Após empossar dois dirigentes do Partido Social Cristão (PSC), que pertence a bancada contrária aos direitos indígenas, na Fundação Nacional do Índio (Funai), o governo de Michel Temer (PMDB) publicou na quarta-feira (18) no Diário Oficial da União a Portaria no 68, alterando o processo de demarcação territorial dos povos originários. A medida, já esperada e contestada pelas lideranças indígenas, atinge especialmente terras que são alvo de conflitos fundiários com fazendeiros, madeireiros, empreendimentos imobiliários, ou que serão afetadas por obras de barragens de hidrelétricas. A portaria provocou reação dos povos indígenas, indigenistas, organizações que defendem os direitos das populações tradicionais, o Ministério Público Federal e até representantes da Organização das Nações Unidas (ONU), entrevistados pela agência Amazônia Real.
Assinada pelo ministro da Justiça Alexandre de Moraes, a Portaria no 68 retira a competência exclusiva da Fundação Nacional do Índio (Funai), assegurada pelo Decreto 1.775 de 8 de janeiro de 1996, assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), para executar os trâmites dos processos de demarcação, que vão desde a identificação da terra até a elaboração do relatório circunstanciado, que é o documento que confirma a ancestralidade territorial das áreas estudadas. Após o relatório, há a fase de contestação. A etapa seguinte é a homologação, assinada pelo presidente da República.
Com a Portaria no 68, a Funai passará a dividir com a Consultoria Jurídica, a Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial todas as etapas de demarcação. A portaria também prevê “audiência pública para debates sobre a matéria do processo” e a realização de “outros meios de participação das partes interessadas, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas”.
A Portaria no 68 é curta – são apenas cinco artigos – e não diz quando serão nomeados os integrantes do Grupo de Trabalho Especial e nem quanto tempo ficará em vigor. Um das missões do GTE, segundo o documento, é identificar se o relatório circunstanciado da Funai “previu a reparação por terras, territórios e recursos que possuíam tradicionalmente”, conforme consta no Artigo 5º da Portaria 68.
Procurado para falar sobre o assunto e responder aos questionamentos, o Ministério da Justiça respondeu por meio da assessoria de imprensa que nesta sexta-feira (20) o ministro Alexandre de Moraes vai publicar uma nota no site do órgão a respeito da Portaria. No último dia 16, o ministro empossou o novo presidente da Funai, Antônio Costa, e o general Franklimberg Freitas para diretor de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, setor responsável por demandas de mineração, gestão ambiental, atividades produtivas, entre outras que atendem o agronegócio. Nesta quinta-feira (19), aliás, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FAP) se pronunciou, defendendo a Portaria no 68 do governo Temer (leia aqui)
O coordenador da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, em Brasília, subprocurador-geral da República Luciano Maia, afirmou que vai pedir a revogação da Portaria no. 68 por considerá-la ilegal. Mas antes de tomar alguma medida judicial, ele pretende se reunir com o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. (Leia mais abaixo)
Reparação e danos
Para justificar a ação do GTE na verificação do relatório circunstanciado da Funai que prevê “reparação” aos indígenas, o governo Temer tomou como base a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Parece que se trata de uma medida que pode beneficiar os povos indígenas, mas não é bem assim, alerta Erika Yamada, perita da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas. Erika observa que é importante ficar atento para “as mensagens alarmantes que estão escondidas atrás dos artigos da portaria”.
“Acho muito maquiavélico citarem a Declaração da ONU de Direito dos Povos Indígenas para dizer que ela prevê a possibilidade de reparação. Se a gente for ler com calma, vê que antes de chegar a essa parte que fala da reparação, a declaração da ONU reafirma e recomenda aos Estados que reconheçam os direitos territoriais dos indígenas. Que demarquem e protejam as terras”, disse Erika Yamada à Amazônia Real.
Para a perita da ONU, as medidas propostas na portaria carregam “toda uma ideologia que pretende trazer de volta a assimilação e a integração, impedindo qualquer possibilidade dos indígenas de manter o seu modo de vida”.
“Ao invés de ser resolvido com o que manda a Constituição, com a demarcação da terra, com a recuperação dos recursos naturais e o apoio ao restabelecimento da comunidade indígena, a portaria quer resolver com um mero pagamento de indenização não sei de quem e como será calculado”, afirmou.
