”Sou o que sou. Não vou negar. Sou o que sou, não minto não. Sou um velho amigo, índio guerreiro, de coração (…). É um ajudando o outro, e vamos ver juntos o que vai dar”. Cantando ao som do violão, Roque Tupinambá era um dos tantos violeiros que embalavam o encontro realizado na aldeia de Aningalzinho, localizada no rio Arapiuns, no entorno de Santarém (no oeste do Pará), na virada de 2016 para 2017 [1]. Foram três dias de intensas discussões políticas, atividades culturais, espirituais e festas. As celebrações giravam ao redor dos vinte anos de reorganização do movimento indígena na região do Baixo Tapajós e Arapiuns. Índios que eram tidos como extintos pelo pensamento político e historiográfico dominante e que desde meados dos anos 90 retomaram a sua identidade indígena em um processo de resistência à violenta política colonial de embranquecimento, invisibilização e proletarização.

Tal como diversas pessoas afirmaram ao longo do encontro, a pulsão da (re)afirmação identitária na região tem forte relação com as atividades organizadas pelo Grupo Consciência Indígena (GCI), fundado em 1997, e pelo Conselho Indígena dos rios Tapajós Arapiuns (CITA), fundado no ano 2000. O GCI foi a primeira organização de pessoas que se autoidentificaram como indígenas na região de Santarém, e o CITA foi uma entidade gestada no seio do movimento indígena para a representação e a defesa de seus direitos. O papel de setores progressistas da Igreja Católica é também fundamental, e aparentemente não conflitivo, como evidencia a presença e liderança de Frei Florêncio Vaz, indígena e professor de antropologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).

Fenômeno histórico e político extremamente complexo, as questões colocadas pelos povos indígenas do Baixo Tapajós têm o seu centro na tensão entre a imposição e a resistência de modos de vida: por um lado, o processo de colonização e embranquecimento; por outro, a pujança de pessoas que nunca deixaram de ser índias, e passam a reivindicar a sua identidade com maior organização e reverberação em um movimento político popular de enfrentamento à perpetração da violência.

O encontro

Recebidos com beiju preparado pelos parentes de Aningalzino, foram chegando os participantes do encontro. De barriga cheia todos se concentraram no espaço construído para receber as atividades programadas e rememoram, em roda, a partir da narrativa de antigos e jovens militantes do movimento indígenas, pelejas que construíram ao longo dos últimos 20 anos. O xibé (alimento indígena a base de água e farinha de mandioca) acompanhava a roda, passando de mão em mão, na medida em que as histórias eram contadas; e subiam de tom e ânimo com a defumação do cacique Tomaz da aldeia que nos recebia.

Cinco grupos de trabalhos (GTs) foram organizados, ao redor de temas tidos como fundamentais neste embate político por um modo de vida: território, identidade e formação de lideranças; educação indígena; saúde e espiritualidade; feminismo indígena; e juventude. No primeiro GT duas pautas fundamentais pareciam guiar o debate a partir do qual as outras emergiam: a delimitação de uma Terra Indígena única no atual território onde hoje se encontra a RESEX Tapajós-Arapiuns e a recusa, por parte dos indígenas, da recente proposta feita pelo Governo via Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) de inserir a região no mercado internacional de crédito de carbono (em uma negociação com a Finlândia. Além disso, foi ressaltada a importância da formação de caciques e lideranças como professores nas escolas de educação indígena, bem como à proposta Tupinambá de iniciar a autodemarcação de suas terras.

No segundo GT, a pauta norteadora foi a contínua defesa de uma educação indígena diferenciada que valorize os saberes tradicionais. A luta empreendida é de garantia e ampliação das conquistas dos últimos anos, referenciada na criação do Território Etnico-educacional Tapajós-Arapiuns. O enfrentamento ao redor dos direitos que garantem a permanência dos jovens nas escolas das aldeias, como transporte e merenda, é uma preocupação latente em uma conjuntura de cortes de direitos fundamentais, além do fortalecimento da transmissão do Notório Saber (que incorpora saberes ancestrais nas práticas escolares) e a aprendizagem da língua Nheengatu (veja o documentário Nheengatu tapajowara). Essas discussões ligam-se às empreendidas no GT de saúde e espiritualidade, que reafirmou a demanda de uma prática de saúde condizente com a realidade das comunidades indígenas e a retomada de saberes ancestrais: medicinas da floresta, pajelança e curandeirismo.

No GT de feminismo indígena foi ressaltada a importância da maior participação das mulheres nos espaços políticos, tal como assumirem cada vez mais funções de liderança. Para tanto se propôs a criação de um espaço de acolhimento das crianças nos encontros do movimento, além da formatação de um encontro de mulheres indígenas a ser organizado pelo CITA. Para a juventude foi concebida a tarefa de se envolverem cada vez mais em tarefas organizacionais, na tentativa de fomentar a participação ativa destes nos debates políticos do movimento.

De maneira contundente esse momento do encontro traçou um programa de combatividade a ser tocado pelos indígenas e pelo movimento nos próximos anos, tendo em vista um cenário que se já era ruim no Governo Dilma, tornou-se calamitoso diante do poder sem precedentes que os ruralistas obtiveram Governo Temer. Coerência na hora de compartilhar as experiências dos grupos pequenos com o coletivo mais geral selaram a unidade para os tempos difíceis que se aproximam.

