O desaparecimento de uma mulher desde o dia 29 de dezembro no sítio Canta-Galo, Distrito de Auxiliadora, na zona rural de Humaitá, a 591 quilômetros de Manaus, reacendeu uma tensão da população de não índios contra índios, no sul do Amazonas. A família de Aldelena Carril dos Santos, de 41 anos, mãe de 14 filhos, dos quais dez com o comerciante Luiz Alecrim, diz que cinco índios da etnia Pirahã foram ao flutuante (embarcação de madeira) comercial ancorado na margem do rio Marmelos, afluente do rio Madeira, no dia do sumiço dela para trocar castanhas por gêneros alimentícios e tabaco. Luiz Alecrim é um conhecido regatão (nome dado a comerciantes que vendem produtos pelos rios da Amazônia) do rio Marmelos.
O delegado da Polícia Civil de Humaitá, Teotônio Rego Pereira, confirmou à reportagem que cinco indígenas Pirahã são suspeitos do desaparecimento de Aldelena Carril dos Santos, que é índia da etnia Munduruku, mas o policial não descarta a participação de não indígena no caso.
“Os Pirahã costumam trocar produtos com os moradores locais. Trocam por açúcar, gasolina. No caso do envolvimento deles no desaparecimento da mulher, algumas evidências indicam isso. Foram encontrados arcos e flechas no local. Familiares da vítima chegaram a vê-los nas proximidades da casa. Isso é um forte indício”, disse o delegado à Amazônia Real.
Teotônio Rego Pereira contou que abriu um inquérito para investigar o desaparecimento de Aldelena Carril dos Santos, também conhecida como dona Alda. Ele disse também que ouviu um grupo de índios Pirahã sobre as circunstâncias do sumiço dela. Durante as buscas, uma indígena, segundo o policial, apontou onde o corpo teria sido jogado no rio Marmelos, mas nada foi achado.
“Se houve um homicídio ou um roubo, pelo menos houve a participação deles [dos Pirahã]. Talvez pode ter mais alguém. Eles são imediatistas, vão em cima de uma necessidade momentânea. Não é um meio usual deles o planejamento. Eles são até ingênuos. Isso não combina com a atitude deles. O corpo não foi encontrado”, disse o delegado, explicando sua linha de investigação na suposta participação de não indígena no caso:
“Foi cortada uma mangueira de gasolina da rabeta [canoa com motor de popa] para dificultar ir atrás dela. Isso não casa muito com o comportamento dos índios Pirahã. O que sugere a participação de alguém não-Pirahã”, disse o delegado Teotônio Pereira, que ao ser perguntado se o outro suspeito era não indígena ele disse: “sim, de alguém não indígena.”
As primeiras buscas no rio Marmelos à Aldelena Carril dos Santos foram feitas por mergulhadores amigos do comerciante Luiz Alecrim, mas nada encontraram. No último dia 03, uma equipe de cerca de 30 pessoas, entre funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai), polícias Militar e Civil, além de homens do Exército, realizou uma operação de buscas no rio Marmelos e na Terra Indígena Pirahã, distante a 400 quilômetros de Humaitá, mas não encontraram vestígios da localização de dona Alda. A equipe retornou da área na última sexta-feira (06).
O sul do Estado do Amazonas é uma região de tensão e discriminação de não indígenas contra indígenas desde o final de 2013. Na ocasião, três homens não indígenas foram mortos, segundo a Polícia Federal, por cinco índios na Terra Indígena Tenharim Marmelos. Houve uma revolta em Humaitá, cujo acesso é pela rodovia Transamazônica (BR 230) por Porto Velho (RO), e onde vivem inúmeras etnias, entre elas Mura, Tenharim, Parintintin, Jiahui, Apurinã, Juma, Munduruku, Torá e Pirahã.
A Terra Indígena Pirahã fica na região do rio Maici, afluente do rio Marmelos, que deságua no Madeira. Segundo registros de pesquisadores, os Pirahã, autodenominados de Hiaitsiihi, foram contatados em 1920. Seminômades, quase um século depois do contato eles mantêm pouca relação com não-indígenas.
Os Pirahã não falam português e preservam ao máximo sua cultura e modo de vida de interferências da sociedade dominante. As relações com não indígenas são restritas aos comerciantes ribeirinhos com quem trocam (escambo) produtos extraídos da floresta, principalmente castanha, por gêneros alimentícios industrializados e equipamentos para roçados e produção de farinha.