Conforme Erika Yamada, isoladamente o artigo 28 da Declaração da ONU, de fato, fala da possibilidade de reparação, mas a regra vale para áreas que foram perdidas por diferentes motivos e que não há possibilidade de recuperação. Neste caso, o governo tem que oferecer outro território com a mesma extensão e com a mesma qualidade de recursos naturais.
“Por exemplo, uma terra indígena tem ainda uma boa parte preservada, mas há uma outra que tenha sido afetada de maneira muito grande, por estradas, por um evento ambiental ou por o que quer que seja… Esse pedaço não vai mais poder ser usado como antigamente. Então merece uma reparação? Merece. Mas não é o caso dessa portaria”, disse.
Erika Yamada também comentou sobre a exigência de realização de audiência pública, etapa essa que não está prevista no Decreto 1.775.
“Isso não pode acontecer. Uma portaria está abaixo de um decreto. O decreto não prevê audiência pública. A participação de outros interessados na demarcação já está nos prazos estabelecidos no decreto. A portaria acrescentou coisas que não estavam previstos e que bagunçam o procedimento”, disse ela.
Erika Yamada também criticou a criação de um GTE que não tem prazo de validade. “Todo GT [grupo técnico] tem um prazo de constituição. Ele é formado para uma tarefa. Mas nessa portaria parece que será ad aeternum, vai fazer parte do procedimento de demarcação. Isso é irregular. Uma portaria não pode alterar um decreto presidencial”, alertou Erika Yamada.
Em novembro do ano passado, a Amazônia Real publicou reportagem onde membros do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) protestam contra as propostas de alterações no processo de demarcação do governo Michel Temer. As informações sobre as mudanças já vinham circulando desde novembro, quando se soube que um grupo de trabalho estava discutindo as mudanças no âmbito do Ministério da Justiça. Leia aqui.
228 terras ameaçadas
Um estudo do Instituto Socioambiental (ISA) aponta que 228 territórios indígenas estão em processo de demarcação na Funai. No final do ano passado, o CNPI denunciou que 19 processos de regularização de terras indígenas foram restituídos pela Casa Civil ao Ministério da Justiça com diligências para a Funai executar. Essas áreas somam mais de 1,5 milhão de hectares.
No artigo 3º da Portaria no 68, o governo Temer destacou que o Ministro da Justiça poderá realizar audiência pública para debates sobre o processo de demarcação das terras indígenas, inclusive, estabelecer meios de participação das partes interessadas, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas.
Essas manifestações [em geral, contestações], contudo, já são previstas no inciso 8º do Artigo 2º do Decreto 1.775, como destaca a advogada do ISA, Juliana Batista.
“A modificação dessa sistemática tem o objetivo claro de viabilizar mais uma ‘fase’ de participação de setores contrários à demarcação de terras indígenas no processo, dificultando ou inviabilizando demarcações”, disse a advogada à Amazônia Real.
Para o jurista Carlos Marés e ex-presidente da Funai entre 1998 e 2000, a Portaria no 68 é ruim e indica que o governo Temer “pretende dificultar a demarcação”.
“Com as regras que tínhamos já estava difícil. Com essa portaria se torna ainda mais difícil. É uma resposta que o governo está dando pela sua própria ineficiência. Como não faz, não quer fazer e não quer demarcar, ele cria um instrumento para ‘discutir’ [a demarcação]. O que temos que discutir hoje é porque não demarca e não ficar colocando empecilhos a mais para demarcar”, disse Marés, em entrevista à Amazônia Real.
Um dos problemas apontados por Marés na portaria é a criação de uma instância administrativa a mais para aprovação de demarcações. Para ele, trata-se de uma inclusão “absolutamente inútil e ruim”.
“A demarcação tem dois aspectos. O técnico e o político. O técnico é a avaliação socioantropológica da existência do povo indígena e de suas terras. Tem cunho científico, passa pela academia, normalmente por antropólogos que fazem laudo. Quem tem esses técnicos é a Funai. É a Funai que tem know-how. O outro aspecto é a decisão política, que passa por duas instâncias, a do ministro e a do presidente da República”, explica Marés.
