Neste 19 de abril de 2017, completou um ano que a Funai publicou o relatório circunstanciado da terra indígena dos índios Munduruku da bacia do Rio Tapajós, no Pará.
É início da noite e Juquita Akay Munduruku está triste. Um mal-estar e a ausência do marido Juarez Saw Munduruku deixaram-lhe abatida. “Ela fica assim quando está muito tempo longe do meu pai. Eles quase nunca se separam. Quando ele viaja, sempre a leva. Desta vez, ela não foi”, diz Emerson Munduruku, 25 anos, um dos oito filhos do casal.
Uma das principais lideranças do povo Munduruku e cacique da Terra Indígena Sawré Muybu, Juarez Saw Munduruku havia ido a Itaituba, no leste do Pará, para uma reunião sobre educação indígena na prefeitura do município e ficou dois dias fora de sua comunidade. Era início de setembro de 2016. A reportagem da Amazônia Real estava lá.
Quando Juarez voltou à aldeia a sensação de desânimo começou a desaparecer e o sorriso de Juquita se recuperou. Para garantir a saúde dela, o cacique pede que um técnico de enfermagem, que está na aldeia, a examine. Ela é medicada.
“Durante todos esses anos, a Juquita e eu viajamos juntos. Nós nunca nos largamos. Para onde vou, ela vai. Ultimamente ela está andando pouco, está com problema de visão”, relata o cacique.
Juarez Saw Munduruku, 56 anos, e Juquita Saw Munduruku, 52 anos, se conheceram e se casaram ainda adolescentes. Ele, nascido na Vila Nova; ela, na aldeia Sai Cinza, no Alto Rio Tapajós. Constituíram família, tiveram oito filhos e foram deslocando-se ao longo do rio Tapajós até chegar à comunidade ribeirinha Pimental, no Médio Tapajós, na década de 1980, onde moraram durante 20 anos.
O preconceito que sofreram por serem indígenas e a dificuldade de acesso à educação e saúde levaram o casal e a família, acompanhado de outras lideranças, a sair de Pimental e se estabelecer em uma área de um território ancestral Munduruku. Isso aconteceu no início dos anos 2000, quando Juarez e Juquita e outras lideranças Munduruku fundaram o território Sawré Muybu à margem direita do médio rio Tapajós.
A Terra Indígena Sawré Muybu representa o símbolo da resistência dos Munduruku frente aos projetos de hidrelétricas na Bacia do Tapajós. Nos últimos quatro anos, a região esteve no centro de debate que envolveu a construção da usina São Luiz do Tapajós e a demora da Fundação Nacional do Índio (Funai) em demarcar o território. Em 2014, cansados de esperar pela ação da Funai, eles próprios iniciaram uma autodemarcação, finalizada em 2015, e com emplacamento dos pontos concluído em 2016.
“A gente veio para cá em 2004, mas desde muito tempo já frequentava o local. Há mais de 30 anos vínhamos caçar e pescar, porque sabíamos que era terra Munduruku”, diz Juarez.
O território possui três aldeias: Sawré Muybu, Dace Watpu e Karo Muybu, com uma população estimada em aproximadamente 175 pessoas. Mas os Munduruku estão em constante processo de deslocamento ao longo do Tapajós. Portanto, este número de comunidades tende a aumentar a partir de 2017. As aldeias estão em uma área de 178 mil hectares que vai até a foz do rio Jamanxim, nos municípios de Itaituba e Trairão, ambos no Pará. Sawré Muybu é o nome Munduruku de Juarez, em referência a Saw, que significa o clã da saúva.
À espera da canetada definitiva
Neste dia 19 de abril, a assinatura e publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Sawré Muybu completou um ano. O relatório é um documento da Funai que reconhece a ocupação tradicional do local. Em pleno processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), o ex-presidente da Funai, João Pedro Gonçalves, assinou a publicação do relatório. O documento estava pronto desde 2013, apenas aguardando a assinatura. O processo de demarcação já transcorria há quase dez anos.