A versão da família
Em entrevista a Amazônia Real, Diego Ferraz, filho do comerciante e regatão Luiz Alecrim e enteado de Aldelena Carril dos Santos, disse que a madrasta desapareceu no dia 29 de dezembro, por volta de 19h. A família mora no Sítio Canta-Galo, no rio Marmelos. O enteado disse que ela estava em casa com nove dos dez filhos que tem com o comerciante. Luiz Alecrim estava ausente. Ela tem mais quatro filhos de um outro casamento. Um grupo de aproximadamente cinco índios Pirahã, segundo Ferraz, teria chegado na localidade para adquirir mercadorias do comércio flutuante ancorado no rio Marmelos. Aldelena desceu uma escada com mais de 30 degraus para atender os índios no flutuante comercial.
“Minha irmã contou que meu pai não estava. Ele tem um barco que roda [regatão] pelo rio Marmelos. Os Pirahã chegaram querendo comprar mercadoria. A Alda [Aldelena] desceu para atender. Mas como ela estava demorando, minha irmã foi até a beira do rio e só viu a sandália dela [de Alda] e umas peças indígenas. Não sei que peças eram essa. Minha irmã viu que o depósito estava arrombado. Foi desde então que ela sumiu”, afirmou Ferraz.
Segundo Diego Ferraz, é comum os Pirahã comprarem produtos dos comércios do rio Marmelos, como farinha, bolacha e tabaco. Indagado sobre quais as razões para a família achar que foram os Pirahã os responsáveis pelo desaparecimento de Aldelena, ele disse que um indígena da etnia que fala português confirmou que um grupo de Pirahã teria atacado a dona de casa. “A gente soube que admitiram que foram eles que mataram a Alda”, disse.
A Amazônia Real apurou que além de comerciante, o marido de Aldelena Carril dos Santos, Luiz Alecrim, teria liderado um movimento contra um projeto de pesca esportiva dos índios no rio Marmelos, o que afetou também outras etnias, como os Tenharim. O projeto é da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Já Aldelena Carril dos Santos é beneficiária do programa federal Bolsa Família. Em 2016, ela recebeu R$ 7.792,00 do programa, conforme pesquisa no site Transparência. Segundo apurou a Amazônia Real, ela é filha de uma mulher da etnia Munduruku.
Procurada pela reportagem no início da semana, a Funai enviou uma nota informando que, por meio da Coordenação Regional Madeira, acionou as forças de segurança da Polícia Militar, Polícia Civil e Exército para investigar o desaparecimento de Aldelena Carril dos Santos. “Por se tratar de área distante e de difícil acesso e comunicação, ainda não foi possível obter maiores informações”, disse a fundação. A assessoria foi contatada novamente nesta sexta-feira (06) para enviar informações atualizadas, mas até o fechamento desta matéria não obteve respostas.
Clima de tensão no Marmelos
A suspeita de que índios Pirahã estão envolvidos no desaparecimento de Aldelena Carril dos Santos causou surpresa na população ribeirinha e em indígenas de outras etnias, indigenistas e até mesmo dos policiais. O delegado Teotônio Rego Pereira disse à Amazônia Real que precisará retornar à área para dar prosseguimento às investigações antes dele tomar medidas, como indiciamento dos indígenas, e concluir o inquérito.
“Os autores estão aparecendo. Quanto à materialidade do crime ainda não estamos satisfeitos. Por isso há necessidade de voltarmos. Havendo indiciamento, vai ser de alguns desses indígenas”, disse o delegado.
O delegado disse ainda que vai fazer um relatório para ser encaminhado aos seus superiores, pedindo que seja enviada uma guarnição de policiamento para a área onde Aldelena Carril dos Santos desapareceu, já que o clima está tenso no local. “O clima está tenso, a família precisa de respostas”, afirmou Teotônio Pereira.
O indigenista Pedro da Silva, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), é morador do Distrito de Auxiliadora, em Humaitá. Ele trabalha há oito anos com populações indígenas da região do rio Marmelos e rio Maici. Silva disse “não ter dúvidas” de que os Pirahã “foram usados para cometer algum delito por outras pessoas não-indígenas”.
“Os Pirahã são amigáveis e meigos. Não há histórico de violência, vingança ou homicídios por parte deles. Se aconteceu isso [morte de Aldelena] eu não saberia dizer o motivo. Eles não eram inimigos do seu Alecrim e da mulher dele. Na minha opinião, tem alguém por trás desse crime”, disse o indigenista do Cimi.
