Na contabilização das emissões sob a UNFCCC, gases de efeito estufa não-CO2 são convertidos em CO2-equivalentes (CO2e) multiplicando o número de toneladas emitido de cada gás por um potencial de aquecimento global (GWP). Cada gás tem um forçamento radiativo característico, que representa a sua eficácia em bloquear a passagem de radiação infravermelha pela atmosfera de forma quase instantânea: forçamento radiativo é o saldo do fluxo de energia na tropopausa (a divisão entre a troposfera e a estratosfera, em aproximadamente 10 km de altitude) causado por uma determinada quantidade de gás após uma demora de “alguns meses” para equilibrar a temperatura estratosférica ([1], p. 170).

Incluindo efeitos indiretos, o metano tem um forçamento radiativo muito maior que o CO2 em uma base de massa: 595 vezes mais por cada tonelada de gás presente na atmosfera de hoje ([2], Material complementar, Apêndice 2, p. 2SM-4; [3], Material complementar, Anexo 8, p. 8SM-13). Cada gás tem também uma característica vida atmosférica média (o número de anos que uma tonelada do gás permanece na atmosfera, causando global aquecimento). Uma tonelada de metano tem um impacto elevado, enquanto ele permanece na atmosfera, mas tem uma vida média de apenas 12,4 anos ([3], p. 714).

Uma tonelada de CO2 tem um efeito muito mais fraco em cada ano em que esteja presente, mas o tempo médio de vida é longo: aproximadamente 40% de uma emissão permanecem na atmosfera depois de um século ([3], Material complementar, Apêndice 8, p. 8SM-16). O GWP representa uma integração ao longo de um horizonte de tempo, tais como 20 anos ou 100 anos, do forçamento radiativo de uma tonelada do gás emitida no início do período, em comparação com uma tonelada de CO2 emitida simultaneamente. O uso de GWPs pelo IPCC é explicado por Albritton et al. ([4], p. 215-219). Na medida em que o horizonte de tempo para o GWP alonga, a importância do metano declina em relação ao CO2.

O valor do GWP mais frequentemente usado para converter o impacto das emissões de metano para CO2-equivalentes é 21, significando que uma tonelada de gás de CH4 tem o mesmo impacto sobre o aquecimento global que 21 toneladas de CO2 em um horizonte de tempo de 100 anos sem nenhum desconto por tempo. Este é o valor de GWP do Segundo Relatório de Avaliação do IPCC, de 1995 [5] que foi adotado pelo Protocolo de Quioto para uso até o final de 2012 e foi usado em toda a contabilidade de gases nos inventários nacionais até esse mesmo ano. No entanto, as estimativas para o GWP do metano desde então foram sucessivamente revistas para cima: para 23 no Terceiro Relatório de Avaliação do IPCC em 2001 [6] e para 25 no Quarto Relatório de Avaliação em 2007 [7].

O quinto relatório de avaliação, de 2013, revisa isto para 28 se as mesmas suposições fossem mantidas (ou seja, ignorando todas as retroalimentações), mas apresenta um valor de 34 para metano que inclui efeitos indiretos não considerados nos relatórios anteriores do IPCC [3]. Se um horizonte temporal de 20 anos é usado em vez de 100 anos, esse valor aumenta para 86 ([3], p. 714). Uma redução rápida e sustentada em emissões de metano é parte necessária de qualquer estratégia para manter a temperatura média abaixo do limite de 2° C para o aumento acima da média pré-industrial, conforme acordado em Copenhague em 2009 sob decisão 2/CP.15 [8].

Uma vez que o metano é a principal emissão da energia hidrelétrica e este gás é quase ausente das emissões de combustíveis fósseis, estas revisões fazem uma diferença substancial no impacto atribuído à energia hidrelétrica em comparação aos combustíveis fósseis. Se um valor GWP de 34 for usado em vez do valor de 25 que será usado até 2017, o impacto é 36% maior. Se um valor de 86 é usado o impacto de metano a partir de barragens é 244% maior.

As decisões sobre que valores de GWP serão usados na contabilidade no âmbito da UNFCCC são feitas por representantes de governos nacionais nas conferências anuais das partes (COPs). Na 16a Conferência das Partes da UNFCCC em Cancún (COP-16), em 2010, o Brasil teve um papel proeminente na argumentação de manter o uso de um valor mais baixo de GWP para metano ao invés do valor indicado pelo relatório mais recente do IPCC na época (ver: [9]). A matriz energética do Brasil se baseia em hidrelétricas para quase 80% da sua eletricidade, e o governo brasileiro tem grandes planos para construção de barragens na região amazônica (e.g., [10]).

O uso de GWPs mais antigos apesar da existência de estimativas mais recentes do IPCC estende-se à toda a contabilidade sob a UNFCCC, não apenas para barragens. Em 2011, na COP-17, foi tomada a decisão de usar o GWP do Quarto Relatório de Avaliação do IPCC, de 2007, a partir de 2015, e os atuais valores do Quarto Relatório (de 2013), portanto, ainda ficam sem efeito na UNFCCC [11].

 

NOTAS

[1] Shine, K.P. & 44 outros. 1995. Radiative Forcing, In: Houghton, J.T., Meira Filho, L.G., Bruce, J., Lee, H., Callander, B.A., Haites, E., Harris, N., Maskell, K. (Eds.), Climate Change 1994: Radiative Forcing of Climate Change and an Evaluation of the IPCC IS92 Emission Scenarios. Cambridge University Press, Cambridge, Reino Unido, p. 163-203. [Disponível em: http://www.ipcc.ch/pdf/special-reports/cc1994/climate_change_1994.pdf].