A “inutilidade” da portaria está no fato de o ministro da Justiça já ter à sua disposição instrumentos que amparam a decisão de assinar ou não a demarcação de uma determinada terra indígena.
“O ministro pode consultar quem ele quiser. Ele tem assessores. Portanto, não precisa nomear uma comissão por portaria para ter assessoria. Se não tiver, ele contrata. Se ele não confia em seu funcionário, que é o presidente da Funai, se não tem convicção que tecnicamente [o estudo] não está bom, chama outro. Não precisa dessa comissão. Além disso, não sabemos quando vai ser nomeada e qual o prazo que vai durar”, explica Marés.
O jurista também considera a Portaria no 68 restritiva e mal formulada, pois prevê “o cumprimento de jurisprudência do STF sobre a demarcação de terras indígenas”, mas não detalha a sua aplicação.
“Fala de jurisprudência, mas não diz se é obrigatória, portanto vinculante, ou não obrigatória. Cada caso é um caso. Conceito e jurisprudência. As duas coisas têm o único rito de atrasar e impedir a demarcação. É um obstáculo a mais para um processo que já não vinha bem e agora vai ficar mais difícil ainda”, disse o jurista.
O marco temporal
Descrita de forma vaga, a jurisprudência do STF apontada na Portaria no 68 é uma referência ao Marco Temporal, um dispositivo usado pela Corte máxima do país no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. A tese do Marco Temporal se baseia na ideia de que os indígenas têm direito à posse de seus territórios tradicionais, desde que a comunidade já estivesse ocupando efetivamente a área até o dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da atual Constituição Federal.
“As decisões do STF não têm efeito vinculante e referem-se a casos específicos. Dessa forma, não há uma jurisprudência que possa ser aplicada a todos os casos pertinentes”, afirmou a advogada Juliana Batista.
Carlos Marés salienta que a portaria pode ser questionada, mas ele prefere confiar no poder de mobilização dos próprios indígenas. Ele diz acreditar que as maiores reações virão dos indígenas e de suas organizações, que devem, segundo Marés, entrar com denúncias em instâncias internacionais contra a violação de seus direitos.
“Não houve melhoras nos últimos anos [demarcações e direitos], mas o movimento indígena tem melhorado e se organizado. A nossa expectativa está nestes movimentos especificamente”, disse.
A inconstitucionalidade
A advogada indígena Joênia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), recebeu com preocupação e repúdio a Portaria no 68 do Ministério da Justiça. Ela disse que a portaria é inconstitucional, passa por cima de leis que garantem aos indígenas o direito de serem consultados e põe em perigo a vida de várias pessoas.
É inconstitucional porque o artigo 213 da Constitucional Federal brasileira diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
“O governo decide mudar uma legislação tão importante, que é a regularização de terras indígenas (pela Constituição Federal), e não faz processo de consulta com os povos indígenas nem com suas instituições representativas. Parece que estamos vivendo num país totalmente ditador. A própria difusão de que há mudanças na regularização em terras indígenas pode acirrar conflitos onde já existe conflito, e onde tem vítimas e tem mortes”, disse Joênia Wapichana à Amazônia Real.
Joênia Wapichana atuou no julgamento da demarcação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra no Supremo Tribunal Federal (STF) em favor dos indígenas. Para a advogada, adotar o critério de uma “jurisprudência do STF” que defende a tese do marco temporal nas demarcações é equivocado.
“A Portaria tenta vetar o direito originário dos povos indígenas. O marco temporal é uma interpretação que nasceu de um dos votos do julgamento da Raposa Serra do Sol. Naquela época, a gente já batia nessa interpretação, quando se falava que os direitos territoriais teria início na promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988). Mas isso não foi colocado isso na decisão. Apenas menciona em um dos votos que se deu nos discursos durante o julgamento”, afirmou.
Joênia Wapichana considera a portaria uma medida que “chegou ao extremo” para atender a interesses contrários aos direitos e conquistas dos povos indígenas e desejam ocupar seus territórios.
“Estão adotando estratégias para burlar direitos e defender interesses econômicos e politiqueiros. Essa portaria leva ao perigo ao Estado democrático e de direito. As autoridades que defendem os direitos humanos e dos povos indígenas têm que tomar providência para que a portaria seja revogada”, alertou.