Os Munduruku de Sawré Muybu cobram agora a homologação, cuja assinatura depende do presidente Michel Temer (PMDB). Eles sabem que não será fácil. Desde a chegada de Temer ao poder, os ataques aos direitos indígenas recrudesceram. No mês passado, o ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB-PR), notório ruralista anti-indígena, assumiu o cargo. Quando era deputado federal, ele foi relator da PEC 215, que propõe mudanças no processo de demarcação das terras indígenas no país. Em entrevista à “Folha de S. Paulo”, ele fez uma declaração perigosa. Disse que “terra não enche barriga”.
A Amazônia Real indagou da Funai quantas contestações o órgão federal recebeu contra a homologação de Sawré Muybu. A fundação não entrou em detalhes, mas disse que foram sete contestações, sem nomear as autorias. A reportagem apurou que uma das contestações foi feita pela Eletrobras, estatal do setor elétrico responsável pelo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Usina São Luiz do Tapajós, antes mesmo da publicação do Relatório Circunstanciado.
Em um documento de junho de 2015 enviado à presidência da Funai, com foco no Estudo do Componente Indígena, a Eletrobras não reconhece a existência de terra indígena diretamente afetada pela Usina São Luiz do Tapajós, e contesta a tradicionalidade dos Munduruku no território Sawré Muybu. A empresa recorreu à tese do marco temporal, estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para definir o direito originário dos indígenas a seu território. O marco temporal fixa como prazo-limite a promulgação da Constituição de 1988 para reconhecer a ocupação tradicional das terras pelos índios. A tese é contestada por indigenistas e juristas. A Eletrobrás foi procurada, mas não respondeu as perguntas da reportagem.
No documento que a reportagem teve acesso, a Eletrobras propôs a saída das aldeias de Sawré Muybu da margem direita do Médio Rio Tapajós e sua transferência para outra área (não definida pela estatal) denominada “reserva indígena” em região “semelhante à requerida pelo Relatório Circunstanciado respeitando os limites necessários à formação do reservatório da Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós”. A categoria “reserva indígena” é prevista no Estatuto do Índio, de 1973, mas não reconhece a tradicionalidade territorial ou a posse imemorial. Os indígenas Munduruku recusaram a proposta da Eletrobras.
“A gente pede que o governo homologue logo essa terra o mais rápido possível. Os invasores continuam entrando, garimpeiros e madeireiros. Eu não posso fazer mais nada. Eles nos ameaçam”, alerta Juarez Munduruku.
Os Munduruku estão agora na fase de preparação de resposta às contestações da demarcação. Eles sabem que o principal argumento será o marco temporal, conceito que vem sendo utilizado para questionar a ocupação tradicional das terras indígenas e que surgiu por ocasião do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, concluído em 2009. A homologação da Raposa Serra do Sol havia sido assinada em 2005 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas foi contestada pelo governo de Roraima.
Em meados do ano passado, os Munduruku iniciaram a elaboração de um mapa com histórico da presença tradicional na área do Médio Tapajós, nomeando locais sagrados, sítios arqueológicos, espaços de trânsito de animais e áreas de floresta e as espécies de vegetação mais comuns.
“Querem dizer que somos recentes na região. Vão usar o marco temporal. Por isso é importante mostrar este mapa. O Médio Tapajós faz parte da história Munduruku. Karosakaybu (criador) fez o Tapajós para o Munduruku morar. Para nós, ele é deus dos Munduruku. Nosso lugar sagrado fica a poucos quilômetros daqui”, afirma.
Segundo a Funai, a população atual de Sawré Muybu é uma “leva migratória de Munduruku do Alto Tapajós, ocorrida na segunda metade do século 20”.
