Ataques de abelhas ladras provocaram surgimento de casta de soldados em colmeias de abelhas sem ferrão.

Notícias da corte de abelhas rainhas reportam a vida de duas castas de fêmeas: a da própria rainha e a das operárias, que se revezam nos variados afazeres para o funcionamento pleno da colônia. Bem, também contam sobre os zangões, que existem somente para reprodução.

Essas notícias continuam verdadeiras, mas um fato novo mexe na rotina de vida desse inseto. Especialistas chamam a atenção para uma nova casta, a das abelhas soldados. Sim, as fêmeas evoluíram e as colmeias, pelo menos das espécies sem ferrão, possuem um novo membro social com função específica de proteger o ninho. Essa função de “soldado” é muito conhecida e bem relatada em muitas espécies de formigas e de cupins, mas algo até pouco tempo inédito para abelhas.

Não se trata apenas de divisão de trabalho reservada a operárias experientes, mas de um novo exemplar do inseto que já sai do ovo com todas as características de guerreira. Elas montam guarda na entrada da colônia – sobrevoando, protegendo dos inimigos – e prontas para o combate. Entre suas armas estão seu tamanho, força da mandíbula e a coloração, bem diferente das demais operárias.

Apesar da convivência milenar do ser humano com as abelhas, se beneficiando de seu trabalho na natureza, a descoberta dessa figura guardiã ocorreu há menos de uma década. E agora, outra curiosidade importante vem à tona com a confirmação científica de que esse soldado fêmea é uma evolução dessas abelhas, naturalmente desprotegidas pela falta do ferrão frente aos ataques que sofrem, também há milhares de anos, de outras abelhas já conhecidas, as ladras.

Eduardo Almeida, professor do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP e biólogo especializado em abelhas, conta que essas ladras também são maiores que as operárias e, ao contrário delas, são especialistas em invadir colmeias já formadas para roubar desde mel e pólen até cera e alimentos da ninhada.

A descoberta da casta das “guardas” foi resultado de estudos do brasileiro Cristiano Menezes, atualmente pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, em Belém (PA), e seu colega suíço Christoph Grüter, do Instituto de Zoologia da Universidade de Mainz, Alemanha. Em 2009, ambos realizavam pós-doutoramento no Brasil, sob orientação da equipe de entomologia da FFCLRP.

A identificação da abelha soldado na espécie sem ferrão jataí intrigou os biólogos, que investiram na tese evolucionista. A explicação que encontraram é aparentemente simples, apesar dos milhares de anos que separam os fatos. Essas espécies evoluíram para sobreviver a ataques de abelhas ladras. Isso mesmo, na natureza é comum ação de ladras sobre ninhos de abelhas sem ferrão, sem proteção natural das picadas.

A adaptação para sobrevivência teria ocorrido em termos de seleção natural. Exemplificando, o professor da USP pede para imaginar um cenário em que há colônias de abelhas com guardas que auxiliam na proteção do ninho e outras colônias em que não há guardas. “Quando as colônias dos dois tipos forem atacadas, aquelas que têm guardas terão chance maior de sobrevivência e, deste modo, mais chances de deixar descendentes. As ladras favorecem, dessa forma, o surgimento de colônias em que guardas protegem suas colmeias.”

Evolução pela força das abelhas ladras

A equipe de pesquisadores, da Alemanha e Brasil – Embrapa Amazônia Oriental e FFCLRP, que se reuniu para entender a origem da nova casta, acredita que a evolução desse tipo especial de abelha tenha ocorrido em vários momentos, totalmente independentes uns dos outros, mas com um aspecto comum, as invasões das ladras. “De acordo com as análises que fizemos, foram pelo menos cinco surgimentos evolutivos separados que em nada lembravam a separação existente entre operárias comuns e operárias guardas.”

Estudaram 28 espécies de abelhas sem ferrão e, em 10 delas, encontraram a diferenciação entre as operárias, que chamam de “comuns”, e as operárias maiores, as “guardas”. Analisando algumas hipóteses possíveis para explicar o fenômeno, Almeida diz que essas mudanças, em que observaram as “guardas de maior tamanho que as operárias”, poderiam ter ocorrido de modo completamente independente nas espécies observadas. Poderiam ainda ter ocorrido em apenas um momento para todas as espécies, supondo que elas sejam descendentes de um ancestral comum (que teria transmitido essa característica).

