Penido destacou a evolução do entendimento do artigo 21 da Convenção Americana (que trata do direito à propriedade), o reconhecimento do direito às terras ancestrais e o papel essencial da antropologia jurídica. “Essa jurisprudência, tida como de vanguarda, é construída a partir das lutas daqueles que levaram os casos ao sistema interamericano. Foi construída por antropólogos, peritos, lideranças e comunidades que lutaram para ter voz”. Segundo ela, o texto é resultado de um processo de construção coletiva, com a participação de todas as militâncias que fizeram e formularam pedidos de reconhecimento.

Defesa do direito à terra – Durante o evento, o doutor em antropologia e professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro João Pacheco destacou a importância de se levar a questão indígena, principalmente no que diz respeito à efetivação dos direitos originários e às demarcações, para tribunais e cortes internacionais, como a CIDH. “Isso pode criar uma massa importante de questionamentos para o governo brasileiro e, com isso, provocar avanços”, explicou.

Para o doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Paraíba Fábio Mura, é essencial dar visibilidade aos variados usos que os indígenas fazem da terra para uma melhor compreensão dos aspectos envolvidos nas demarcações de seus territórios. “A dinâmica de uso da terra pelos indígenas não se limita ao espaço delimitado pelo estado. Os usos são múltiplos e há estudos da Funai que mostram essa dinâmica. Os índios já usam a terra como lhes é permitido. É preciso dar visibilidade para esses múltiplos usos, para ampliar a discussão sobre o tema”, diz.

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