“Quanto aos dados populacionais, constata-se que, após um longo período de declínio em função do contato com a sociedade envolvente, essa etnia vem passando por um processo de recuperação populacional. Para o povo Munduruku, o local onde se situa a TI Sawré Muybu é crucial do ponto de vista simbólico, pois o “Fecho”, como é chamado um trecho em que o rio se estreita, figura na mitologia Munduruku como o ponto de surgimento do rio Tapajós.”, diz nota da fundação, divulgada em seu site.
Os habitantes de Sawré Muybu, conforme consta no Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Funai, são, a maioria, descendentes de quatro famílias: de Valto, do clã Dace, de Juarez, do clã Saw, de Francisco, do clã Karu, e de Acelino, também do clã Dace, que migraram do Alto Tapajós, viveram uma época em diferentes comunidades até se estabelecer no Pimental e, por fim, fundaram a TI Sawré Muybu, que já era frequentada por eles desde a década de 1980 para pesca e caça.
O grupo de trabalho que atuou no Relatório Circunstanciado identificou nove ocupantes não-indígenas na TI Sawré Muybu, totalizando 8.719 hectares de fazendas e sítios localizados nas áreas.
De acordo com o Relatório Circunstanciado, a TI Sawré Muybu incide nas áreas desafetadas da Floresta Nacional Itaituba II pela Lei 12.678 e, portanto, situa-se na área com previsão de alagamento entre as barragens das Usinas de Jatobá e São Luiz do Tapajós, que também vão impactar as TIs Sawré Juybu e Sawré Apompu, essa ainda em procedimento de demarcação.
As ameaças das barragens
Desde os primeiros deslocamentos dentro da região do Tapajós, Juarez e Juquita enfrentaram as inúmeras dificuldades que atingiram seu povo e sua família, composta por oito filhos (seis homens e duas mulheres): doenças, mortes por falta de atendimento médico e ameaças de madeireiros e garimpeiros. Anos depois, imaginavam que sua maior luta era consolidar Sawré Muybu como território indígena reconhecido pelo governo brasileiro, mas foram surpreendidos com os projetos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) dos governos petistas, que incluía a construção de barragens na Amazônia.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva decidiu retomar o plano de construção de hidrelétricas na bacia do rio Tapajós, um projeto que datava da década de 1980, aprovando em 2009 os inventários que identificaram cinco áreas para inundação pelas barragens. Uma delas é a Usina São Luiz do Tapajós, com potência de geração de 8.040 MW.
Em pleno processo de demarcação pela Funai, iniciado em 2007, Sawré Muybu se viu ameaçada pela perspectiva de ter 7% de seu território inundado, junto com outras duas comunidades ribeirinhas – Montanha Mangabal e Pimental – forçando a remoção dos moradores e causando o desaparecimento de ilhas, lagos e igapós, destruindo a flora e a fauna. Outras duas terras indígenas Munduruku – Praia do Mangue e Praia do Índio, ambas regularizadas – também estão na área de influência da Usina São Luiz do Tapajós.
O artigo 231 da Constituição Federal diz que é vedada a remoção de grupos indígenas de suas terras, salvo em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, e garantindo o retorno imediato logo que cesse o risco.
“A gente caçava aqui e já conhecia essa terra desde a década de 80. Por isso a escolhemos para criar uma aldeia. A nossa primeira luta era só uma: o reconhecimento da terra. Comecei a viajar a Brasília. Começamos a pressionar. Depois chegou o projeto do governo das hidrelétricas. Eu mesmo não sabia desse projeto. A gente achava que era projeto pequeno. Quando me entendi, vi que não era pequeno. Agora eram duas preocupações: barragem e demarcação”, lembra Juarez Munduruku.
No governo de Dilma Rousseff, o Complexo de Hidrelétricas no Tapajós, como passou a ser chamado, tornou-se prioridade da política energética. A experiência negativa de Belo Monte, em Altamira (PA), e das usinas do Madeira, em Rondônia, assustava os indígenas e ribeirinhos do Tapajós.