O professor informa que várias outras hipóteses podem ser usadas para explicar a ocorrência de abelhas guardas entre uma e dez origens diferentes, mas que preferiram usar uma árvore filogenética, que é como uma árvore genealógica. Ela mostra os graus de parentesco entre as espécies de abelhas sem ferrão.

Com essa ferramenta, informações extras e testes estatísticos, foi constatado que parte das espécies que possuem guardas é proximamente relacionada. Contudo, o parentesco não valia para todas as dez espécies estudadas. “Identificamos cinco conjuntos de espécies com guardas, mas eles não tinham um surgimento único que distinguisse as guardas das operárias.” Assim, o professor prefere dizer que conseguiram identificar cinco origens independentes de abelhas guardas e que, considerando todas as outras espécies sem ferrão que não estudaram, há pelos menos cinco grupos nos quais as guardas ocorreram.

Outro fato que pode ajudar a explicar a tese da ação das abelhas ladras sobre a evolução da casta de guardas é que os recursos da árvore filogenética conseguem estimar quando a evolução de uma espécie ocorreu. As abelhas ladras, por exemplo, surgiram há pouco mais de 25 milhões de anos. A divisão de operárias e guardas teria ocorrido também há mais ou menos 25 milhões de anos. Então, “as ladras seriam, em nossa explicação, a principal força guiando a diferenciação entre guardas maiores e operárias comuns”, arremata Almeida.

Os resultados desse estudo acabam de ser publicados pela Nature Communications. Vários grupos de pesquisa estão envolvidos nesta pesquisa que demandou conhecimentos e tipos de investigação diferentes. Christoph Grüter e Francisca Segers são pesquisadores da Universidade de Mainz, Alemanha; Cristiano Menezes é especialista da Embrapa Amazônia Oriental, Belém (PA); Ayrton Vollet-Neto, Tiago Falcón e Lucas von Zuben acabaram de concluir seus doutorados na FFCLRP; Marcia Bitondi, Fabio Nascimento e Eduardo Almeida, orientadores do Programa de Pós-Graduação em Entomologia, são professores da FFCLRP.

Portas abertas para novas descobertas

A espécie mais conhecida de abelha no Brasil e no mundo é a Apis mellifera, chamada também de abelha africanizada, pois é um cruzamento de abelhas europeias com variedades da África. Mas existem milhares de outras espécies de abelhas. Documentadas pela ciência, há cerca de 20 mil espécies catalogadas. Somente entre as sem ferrão, o homem conhece cerca de 500 delas, sendo 400 brasileiras.

Lembra o pesquisador da USP que, para a maioria delas quase “não há informação alguma sobre os comportamentos, importância para a polinização e outros aspectos de suas vidas”. Almeida se diz espantado ao reconhecer que os seres humanos tenham convivido com as abelhas há milênios e deixado passar despercebido algo tão especial quanto a existência de abelhas guardas distintas das operárias. “Usando essa descoberta como exemplo, podemos apenas imaginar o quanto há para se compreender sobre polinização eficiente de cultivos agrícolas ou sobre a evolução dos seres vivos.”

‘Abelhudos da USP’

O professor Eduardo Almeida faz parte da nova geração de “Abelhudos da USP” em Ribeirão Preto. Além dele, seus colegas Fabio Nascimento e Márcia Bitondi, também pesquisadores do mesmo Departamento de Biologia da FFCLRP.

Esses professores seguem longa tradição do campus de Ribeirão Preto em pesquisas com abelhas, iniciadas há mais de cinco décadas, quando o professor Warwick Kerr introduziu abelhas africanas no Brasil. Destacam-se ainda, nesses grupos de estudos com abelhas, outros nomes importantes da USP como os professores João Maria Camargo, Ronaldo Zucchi, Zilá Paulino Simões, Vera Lucia Imperatriz Fonseca, Lionel Segui Gonçalves, Klaus Hartfelder, Ademilson Espencer Soares e David de Jong.

Rita Stella, de Ribeirão Preto – FONTE: Jornal da USPLuta pela sobrevivência faz surgir soldados na colmeia – Jornal da USP