Admitir-se espiritualizado e praticar essa admissão a partir de bases nativas amazônicas ou ocidentalistas é algo comum e natural? O questionamento, não raro, tem sido realizado por integrantes da etnia Wai-Wai, habitantes das cabeceiras do rio Mapuera, divisa do Amazonas com o Pará. Os indígenas desde os anos 1990 estão em franca troca comunicacional com missionários evangelistas. Esse dialogismo, em certa medida gera efeitos controversos, positivos e negativos – a ponto dos étnicos se perguntarem acerca da continuidade das ações intercambiadas.

Mas não é apenas isso. A pergunta acima é nada fácil de ser abordada, porque, vejamos, a inserção por diversas vias do álcool e de psicotrópicos modernos nas aldeias tem diminuído conforme o trabalho missionário alcança patamares alargados; só que também diminuem tradicionalismos implicados em crenças, atitudes, valores e ideologias ameríndias. Seria um mal necessário? Particularmente, não penso que males terminativos sejam sintomas, mas sim agentes precursores complexos.

Quando um Wai-Wai sincretiza os seus hábitos e, dentro desse sincretismo, ora tanto a Yepáquanto ao Nazareno crucificado, ele, em verdade, enriquece suas experiências psíquicas e de imaginário. Quanto a isso não há dúvidas, mas as categorias de pensamento elencadas não são as mesmas em ambas as atividades.

Parentesco, compadrio, afinidades eletivas e xamanismo, bem como hierarquias clânicas, são consideradas em orações a Yepá. Honra, pecado, medo e virtuosidades trabalhistas, incluindo-se promessas de paraíso celestial, aparecem em preces guiadas segundo evangelhos da bíblia da Reforma.

Podem parecer estruturas simples, mas, como aponta Derrida, em Gramatologia, para citar uma bibliografia europeia, e Taussig, em Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem, também outra referência do Velho Mundo, são entendimentos estruturantes, dado que a reificação das espiritualidades pode ser pensada em razão da moldagem espiritual como atitude com duplo sentido.

Primeiro porque o mal ou o bem, seja um caminho físico ou psíquico (ou nenhum dos dois) para a salvação, é algo a ser pensado por instrumentação. Segundo porque essa instrumentação para a salvação já historicamente é especializada dentro da sociedade indígena Wai-Wai, não sendo realizada por qualquer pessoa.

De modo que a utilização de conhecimentos tradicionais para ascender a universos extraterrenos não é trabalho de menor valor para a etnia, e muito menos para a doutrina evangelista. Simplesmente por existirem tais como são, os conhecimentos xamânicos armam confronto e se contrapõem ao estado parcimonioso de catatonia no qual alta parcela da sociedade urbana amazônica vive atualmente, mesmo sem se dar conta disso – o que rebate na religiosidade ocidental.

E ainda. Nas urbes pequenas e médias da Amazônia mimetizou-se o discurso da indiferença ao sistema ameríndio como algo não cativante e não fortuito, de forma que doar-se a alguém ou a alguma causa em busca de um bem comum, de um destino comum, não tende mais a ser visto como pressuposto que permeia a vida de líderes espirituais Wai-Wai.

São as efetivas trocas, as quais direcionamos nossa análise, que devem existir e serem respeitadas. Isso seria um ato em verdade sincrético, globalmente. Em vez de um tipo de doutrina sobrepor-se à outra, penso na interlocução das divinações, nas correlações das mentalidades religiosas e ainda nos interlúdios das palavras santificadas (por xamãs ou padres ou pastores).

Por algum tempo, a Funai serviu como mediadora, e acredito que ainda hoje acontece essa mediação, mas em menor monta. Só que o trabalho é difícil e concerne a opções pessoais e coletivas – sempre dando margem a ambiguidades latentes e manifestas. Outra coisa que se insere como interveniente é a ideia de sagração, válida muito mais a pessoas e coisas de fora da etnicidade Wai-Wai. Vivificações e enlevos dessa linhagem pré-colombiana pouco aparecem e se fazem sentir.

Porquanto, se trocas realmente estão sendo estabelecidas, como narram lideranças cristãs, é preciso entender e dar vazão a saberes e fazeres indígenas que compõem seus comportamentos e representações. Ou seja, para iniciados em religiosidades integradas ao cristianismo estarem aptos a dialogar com sabedoria junto aos Wai-Wai, a condição é, primeiro, se deixarem ser ensinados dentro da dimensão nativa do profundo e compreenderem o brilhantismo intrigante dentro da viscosidade das palavras dos étnicos.  

Renan Albuquerque é professor e pesquisador do colegiado de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e desenvolve estudos relacionados a conflitos e impactos socioambientais entre índios Waimiri-Atroari, Sateré-Mawé, Hixkaryana, junto a atingidos pela barragem de Balbina e com assentados da reforma agrária.  

FONTE: AMAZÔNIA REAL – Os Wai-Wai e suas conexões com o evangelismo: Parte 2 – As trocas – Amazônia Real (amazoniareal.com.br)