Para quem nunca tinha saído de sua terra, o cacique conheceu uma nova realidade. Viagens, audiência, burocracia, descaso. “A pressão era muito grande. O governo dizia que queria dialogar, mas começou a fazer pesquisas, os estudos para as hidrelétricas. A gente não aceitava.”
Origem dos Munduruku
O povo Munduruku fala uma língua do tronco Tupi. Historicamente, habitava um território que abrangia do rio Madeira, no Amazonas, ao Tapajós, no Pará. Eles se autodenominavam We Dji Nyo (“Nós, as pessoas”) ou Wuy jugu. O nome “Munduruku”, que significa formiga vermelha, como são conhecidos desde fins do século 18, foi dado pelos índios Parintintin, um povo inimigo que ocupava a margem direita do rio Tapajós e Madeira.
Depois de um período de declínio, a população Munduruku vem passando por um resgate demográfico. O Censo do IBGE de 2010 diz que a população da etnia era de 13 mil pessoas. A maioria reside nas aldeias do Alto Tapajós, nas Terras Indígenas Munduruku e Sai-Cinza. No Médio Tapajós, os Munduruku estão nas terras Sawré Muybu, Sawré Juybu e Sawré Apompu (estas três em processo de demarcação) e Praia do Mangue, Praia do Índio e Tucunaré.
No baixo Tapajós, há presença Munduruku nas TIs Escrivão (em estudo), Munduruku-Taquara e Bragança-Marituba (delimitadas).
Segundo o Relatório Circunstanciado da Funai, os Munduruku se organizam socialmente em 38 clãs que correspondem a elementos da natureza como plantas e animais e se dividem em duas metades: vermelha e branca. Em Sawré Muybu, os clãs são Karu, Saw, Kaba e Manhuari (metade vermelha); Parawat, Dace, Akay, Krixi, Kurap, Poxo e Boro (metade branca).
A escolha pela autodemarcação
Desde que souberam da conclusão do Relatório Circunstanciado em 2013, os Munduruku tentaram todas as vias possíveis, do diálogo a ingressos na Justiça, para que o procedimento de demarcação de Sawré Muybu fosse finalizado. As duas tentativas nas vias legais, com ações do Ministério da Justiça, foram acatadas na Justiça Federal de Itaituba, mas derrubadas no Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1), a pedido da Funai.
Por pressão do setor energético, o governo brasileiro não publicava o relatório. Durante uma reunião com os indígenas em setembro de 2014, a então presidente interina da Funai, Maria Augusta Assirati, admitiu a interferência de setores do governo na construção da usina.
Vendo a ameaça da usina avançar e a demora da Funai em demarcar, em 2014 os Munduruku recorreram a um ato inédito de regularização de território: a autodemarcação.
Usando como base a própria delimitação feita pela Funai em seu estudo, os Munduruku iniciaram expedições nos 178 mil hectares para identificar e marcar os pontos da terra indígena. Para reforçar a caminhada, guerreiros Munduruku do Alto Tapajós vieram em grupos. Os indígenas também contaram com apoio de organizações parceiras, como Greenpeace, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Movimento Xingu Vivo e Fórum da Amazônia Ocidental (FAOR).
O processo de autodemarcação de Sawré Muybu tornou-se um dos maiores exemplos de protagonismo e capacidade de resistência dos Munduruku em defesa de seu território. Manuseando GPS doado por instituições aliadas, os guerreiros Munduruku entraram na mata fazendo picadas, abrindo clareiras e instalando pontos.
“Participei do início ao fim. Eu e minha mulher e o apoio dos guerreiros. Com a terra, fica mais difícil do governo fazer a barragem. Na primeira etapa, 25 pessoas só do Alto Tapajós vieram ajudar. Depois, vieram mais. Da nossa comunidade, eram 10 mulheres e homens, com as bolsas nas costas. As mulheres iam para cozinhar, mas as meninas estavam aprendendo a filmar”, diz Juarez.
