Crises hídricas mais frequentes e intensas, extinção de animais e plantas, perdas econômicas, maior propagação de doenças, aumento do aquecimento global. Estas seriam apenas algumas das consequências da redução de áreas protegidas na Amazônia. O ISA entrevistou três grandes especialistas no tema para entender melhor quais seriam os impactos de termos “ilhas de floresta num mar de degradação”, como aponta o cenário de diminuição e extinção dessas áreas, e qual a importância das Unidades de Conservação (UCs) para o bioma e todo o país.

A bancada do Amazonas no Congresso encabeça um movimento junto ao governo federal para reduzir um milhão de hectares de Ucs no sul do Estado. Um levantamento do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA revelou que existem grandes interesses econômicos por trás da proposta.

Além do caso do Amazonas – foco das entrevistas aqui publicadas –, outras iniciativas também colocam em risco a proteção da floresta.  Um exemplo é a Medida Provisória (MP) 756/2016, enviada pelo governo federal ao Congresso e que tramita no Senado, que visa reduzir a Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará.

Outro caso expõe o avanço dessa ameaça: a redução da Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, localizada no Mato Grosso e uma das mais antigas da Amazônia.

Confira abaixo os principais trechos das entrevistas.

Nurit Bensusan, assessora do ISA e pesquisadora em Biodiversidade ISA – Quais são os efeitos esperados da redução e extinção de Ucs no Amazonas e Pará?

Nurit Bensusan – O que fica cada vez mais evidente é que a gente está deixando de ter uma floresta contínua e passando a ter ilhas de floresta. A dinâmica dos fragmentos de floresta é diferente da dinâmica de uma floresta contínua. A Amazônia é uma floresta com diversidade biológica impressionante porque atravessa um contínuo de climas, microclimas, áreas de umidade, paisagens, relevos… A interação dos organismos biológicos com esses ambientes também é diversa.

A expressão “comer pelas bordas” é muito adequada para entender o que acontece com os fragmentos de floresta ou de qualquer ambiente natural. Nas bordas de uma floresta, a dinâmica é outra: tem muito mais luz, menos umidade, algumas espécies crescem mais do que outras por causa dessas condições, o microclima muda. Esse efeito se propaga para dentro do fragmento. O “efeito de borda”, que existia originalmente só nas bordas da Floresta Amazônica, começa a existir dentro dela.

Essas Ucs que estão tendo seus limites reduzidos ou estão sendo “descriadas” vão colaborar para criar mais um fragmento. O fragmento que vai ficar entre a rodovia Transamazônica, a BR-319, a BR-163 e a calha do Rio Negro vai ser separado do resto da floresta. Essas áreas protegidas ajudam a conter o desmatamento que vem do eixo da estrada e também do sul da Amazônia. Você tem ali um conjunto de pressões pelo desmatamento.

ISA – As Ucs são realmente efetivas para conter o desmatamento na região?

NB – É interessante isso, porque muita gente fala que as Ucs não servem para nada. Quando olhamos para o mapa da Amazônia e do desmatamento, descobrimos que muito áreas que ainda estão íntegras são áreas que são Ucs ou Terras Indígenas. As Ucs servem, sim, para conter o desmatamento. Não tem nenhuma controvérsia sobre isso porque os números são acachapantes.

ISA – É possível dizer também que podem ocorrer mais episódios de crise hídrica por conta da redução de áreas protegidas na Amazônia?

NB – O regime de chuvas do Sul e do Sudeste depende da Amazônia. Sem a floresta jogando a umidade na atmosfera, ou com a floresta reduzida jogando menos umidade na atmosfera, evidentemente vai chover menos. A agricultura vai ser uma das primeiras prejudicadas pelo desmatamento da Amazônia. As consequências virão, não serão poucas e a nossa própria segurança alimentar vai ficar ameaçada.

ISA – Qual é o efeito da fragmentação sobre as comunidades locais da Amazônia?

NB – Boa parte das populações locais são extrativistas. Uma floresta que preserva uma determinada cobertura florestal, mas tem sua diversidade biológica comprometida pode ser muito menos rica em termos de produtos extrativistas. Para essas comunidades, a degradação pode comprometer não só a qualidade de vida, mas a própria sobrevivência.

