Se executados pelo governo de PPK, os Decretos Legislativos 1292 e 1333, considerados anticonstitucionais e absolutamente regressivos em relação a todos os avanços no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, abrirão as portas para acelerar o processo de neolatifundização da Amazônia peruana. As duas normas fazem eco às tendências globais de concentração e reconcentração de terras e de territórios indígenas que vêm ocorrendo em todo planeta, seguindo a lógica do extrativismo desenfreado das corporações mineradores, petrolíferas e madeireiras.

APIP, UM FRANKESTEIN BUROCRÁTICO

Para as organizações indígenas andinas e amazônicas que integram a articulação nacional Pacto de Unidad, bem como para as entidades ambientalistas e de direitos humanos, o D.L. 1333 é anticonstitucional porque apaga, em uma única canetada, todo o ordenamento jurídico e institucionalidade referentes à regularização física e legal de terras no Peru.

O D.L. 1333 cria o Projeto Especial de Acesso a Propriedades para Projetos de Investimento Priorizados (Apip), um verdadeiro frankestein burocrático, cujas funções e competências se sobrepõem às do Ministério de Agricultura e Irrigação (Miagri), do Ministério do Ambiente (Minam), do Organismo de Formalização da Propriedade Informal (Cofopri, equivalente no Peru ao INCRA brasileiro) e dos governos estaduais, bloqueando e erguendo obstáculos às funções de programas de reconhecimento e titulação comunal, como a terceira etapa do projeto de cadastro, titulação e registro de terras rurais do Peru (PTRT-3), que conta com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Classificado pela Confederação Nacional Agrária do Peru (CNA) como um organismo irrestrito, a Apip – adscrita à Agência de Promoção do Investimento Privado no Peru (Proinversión) e ao Ministério de Economia e Finanças (MEF) – inclui entre suas funções a regularização física e legal das terras e territórios compreendidos no âmbito geográfico de projetos de investimento priorizados pela Proinversión, independente destas terras estarem tituladas ou não.

O todo-poderoso Apip, da mesma forma, poderá identificar terras, reconhecer direitos fundiários, modificar planos e limites, medidas perimetrais e retificar títulos de propriedade. E isso não é tudo. Esse organismo sem equivalente na história do Estado peruano poderá também convocar assembleias comunais e chamar às Forças Armadas para conduzir o deslocamento de povos andino-amazônicos quando os interesses dos megaprojetos assim o determinem, violando e atropelando impunemente a autonomia das organizações indígenas andino-amazônicas.

A outra norma em questão, o D.L. 1292, declara de “necessidade pública e interesse nacional” a operação do Oleoduto Norte-Peruano. Esta norma faculta ao Estado peruano a aquisição dos terrenos necessários para a operação do oleoduto. Em outras palavras, trata da expropriação de terrenos pertencentes a Comunidades Campesinas e Nativas¹ adjacentes ou próximas ao perímetro do Oleoduto.

Como sempre ocorreu na história do país, a “necessidade pública” e o “interesse nacional” não são os interesses e as necessidades do povo, das populações campesinas e indígenas, senão os das grandes empresas e de um Estado quase sempre a serviço delas.

COMO LEGUÍA, ALAN GARCÍA E HUMALA…

Tais Decretos Legislativos, que os povos indígenas andino-amazônicos consideram um atropelo, um abuso e um perigo para a integridade de seus territórios, parecem ter sido escritos pelas mesmas mãos que redigiram outros ataques diretos aos direitos originários, como a Lei 1220 de 1909 sobre terras em região de montanha de Augusto B. Leguía², as leis ditadas por Alan García³ para implementação do Tratado de Livre Comércio (TLC) entre Peru e Estados Unidos, e o pacote de Ollanta Humala4 para “destravar os investimentos”. Trata-se do mesmo argumento usado por PPK.

Vale lembrar que dentro do “paquetazo” humalista estava precisamente a Lei 30230 de 2014, que serve de sustento jurídico para o D.L. 1333. A inconstitucionalidade da Lei 30230 está sendo revisada pelo Tribunal Constitucional sob o argumento de contrariar o estado de direito, a ordem jurídico-constitucional e as normas do direito jurídico internacional.

O “PAQUETAZO” PPK, UMA AMEAÇA LETAL

O novo “paquetazo” de PPK, e em particular os D.L. 1292 e 1333, representa uma ameaça letal para os povos indígenas andino-amazônicos, para seus territórios e sua própria sobrevivência.

De acordo com um estudo do Instituto del Bien Común (IBC)5 49,6% dos territórios das Comunidades Campesinas e Nativas enfrentam superposição de projetos de mineração. Das 10.524 Comunidades Campesinas e Nativas mapeadas, somente 4.023 estão tituladas. Para o Apip e as empresas multinacionais por trás do projeto, isso representa mais de 20 milhões de hectares de terra e territórios indígenas andino-amazônicos sem garantias ou segurança jurídica, passíveis de serem tomados com a anuência, complacência e aprovação do governo de PPK.

Frente a mais essa ameaça, os povos indígenas andino-amazônicos do Peru vêm exigindo que o Congresso da República do Peru revogue os D.L. 1292 e 1333, aos quais resistirão de forma pacífica e democrática e, se necessário, ao custo de suas próprias vidas.

Notas ¹ As Comunidades Campesinas e Nativas são organizações tradicionais e estáveis de interesse público reconhecidas constitucionalmente no artigo 89 da Constituição Política do Peru e regidas por legislação específica.

² Presidente da República do Peru entre 1908 e 1912.

³ Presidente do Peru por dois mandatos: entre 1985 e 1990 e, posteriormente, entre 2006 e 2011, ambas pelo Partido Aprista Peruano. O TLC entre Peru e Estados Unidos entrou em vigor durante seu segundo mandato.

4 Presidente do Peru entre 2011 e 2016, eleito através de uma coalizão ampla de centro-esquerda encabeçada pelo Partido Nacionalista Peruano.

5 Associação civil peruana que atua na temática de autogestão em comunidades rurais.

Por: Róger Rumrill, ensaista, escritor, poeta e jornalista especializado na questão indígena da Amazônia peruana
Fonte: De Olho nos Ruralistas

 

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