O grupo de mulheres Munduruku filmou todo o processo de autodemarcação e disponibilizou o vídeo na internet. O trabalho, que contou com apoio da jornalista Rachel Gepp, prosseguiu e hoje o grupo de mulheres decidiu criar um coletivo para produção de vídeos (veja o video-reportagem da Amazônia Real).
Com base no mapa da Funai, os Munduruku fizeram os pontos e definiram os traçados que delimitam o território.
“A gente abriu a picada em cima dessa linha. Quando a gente decidiu fazer isso, comunicou para a Funai. Dissemos que íamos arriscar nossa vida, que íamos fazer uma coisa que era a Funai que era para fazer. Se acontecesse alguma coisa conosco, a culpada seria a Funai. Mas a ameaça só veio depois que tudo acabou. Uma pessoa veio aqui na comunidade me procurar na minha roça. Disseram que eu não podia empatar de tirar a madeira. Que a terra era deles. Fiquei preocupado, mas não falei nada”, afirma Juarez.
Durante as incursões na floresta, os guerreiros Munduruku encontraram muitos invasores, principalmente garimpeiros e madeireiros, mas também lugares sagrados e sítios arqueológicos que atestaram a ocupação de seus ancestrais na região.
“Os invasores perguntavam e a gente dizia que estava demarcando. Eles não falavam nada, mas quando a gente terminou tudo, eles ficaram ameaçando. Algumas das placas que instalamos, eles derrubaram. Em algumas, eles deram tiro. Enquanto a homologação não é assinada, esses invasores vão continuar dentro da terra indígena”, diz Juarez.
Com a autodemarcação finalizada, os Munduruku prosseguiram com o emplacamento, que terminou apenas no final do ano passado. Eles estimam em 52 placas no total. Em cada ponto, foram instaladas duas placas, uma de madeira, em língua munduruku, e outra seguindo padrão de identificação da Funai.
As placas foram fabricadas pela ONG Greenpeace, que em 2015 iniciou uma ampla campanha de apoio à regularização da TI Sawré Muybu e de combate à obra da usina São Luiz do Tapajós.
Emerson Munduruku, filho de Juarez, diz que a ideia de fazer a autodemarcação veio após a longa espera pela publicação do relatório circunstanciado, que reconhecia Sawré Muybu como terra indígena. Nessa época, a construção da usina São Luiz do Tapajós já era prioridade do governo Dilma Rousseff. “Quando soubemos que poderíamos sair daqui foi doído. A gente ficou numa grande apreensão”, diz.
Emerson afirma que a aliança com ribeirinhos, especialmente da comunidade Mangabal, que também vai desaparecer se a usina for construída, e com os guerreiros Munduruku de outras aldeias, foi fundamental para o êxito da autodemarcação.
“A gente se juntou em 50 pessoas. A gente ia com terçado, bota, rádio de comunicação, rancho. Decidimos fazer isso porque há muito tempo aguardava pela Funai. A gente confiava nela. Apesar da demora, a Funai nunca impediu que fizéssemos a autodemarcação, nos apoiou, mesmo que não diretamente”, afirma.
A primeira placa de identificação do território está instalada a 10 minutos da aldeia Sawré Muybu. Ela tem uma importância histórica e simbólica, pois é onde começou a luta dos guerreiros.
“Comemoramos bastante a publicação do relatório pela Funai. Mas agora a gente quer a homologação. Enquanto isso não acontecer, vai continuar tendo garimpo e madeireiros aqui. Por isso estamos com este mapa, para mostrar que esse território é tradicional dos Munduruku. Sem a homologação, não temos forças para lutar contra os invasores.”, afirma Emerson Munduruku.