MPF pedirá a revogação
O coordenador da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, subprocurador-geral da República Luciano Maia, afirmou que vai pedir a revogação da Portaria no 68 por considerá-la ilegal. Mas antes de tomar alguma medida judicial, ele pretende se reunir com o ministro Alexandre de Moraes.
“Estamos solicitando audiência com o ministro da Justiça onde trataremos sobre demarcação de terras indígenas, tendo como fato novo a edição da Portaria no 68 e conversaremos sobre violência contra os povos indígenas. É objeto específico a solicitação da revogação da Portaria”, disse ele, em declaração à imprensa.
Luciano Maia também deve se reunir com entidades que cuidam da questão indígena e com as próprias organizações indígenas para tratar dos desdobramentos da portaria.
Para o subprocurador da República, a Portaria no 68 é ilegal por vários motivos. Um deles é a violação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, e que exige que os índios sejam consultados.
“Nenhuma organização indígena foi informada ou consultada e sequer a agência indigenista da União, que é a Funai, foi consultada. Essa é a primeira violação. Segundo, a portaria se apropria de partes da minuta de um decreto novo que pretendia substituir o Decreto 1.775. Portanto, a portaria usurpa poderes do presidente da República”, afirmou Maia.
O subprocurador também enfatiza que a Portaria no 68 adota um entendimento contrário à jurisprudência do STF.
“Para o STF, demarcação de terra indígena é atribuição da Funai, adotando metodologia antropológica. Quando a portaria cria um mecanismo novo e coloca atores externos sem qualquer acúmulo ou experiência na questão de demarcação de terras indígenas faz com que se retire da Funai essa prerrogativa, que o STF reconhece”, destacou.
Ele também considera inconstitucional porque a Portaria no 68 dá uma interpretação ao artigo 231 da Constituição, contrário ao que o STF, o STJ e tribunais regionais fazem. Ele se refere ao conceito de terras indígenas, constituído de quatro modalidades previstas na Constituição de 88. Segundo Luciano Maia, qualquer uma das quatro modalidades é suficiente para que o território seja considerado originário de um povo indígena. No entanto, na Portaria no 68, exige-se que as quatro, simultaneamente, sejam exigidas no processo demarcatório. “Com uma canetada o ministro revoga a Constituição Federal”, afirmou.
Maia disse ainda que não está clara a referência à questão da indenização aos índios por perdas de suas terras. Ele lembrou que as terras indígenas não podem ser objeto de compra e venda e da forma como foi elaborada, a Portaria entende que se pode retirar os indígenas de seus territórios e pagá-los em dinheiro.
“Isso é a mais dramática alteração de uma normatização que se realiza contra os direitos indígenas. O sentimento é que o Ministério da Justiça não estava procurando aperfeiçoar o processo de demarcação, mas assegurar que não haverá mais demarcação de terras. Se essa portaria for implementada, significa o fim dos processos de demarcação”, denunciou.
A negação do território
A liderança indígena Sônia Guajajara, presidente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), afirma que a Portaria é uma sobreposição total ao Decreto 1.775 e que, portanto, é inconstitucional. Ela disse que a portaria é uma “afronta aos direitos territoriais dos povos indígenas” e trata-se de mais uma “sequencia de equívocos do governo Temer”.
“A portaria tem o intuito óbvio de inviabilizar todo e qualquer processo de demarcação de terras indígenas no país e ainda inverter a lógica da reparação, pois visa indenizar o índio e expulsá-lo de sua terra, dando vez aos ocupantes de má fé”, disse Sônia Guajajara.
Ela diz que ao submeter a decisão sobre os territórios indígenas a um Grupo de Trabalho Especializado (GTE), o Ministério da Justiça deslegitima o estudo antropológico.
“Esse GTE foi criado para negar o território tradicional dos indígenas. Assim como viemos fazendo contra tantas outras medidas que visam suprimir direitos, vamos agora também ter que mostrar a esses ilegítimos que não se cumpre acordos negociando direitos de outros”, afirmou Sônia Guajajara.
19/01/2017 19:09
VER CONTEÚDO COMPLETO E FOTOS EM: http://amazoniareal.com.br/portaria-do-governo-temer-que-altera-demarcacao-de-terras-indigenas-e-maquiavelica-e-inconstitucional/
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