ISA – Quais as causas da fragmentação da Floresta Amazônica?

NB – Uma coisa é o desmatamento que vem do sul do país e vai comendo a floresta pela borda. A outra é o desmatamento que acontece no meio da floresta. As estradas são grandes eixos de desmatamento. A floresta, que era um contínuo, está se transformando numa série de ilhas. Como o desmatamento continua acontecendo, esses fragmentos vão se distanciando uns dos outros. Você deixa de ter fluxos gênicos entre esses fragmentos. São ilhas de floresta num mar de degradação. Essas ilhas são fatais para a dinâmica das espécies, dos ecossistemas, das paisagens, da biodiversidade.

As Ucs, principalmente como vêm sendo planejadas nos últimos anos, têm uma lógica de anti-fragmentação da Amazônia. Elas evitam que os fragmentos fiquem muito distantes uns dos outros, impedindo que o fluxo gênico seja interrompido de forma definitiva. Porque se isso acontecer, aí sim a floresta acaba.

O fluxo gênico é a movimentação dos genes carregados por plantas, animais e micro-organismos de um lugar ao outro. Quando dizemos que a fragmentação da floresta interrompe o fluxo gênico, queremos dizer que, como os organismos não conseguem passar de um fragmento a outro, eles não encontram outros organismos da mesma espécie para trocar seus genes, reproduzir-se.

Jean Paul Metzger, professor do Departamento de Ecologia da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em ecologia de paisagens e conservação

ISA – Qual é o risco para a biodiversidade amazônica de, ao invés de uma floresta contínua, haver um conjunto de fragmentos?

Jean Paul Metzger – Quanto menor o tamanho do fragmento, menor o tamanho da população. Quando você torna a área subdividida em fragmentos pequenos, está impondo tamanhos populacionais cada vez menores, que significam maior susceptibilidade à extinção. Se em determinado fragmento, você tem a redução do tamanho populacional, existe a possibilidade de um fragmento adjacente permitir, através dos fluxos de indivíduos, uma recuperação da população. Se você tem muito isolamento e uma matriz muito inóspita, isso não é possível. À medida que você vai desmatando, vai criando ambientes de borda entre o fragmento florestal e a matriz de uso humano, essa borda tem alterações microclimáticas e recebe muita alteração da matriz. Esses efeitos reduzem a qualidade do que resta e impactam as populações nativas. Você tem, pela fragmentação, maior acesso do homem a essas áreas nativas, mais caça, mais retirada de madeira, trilhas. É mais um componente que vai reduzir a qualidade dos fragmentos.

A gente sabe que os grandes maciços florestais são as nossas grandes poupanças em termos de manutenção das espécies. Quanto maior o maciço florestal, maior o tamanho da população e mais estável é essa população ao longo do tempo. Se a gente não fizer corredores de matas contínuas protegidas, que vão bloquear a entrada desse arco do desmatamento mais ao norte, a situação da Amazônia vai ficar cada vez pior. Eu entendo esses maciços florestais, estrategicamente alocados em locais onde se tem aumento da pressão antrópica, como capitais para manter o patrimônio biológico na Amazônia.

ISA – Quais são os efeitos da fragmentação florestal sobre a questão climática e a crise hídrica?

JPM – As florestas geram uma série de benefícios para o homem: benefícios de provisão de madeira, de água, de recursos não madeireiros, regulação climática através de ciclos hídricos, da absorção de carbono e outros serviços de regulação.

As florestas também podem ser importantes em termos de regulação de doenças. Trabalhamos aqui [na USP] com a hantavirose. Sabemos que em uma comunidade de pequenos mamíferos, onde se tem algumas espécies que são reservatórios para o hantavírus, uma comunidade mais íntegra vai ter populações de reservatório muito menores. Ou seja, você vai ter um risco de propagação de hantavirose menor se você tiver florestas mais íntegras. Quanto mais você degrada, mais doenças você vai ter. Febre amarela deve funcionar da mesma forma.

A gente tem que pensar na floresta além da sua composição. Tem que pensar em suas funções. Em particular em relação ao clima e à água, porque são mais evidentes, mas pensando em outros processos ligados a doenças, pragas e polinização. Tudo isso gera benefícios econômicos, não apenas benefícios de bem-estar humano. Benefícios econômicos inclusive para o produtor.