Companhia do marido em todo processo de autodemarcação, Juquita Munduruku diz que “foi sofrido”, pois houve período de fome e sede durante as caminhadas no meio da floresta. Mas ela destaca que, apesar de difícil, o resultado foi importante. “Tenho muito fé que será homologado”, disse
No dia 19 de abril de 2016, Juarez estava brincando com as crianças da comunidade quando recebeu um comunicado por radiofonia. “Eu estava na palhoça quando me chamaram. Falaram da publicação [do relatório circunstanciado]. Para mim foi um sonho realizado, mas uma grande surpresa. Acho que foi resultado da nossa pressão, mas também da pressão do impeachment da Dilma”, conta.
Dace Watpu
A primeira aldeia criada na TI Sawré Muybu, Dace Watpu, está localizada em uma área plana e de fácil acesso terrestre, cujas moradias são avistadas logo quando se chega à margem. Foi nesta primeira localidade que a família de Juarez Munduruku viveu por um período. Mas um trauma causado pela morte de uma criança de sete anos – vítima de malária – levou todos ao luto e ao firme propósito de trocar de lugar.
“Todos ficaram tristes. Estava dando muita malária lá e por isso decidimos vir para cá. Nós éramos 83 pessoas. Depois, foi juntando mais parentes e agora somos 172 pessoas morando aqui [aldeia Sawré Muybu]”, conta Juarez.
Ao se estabelecer no local batizado como Terra Indígena Sawré Muybu, a família do cacique imediatamente se certificou que se tratava de um território tradicional Munduruku não apenas pelas narrativas de origem do povo, que se reporta ao criador Karosakaybu, mas também à forte presença de objetos arqueológicos, como urnas funerárias e cerâmicas com pinturas ancestrais do seu povo.
“Primeiro, a gente reconheceu [que era tradicional] por causa da terra. Era terra preta. A maioria das aldeias Munduruku está em cima desses sítios [arqueológicos]. Aqui em Sawré, a gente encontrou muitas urnas. Urnas redondas. Algumas delas tinham osso. Tem urna em qualquer lugar aqui na aldeia. Na época, a gente não tinha conhecimento e mandamos tirar e até destruir. Depois, o pajé recomendou não mexer mais nelas. Algumas foram devolvidas para a terra”, diz Juarez.
O local de origem dos Munduruku fica a cerca de uma hora e meia de voadeira – pequena e ágil embarcação de alumínio – da aldeia Sawré Muybu. O local é sagrado e poucos Munduruku vão até lá. Juarez conta que, certa vez, a ong Greenpeace tentou instalar uma faixa como parte de sua campanha. “Eles queriam estender e esticar a faixa. Não conseguiram. A faixa não abriu de jeito nenhum. O pajé já havia falado que não iam conseguir. Que se os índios caíssem n´água, iam morrer. Parece que um espírito no fundo do rio não deixou”, relata.
Da margem do rio Tapajós até a aldeia Sawré Muybu é preciso fôlego e forças nas pernas para enfrentar uma ladeira de cerca de 300 metros de altura. Há posto de saúde e escola de ensino médio, com aulas ministradas pela professora Aldira Munduruku.
As casas são cobertas por palhas de palmeira, como é o caso do babaçu, e as paredes de madeira extraída na floresta próxima. O principal cômodo da moradia é a cozinha, sem parede, onde os indígenas usam para preparar as refeições e também para conversar e fazer reuniões. O alimento mais importante é o pescado e a carne de caça. Os indígenas também consomem comida industrial comprada em suas viagens a Itaituba. Cada família tem seu próprio roçado.
O contato com não-indígenas durante décadas fez com que muitos Munduruku esquecessem a língua materna. Apenas os mais velhos falam e entendem a língua. Os jovens compreendem, mas não se expressam por meio dela.
Juarez Munduruku tem esperança que na escola as crianças resgatem o hábito de se comunicar totalmente na língua. “Quanto a gente estava no Pimental, muitos estavam perdendo a língua.”
De seus oito filhos, todos entendem Munduruku, mas apenas Lucineide Munduruku, 34 anos, também fala. Os outros filhos do casal são Luciene, 34 anos, Daniel, 28 anos, Valdenildo, 26 anos, Robson, 24 anos, Emerson, 25 anos, Diogo, 21 anos, e Deivisson, que mora no município de Jacareacanga, vizinho a Itaituba.