Pedro da Silva contou que soube do sumiço de Aldelena Carril dos Santos no dia 30 de dezembro e comunicou o caso à Funai. Imediatamente, segundo ele, o clima ficou tenso no Distrito de Auxiliadora e demais comunidades do rio Marmelos.
“Quando surgiu essa suspeita do envolvimento deles [no desaparecimento], houve logo revolta, preconceito, o clima ficou tenso. Uma situação difícil de lidar. O povo do Marmelos começou a dizer que ia invadir o Maici, matar Pirahã. Ficou um clima pesado”, afirmou.
Segundo Pedro da Silva, há três grupos de Pirahã. Um que mora em pequenas aldeias à margem do rio Maici, outro que vive nas proximidades da rodovia Transamazônica e um terceiro grupo menor que decidiu morar com índios Parintintin, também em Humaitá. No rio Maici, a população é de cerca de 300 índios Pirahã.
Conforme Pedro da Silva, nos últimos meses, os Pirahã passaram a sair com mais frequência de suas aldeias para trocar produtos por mercadorias porque eles pararam de receber os benefícios sociais que eram enviados pela Funai. “Há oito meses que a Funai não envia esses benefícios, que é dinheiro que chega em forma de materiais como terçado, machado, forno para torrar farinha, etc”, disse.
Os índios seminômades do Maici
O possível envolvimento de Pirahã no desaparecimento de Aldelena Carril dos Santos surpreendeu o indigenista Francisco Loebens, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Amazonas, já que estes indígenas são considerados seminômades e possuem pouca relação com os não-índios.
“Os Pirahã são tão fechados que eles não aceitam nem mesmo receber escolas de educação indígena”, conta Francisco Loebens.
Com uma população estimada em 600 pessoas segundo dados da Funai e da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), os Pirahã falam uma língua própria da família Mura. Alguns linguistas consideram a língua uma das mais difíceis e complexas do mundo. Seu território foi homologado em 1994.
Um indígena de outra etnia que habita o sul do Amazonas e que pediu para não ser identificado disse à Amazônia Real que os Pirahã são constantemente assediados e explorados por ribeirinhos e regatões. O território deles, de aproximadamente 410 mil hectares, é permanentemente invadido por madeireiros e pessoas que entram na área para retirar castanha e óleo de copaíba.
Francisco Loebens disse que os Pirahã costumam trocar mercadorias com os regatões, mas nesse tipo de comercialização (sistema de aviamento) eles são sempre ludibriados.
“Os Pirahã fazem questão de não sair de seu território. Eles estabelecem o menor contato da área, seja com quem for. São muito autônomos nesse sentido e têm pouca conexão com o mundo exterior. Quando precisam manter relação com pessoas fora da aldeia, eles pedem para que outros representantes façam isso, como o Cimi, a Funai ou outros indígenas”, disse Loebens.
Para o indigenista, se for comprovado o envolvimento dos Pirahã no desaparecimento de Aldelena Carril, será preciso fazer uma avaliação sobre as motivações. “Se de fato isso aconteceu, é necessário saber qual o nível de compreensão que eles têm sobre isso. Tem que ter uma avaliação antropológica. Qual a razão e se eles fizeram isso a mando de outra pessoa”, disse Loebens.
Conflito com os Tenharim
O sul do Estado do Amazonas é uma área de conflito e tensão entre indígenas e não indígenas. Os indígenas são frequentemente alvo de discriminação e manifestações de ódio. No final de 2013, essa situação se agravou quando três homens não indígenas desapareceram na Terra Indígena Tenharim Marmelos, dos índios Tenharim.
Os três homens, conforme constatou investigação da Polícia Federal, foram mortos por índios Tenharim. Eles foram indiciados e acusados pela morte pelo Ministério Público Federal.
A descoberta gerou um dos maiores conflitos e ataques contra indígenas no país. Cinco homens Tenharim foram presos. No início de 2015, eles obtiveram o direito de prisão domiciliar. Na prática, os indígenas passaram a viver na aldeia Marmelos, de onde não podem sair. Passados mais de três anos, a Comarca de Humaitá ainda não marcou o julgamento dos acusados. O caso, atualmente, está na Justiça Estadual. As audiências de instrução foram paralisadas em março de 2015.
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08/01/2017 18:40
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