Cultura e resistência

Um dos momentos mais marcantes do encontro foi a projeção do filme Terra dos Encantados (veja aqui a versão reduzida do filme), dirigido pelo cineasta indígena Clodoaldo Corrêa. O filme apresenta a resistência e a luta indígena do Baixo Tapajós: as diferentes formas de ameaça às quais estão sujeitos pela colonização, pelo processo de embranquecimento e diante as novas e antigas empreitadas econômicas na região (madeireiras, usinas hidroelétricas e o agronegócio que vêm convertendo toda a riqueza da floresta em commodities, acabando com modos de vida dependentes da diversidade local). Ainda assim, não deixa de apresentar momentos de embate político preciso, como ocupações da Justiça Federal, debates com o ICMBio e protestos na cidade de Santarém.

Três sequências do filme, equivalentes às falas de três personagens que costuram a narrativa, chamam a atenção. A primeira, e que de um certo modo estrutura a narrativa fílmica, é a reflexão da Irmã Emanuela Kumaruara acerca da violência colonial e do processo de embranquecimento, que encontra a sua mais cruel e recente encarnação na negação da identidade indígena por parte da mídia, do poder público e do senso comum: a violência perpetra um extermínio por dentro, uma forma de matar os detentores ancestrais do território para passá-los às mãos dos invasores. O segundo momento forte do filme é a afirmação da antropóloga Edviges Ioris acerca das formas de permanência das identidades ao longo do tempo, e que é tornada evidente nesta reorganização do movimento indígena, avessa à lógica linear moderna da passagem do tempo como capaz de eliminar relações culturais imemoráveis. Por fim, o depoimento de Paulo Borari, talvez pela sua presença fundamental conduzindo os rituais que marcaram o encontro, foi também outro momento de grande comoção dos que ali assistiam ao filme, ao falar das formas de defesa do mundo espiritual (e o quão mais real este é do que o humano).

Estudante de antropologia e pajé, Paulinho, como é carinhosamente chamado, constantemente convocava em seus rituais nomes de pajés que marcaram as fases mais recentes da luta indígena no Baixo Tapajós. Pajé Laurelino, cujo falecimento em maio de 1998 impulsionou o auto-reconhecimento do vilarejo de Takuara enquanto aldeia indígena no Tapajós, logo no final daquele mesmo ano, devido as suas declarações de que ele mesmo era índio e disso se orgulhava; e Pajé Merandolino, indígena Tapajó, do rio Arapiuns, que se transformava em Cobra Grande – razão pela qual o território no qual vivera é registrado sob o nome de Terra Indígena (TI) Cobra Grande na FUNAI. Um importante mito acerca de Merandolino diz respeito ao que ocorreu com seu corpo. Quando o pajé pressentira que se aproximava o momento de sua morte física, solicitou que não fosse enterrado – seu corpo pertencendo ao rio, deveria lá permanecer. Não obstante sua vontade, ao falecer seu corpo foi enterrado. Diz o mito que após uma forte chuva, foram verificar seu túmulo, e o corpo já não estava lá. Encontraram uma rasgadura na terra, como um fundo caminho na direção do rio: Pajé Merandolino havia se transformado em uma cobra grande, e rumou para o fundo do rio, onde até hoje habita, na ponta do Tororó (rio Arapiuns), na TI Cobra Grande.

Foi nesta mistura cosmopolítica de poder e pajelança que o ritual de Paulo Borari começou, deixando a todos imersos em um transe sensorial, dada a proximidade uns com os outros, enquanto girávamos em roda, recebendo a defumação, banho de cheiro e a limpeza de Paulo até a virada do ano.

Formas de vida em resistência

Muito se debateu, ao longo do encontro, sobre os motivos dos mais jovens não estarem participando dos debates. “Haveria uma questão geracional no que diz respeito à identidade indígena?” perguntavam-se alguns, como se os mais novos fossem avessos ao que ali acontecia. Na noite de ano novo, entretanto, ficou claro que outros modos de fazer política, e reivindicar a identidade indígena se faziam presentes: ao entrarmos no barracão onde uma banda de garotos que animava a festa tocava carimbó aos gritos de “nós somos os macacos da floresta’’, e ‘’ Tupaiu chegou outra vez’’, os jovens dançavam freneticamente, cantando em uníssono – deixando os adultos ao mesmo tempo espantados e incomensuravelmente contentes com tudo o que viam.

De um modo geral, são outras formas de vida, de reafirmação de posse e pertencimento a um determinado território, que emergem neste embate político. É do lado dos índios e pelos rios que reverbera um grito de basta ao contínuo processo de avanço do capital, que traz consigo uma dupla e articulada expropriação; do território em si, sistematicamente transformado em fator de produção, e sua face mais perversa, que aniquila uma determinada maneira de viver e de organização sócio-cultural. O grito é de negação à desintegração étnica dos povos da floresta e de sua conversão em mão-de-obra para os modernos empreendimentos que avançam sobre a região; das madeireiras à mineração, das hidrelétricas ao agronegócio. Ao dizer não à conformação subjetiva que insere o branco enquanto modelo de virtude e o índio enquanto negatividade rebrota o espírito guerreiro de seus antepassados. A resistência é feita na defesa do território, dos valores ancestrais, do sangue dos antepassados, da educação e saúde diferenciada, de sua própria espiritualidade.  Dizem-nos a todo momento “o sangue e o sonho dos nossos antepassados permanecem em nós”.

 Nota 1:

Aningalzinho é uma das 67 aldeias indígenas existentes na região conhecida como Baixo rio Tapajós, no entorno da cidade de Santarém. A maioria destas aldeias ficam nos rios Tapajós e Arapiuns. Calcula-se que ali vivem aproximadamente 8 mil indígenas pertencentes a mais de 10 povos.

*Fabio Zuker é antropólogo e Fernando Bigi, geógrafo.

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