A repercussão das ameaças contra a Terra Indígena Sawré Muybu teve alcance internacional. Nos últimos dois anos, artistas de televisão e do cinema, como a atriz Alice Braga, estiveram na terra indígena, para dar visibilidade à luta dos Munduruku.
Vivência em Pimental
Antes de Sawré Muybu, o grupo liderado pelo cacique Juarez Munduruku viveu um longo período na comunidade ribeirinha Pimental, a cerca de duas horas de viagem pelo Tapajós em uma “rabeta” – pequena embarcação feita com madeira e com motor de 5 HP. Ele conta que, por morar fora de uma área indígena, o acesso à saúde pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), na época responsável pelo atendimento aos indígenas, não existia. Hoje a assistência médica é feita pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, ligada ao Ministério da Saúde.
“Quando as crianças adoeciam, ficava difícil para nós. Como a gente já estava lutando pela demarcação, a gente decidiu vir para cá. Éramos 80 e poucos. Só da mesma família. Sobrinhos, irmãs, cunhados. Minha mãe veio, mas morreu. Ela foi enterrada naquela aldeia de baixo”, lembra.
Além da inexistência de atendimento à saúde, foi o receio de que as novas gerações de Munduruku de sua família perdessem a relação com sua cultura e sua língua que levou Juarez e os mais velhos a decidir pela saída de Pimental para ocupar outro território.
Em Pimental, o grupo de Juarez morava numa espécie de “aldeinha”. Ele conta que a vergonha e o contato com os não-indígenas foi causando o desinteresse das crianças em falar sua língua.
Ao se estabelecer em uma área à margem do Médio Tapajós, começou a luta pelo reconhecimento como território tradicional indígena. “A gente criou uma aldeia e primeiro veio a luta para demarcar”, diz o cacique.
Licenciamento arquivado
Após a publicação do relatório circunstanciado, a segunda boa notícia recebida pelos Munduruku veio em agosto de 2016, quando o Ibama decidiu arquivar o processo de licenciamento da Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, afirmando que o estudo de impacto ambiental não apresentava conteúdo necessário para análise da viabilidade ambiental do empreendimento. O arquivamento já havia sido recomendado pelo Ministério Público Federal no Pará, porque o empreendimento causaria a remoção dos indígenas do território.
Mas os projetos de barragem para a bacia do Tapajós envolvem outras usinas, e uma delas já está em operação, causando grandes impactos na vida de outros povos indígenas, como os próprios Munduruku, na região do rio Teles Pires (mesmo nome da hidrelétrica), os Kaiaby e os Apiaká, na divisa do Mato Grosso com o Pará.
“Suspenderam uma usina, mas tem outras que vão afetar o nosso território e de outros Munduruku. Outros projetos continuam. Tem os projetos da usina de Jatobá e de Chacorão, que também atingirão o Tapajós. Tem as barragens de São Manoel, no rio Juruena, e essa do Teles Pires, que já está funcionando. A gente também sente o impacto. Os peixes estão diminuindo e os que estão vivos estão magros, não encontram mais fruta para se alimentar. Somos obrigados a ir mais longe para conseguir pescar. Se tivesse uma barragem aqui, seria ainda pior”, diz Juarez.
Essa reportagem foi produzida pelo projeto “Amazônia Real – promovendo a democratização e liberdade de expressão na região amazônica” com financiamento da Fundação Ford, por meio do programa “Promovendo Direitos e Acesso à Mídia”.
Amazônia Real – Por Elaíze Farias, da Amazônia Real – Fotos e vídeo: Ana Mendes – Só a homologação livrará a terra Sawré Muybu de usinas, garimpos e madeireiros – Amazônia Real (amazoniareal.com.br) (VER FOTOS E VÍDEO)