ISA – Existe no Brasil algum caso emblemático de redução de habitats e fragmentação florestal?

JPM – A Mata Atlântica é um exemplo histórico de fragmentação e desmatamento que resultou num sistema extremamente depauperado de florestas. Uma área que era extremamente produtiva no café, hoje em dia você não consegue nem ter pecuária extensiva. Mal e mal se consegue tirar algum dinheiro dessas áreas. Temos uma paisagem totalmente transformada e subutilizada porque está completamente degradada.

Ana Cristina Barros, diretora de Infraestrutura da ONG The Nature Conservancy (TNC) ISA – Como as Ucs no sul do Amazonas são importantes para a conservação de toda a Amazônia?

Ana Cristina Barros – Elas são muito bem localizadas numa área de explosão do desmatamento ilegal. Assim como as outras Ucs têm conseguido barrar a extensão do desmatamento ilegal, esperava-se que essas fizessem a mesma coisa. Elas têm uma riqueza biológica enorme, um papel de barreira do desmatamento.E você tem na área de Flona [Floresta Nacional] um plano, junto com o Serviço Florestal Brasileiro, de ter um distrito florestal naquela região, o que asseguraria, junto com o turismo, potencial de desenvolvimento econômico.

ISA – Essas áreas em volta das rodovias, que não fazem parte das Ucs, também foram pensadas no momento de criação das unidades?

ACB – A prioridade é conservar. Essa é a prioridade para a Amazônia. Não é desmatar. A floresta tem carbono, cicla água, tem nosso patrimônio da biodiversidade. Quando vamos decidir o que vai se fazer com isso, você olha o que está acontecendo na região. Essas Ucs foram desenhadas não incluindo áreas de ocupação e projetos de estradas. Foi fruto de toda uma negociação. É por isso que foram criadas. Porque para você passar da Casa Civil e o presidente sancionar, os ministérios todos têm que dar o aval. Você tem de negociar de negociar com o estado, com o produtor… Por isso que é difícil. Chega, negocia, está tudo OK, cria. Depois o governo quer mudar o acordo. Essa parte que não é legal. Isso que a gente pode chamar do golpe contra a floresta.

ISA – Em sua visão, o que levou ao projeto de redução das Ucs no Amazonas?

ACB – Para mim, a discussão de revisão dessas unidades é um processo muito parecido com a insurgência na discussão do licenciamento. Para mim, revisar essas unidades é parte do mesmo sintoma. É um sintoma de busca por benefício individual, de um pequeno grupo, não associado a como se faz negócio no mundo inteiro.

ISA – Como a redução das Ucs pode afetar as pretensões do Brasil de reduzir as emissões de gases de efeito estufa?

ACB – Em negociações em geral, especialmente em negociações internacionais, conta muito a reputação do negociador e do país que ele representa. O Brasil tem, até hoje, uma reputação muito boa pela qualidade de seus técnicos, de seus diplomatas, e pelos resultados que mostrou com o decréscimo do desmatamento. Esse cenário está mudando. Todo mundo entende que essa redução enorme do desmatamento pode ser que flutue lá embaixo um pouco. Agora, sobe 30% [a taxa do desmatamento] e você “descria” Ucs? É jogar o nome na lama. É inexplicável o porquê.

ISA – Não parece ter explicação, a não ser interesse econômico…

ACB – Interesse econômico local, pequeno. Não é para trader da soja, não é para os grandes frigoríficos. É uma politicagem chula que não dá para chegar na Presidência. Que isso aconteça no campo, que tenha uma liderança local, um vereador que brigue contra, claro que tem. Agora jogar isso para cima, onde os interesses são outros… Tem um risco enorme aí que é o precedente. Se fez isso uma vez, vira moda. Você pega um processo que tem páginas e páginas de estudo técnico, é robusto, tem de convencer todos os ministérios, o governo estadual, lideranças, faz audiências públicas, você pega tudo isso e joga fora porque alguém não quer. É essa a situação em que a gente está. E é essa situação que pode se alastrar.

Por: Victor Pires
Fonte: ISA

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