[2] Hartmann, D.L. & 13 outros. 2013. Observations: Atmosphere and Surface, In: Stocker, T.F., Qin, D., Plattner, G.-K., Tignor, M., Allen, S.K., Boschung, J., Nauels, A., Xia, Y., Bex, V., Midgley, P.M. (Eds.), Climate Change 2013: The Physical Science Basis. Working Group I Contribution to the IPCC Fifth Assessment Report. Cambridge University Press, Cambridge, Reino Unido, p. 159-254. [Disponível em: http://www.ipcc.ch/report/ar5/wg1/].

[3] Myhre, G. & 37 outros. 2013. Anthropogenic and natural radiative forcing, In: Stocker, T.F., Qin, D., Plattner, G.-K., Tignor, M., Allen, S.K., Boschung, J., Nauels, A., Xia, Y., Bex, V., Midgley, P.M. (Eds,), Climate Change 2013: The Physical Science Basis. Working Group I Contribution to the IPCC Fifth Assessment Report. Cambridge University Press, Cambridge, Reino Unido, p. 661-740. [Disponível em: http://www.ipcc.ch/report/ar5/wg1/].

[4] Albritton, D.L., Derwent, R.G., Isaksen, I.S.A., Lal, M., Wuebbles, D.J., Bruhl, C., Daniel, J.S., Fisher, D., Granier, C., Liu, S.C., Patten, K., Ramaswamy, V., Wigley, T.M.L. 1995. Trace gas radiative forcing indices, In: Houghton, J.T., Meira Filho, L.G., Bruce, J., Lee, H., Callander, B.A., Haites, E., Harris, N., Maskell, K. (Eds.), Climate Change 1994: Radiative Forcing of Climate Change and an Evaluation of the IPCC IS92 Emission Scenarios. Cambridge University Press, Cambridge, Reino Unido, p. 205-231. [Disponível em: http://www.ipcc.ch/pdf/special-reports/cc1994/climate_change_1994.pdf].

[5] Schimel, D. & 75 outros. 1996. Radiative forcing of climate change. In: Houghton, J.T., Meira Filho, L.G., Callander, B.A., Harris, N., Kattenberg, A., Maskell, K. (Eds.), Climate Change 1995: The Science of Climate Change. Cambridge University Press, Cambridge, Reino Unido, p. 65-131. [Disponível em: http://www.ipcc.ch/ipccreports/sar/wg_I/ipcc_sar_wg_I_full_report.pdf].

[6] Ramaswamy, V. & 40 outros. 2001. Radiative forcing of climate change, In: Houghton, J.T., Ding, Y., Griggs, D.G., Noguer, M., Van der Linden, R.J., Xiausu, D. (Eds.), Climate Change 2001: The Scientific Basis. Cambridge University Press, Cambridge, Reino Unido, p. 349-416. [Disponível em: http://www.grida.no/climate/ipcc_tar/wg1/index.htm].

[7] Forster, P. & 50 outros. 2007. Changes in atmospheric constituents and radiative forcing, In: Solomon, S., Qin, D., Manning, M., Chen, Z., Marquis, M., Averyt, K.B., Tignor, M., Miller, H.L. (Eds.), Climate Change 2007: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press, Cambridge, Reino Unido, p. 129-234. [Disponível em: http://www.ipcc.ch/publications_and_data/ar4/wg1/en/contents.html].

[8] Shindell D.T. & 24 outros. 2012. Simultaneously mitigating near-term climate change and improving human health and food security. Science 335: 183-189. doi: 10.1126/science.1210026.

[9] CAN (Climate Action Network). 2010. Keys to the 2nd KP Commitment Period. [Disponível em: http://www.climatenetwork.org/blog/keys-2nd-kp-commitment-period].

[10] Brasil, MME (Ministério de Minas e Energia). 2013. Plano Decenal de Expansão de Energia 2022. MME, Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Brasília, DF, Brazil. 409 p. [Disponível em: http://www.epe.gov.br/PDEE/24102013_2.pdf].

[11] Isto é uma tradução parcial atualizada de Fearnside, P.M. 2015. Emissions from tropical hydropower and the IPCC. Environmental Science & Policy50: 225-239. http://dx.doi.org/10.1016/j.envsci.2015.03.002. As pesquisas do autor são financiadas por: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processos nº305880/2007-1, nº304020/2010-9, nº573810/2008-7, nº575853/2008-5), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (processo nº 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03).

 

Leia os artigos da série: Hidrelétricas e o IPCC 

Hidrelétricas e o IPCC: 2 – Barragens nos relatórios e diretrizes 

Hidrelétricas e o IPCC: 3 – Escolha enviesada de literatura 

Hidrelétricas e o IPCC: 4 – Barragens tropicais emitem mais 

Hidrelétricas e o IPCC: 5 – Emissões de gases nos inventários nacionais 

Hidrelétricas e o IPCC: 6 – As diretrizes de 2006

Hidrelétricas e o IPCC: 7 – Reservatórios como “áreas úmidas” 

Hidrelétricas e o IPCC: 8 – Turbinas e árvores mortas ignoradas

Hidrelétricas e o IPCC: 9 – Contagem incompleta a jusante 

Hidrelétricas e o IPCC: 10 – Concentrações subestimadas de metano

  

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link

FONTE: Amazônia Real – http://amazoniareal.com.br/hidreletricas-e-o-ipcc-11-potencial-de-aquecimento-global-desatualizado/