Cientista alerta que não é impossível desarquivar o processo que visa a construção das hidrelétricas no São Luiz do Tapajós devido o apoio da bancada ruralista ao governo Temer.

Desde a elaboração desta série de textos, que é tradução de um trabalho publicado em 2015 na revista Water Alternatives [1], ocorreram vários eventos relacionadas à hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. Em 19 de abril 2016 a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) publicou a “declaração” reconhecendo a Terra Indígena Sawré Muybu (e.g., [2]). Isto foi um passo importante, no entanto, é bom lembrar que a “declaração” é apenas a primeira etapa. É necessária ainda a demarcação oficial da área pela FUNAI e a publicação da “homologação” antes da área ser considerada terra indígena.

A declaração também é sujeito ao julgamento de “contestações” que foram submetidas pela ELETROBRÁS e mais sete interessados. Em 12 de maio de 2016, com o inicio do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff (concluído em 31 de agosto), mudaram o Ministro da Justiça e o seu subordinado, o Presidente da FUNAI. Logo após a entrada em poder do governo de Michel Temer, a bancada ruralista entregou uma “Pauta Positiva – biênio 2016/2017”, pedindo para desfazer decisões feitas nos últimos meses do governo anterior sobre criação de áreas indígenas (ver: [3]).

Em 15 de maio de 2016, o novo Ministro da Justiça afirmou que ele ia acatar o pedido [4], mas a declaração da área publicada em 19 de abril permanece sem revogação até dezembro de 2016.

Em de 04 de agosto de 2016, a Presidente do IBAMA, com o apoio do Ministro do Meio Ambiente, determinou o “arquivamento” do processo de licenciamento da hidrelétrica de São Luiz de Tapajós [5]. O termo é “arquivamento”, não “cancelamento” como muito divulgado na imprensa. Esta decisão representa um marco importante, diferente da historia recente nos casos das barragens do rio Madeira e de Belo Monte, onde pareceres negativos da equipe técnica do IBAMA sobre a concessão de licenças foram desconsiderados (ver [6, 7]).

No entanto, é importante lembrar que não é impossível desarquivar o processo no caso de São Luiz do Tapajós. Os Ministros do Meio Ambiente e Presidentes do IBAMA mudam com frequência. De fato, em novembro de 2016 a bancada ruralista “pediu a cabeça” do atual Ministro do Meio Ambiente [8].

As pressões para construir a hidrelétrica são muito fortes. Além das empreiteiras que fazem obras, a barragem é do interesse não apenas do setor de energia, mas também do setor de agronegócio. A hidrovia para transportar soja de Mato Grosso para portos com acesso ao rio Amazonas é de “tudo ou nada”: ou vai ter todas as barragens na rota para poder passar pelas diferentes corredeiras, ou a hidrovia não vai funcionar.

A família do atual Ministro da Agricultura é o maior produtor de soja no Brasil, com doze propriedades em Mato Grosso, a maior das quais, com 84 mil hectares, seria servida pelo ramal do rio Teles Pires da proposta hidrovia (e.g., [9]). A importância política das exportações de soja cresceu em função da atual crise econômica do País.

Em 30 de novembro de 2016 o Presidente de ELETROBRÁS apresentou uma palestra indicando que os planos do órgão ainda incluem a São Luiz do Tapajós, apesar do arquivamento pelo IBAMA [10]. O ano previsto para começar a geração de energia seria 2022. Estes planos se encaixam em um cenário onde o sistema de licenciamento ambiental como um todo está sobre ameaça de ser desfeito pelo Congresso Nacional.

Ameaças incluem os projetos de lei no Senado (PLS-654/2015) [11] e na Câmara de Deputados (PL-3.729/2004) [12] (que abreviam o processo de licenciamento e colocam um prazo impossível para o IBAMA aprovar, após o que as obras seriam automaticamente autorizadas.

Há ainda a proposta de emenda constitucional (PEC 65/2012) [13] que tornaria a mera entrega de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) uma autorização automática para construir obras como barragens, assim efetivamente acabando com o licenciamento de vez (ver: [14].

Há também a possibilidade de eliminar o licenciamento ambiental por outro caminho: a lei 13.334/2016 (da proposta MPV 727), aprovada pelo Congresso Nacional em 13 setembro de 2016 e sancionada no dia seguinte, que estabelece o Programa de Parcerias de Investimento (PPI). Essa lei dá o poder ao Conselho Diretor do PPI para obrigar IBAMA, FUNAI ou qualquer outro órgão aprovar licenças para os projetos do Programa, dentro de prazos estabelecidos pelo Conselho, independente dos seus impactos ([15], Art. 17) [16, 17].

 

NOTAS

[1] Fearnside, P.M. 2015. Brazil’s São Luiz do Tapajós Dam: The art of cosmetic environmental impact assessments. Water Alternatives 8(3): 373-396. http://www.water-alternatives.org/index.php/alldoc/articles/vol8/v8issue3/297-a8-3-5/file

[2] Farias, E. 2016. Funai reconhece território tradicional Sawré Muybu dos Munduruku Amazônia Real, 19 de abril de 2016. http://amazoniareal.com.br/funai-reconhece-territorio-tradicional-sawre-muybu-dos-munduruku/

[3] Santilli, M. & M. Guetta. 2016. Ruralistas jogam casca de banana no caminho de Michel Temer. Instituto Socioambiental, Brasília, DF. 17 de maio de 2016. https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-ppds/ruralistas-jogam-casca-de-banana-no-caminho-de-michel-temer

[4] Bergamon, M. 2016. Nenhum direito é absoluto, e país precisa funcionar, diz ministro da Justiça. Folha de São Paulo, 16 de maio de 2016. http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1771609-nenhum-direito-e-absoluto-e-pais-precisa-funcionar-diz-ministro-da-justica.shtml

[5] de Araújo, S.M.V.G. 2016. Despacho 02001.018080/2016-41 Gabinete da Presidência/IBAMA. Assunto: Processo nº 02001.003643/2009-77- AHE São Luiz do Tapajós. 04 de agosto de 2016. http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/documentos/2016/arquivamento.pdf

[6] Fearnside, P.M. 2014. Barragens do Rio Madeira- Revés para a política 4: O licenciamento ambiental. Amazônia Real, 04 de agosto de 2014. http://amazoniareal.com.br/barragens-do-rio-madeira-reves-para-a-politica-4-o-licenciamento-ambiental/

[7] Fearnside, P.M. 2014. Belo Monte como ponta de lança 3: O escândalo do licenciamento. Amazônia Real, 15 de dezembro de 2014. http://amazoniareal.com.br/belo-monte-como-ponta-de-lanca-3-o-escandalo-do-licenciamento/

[8] Santilli, M. 2016. Ruralistas pedem cabeça de Sarney Filho para fragilizar licenciamento. Instituto Socioambiental, Brasília, DF. 28 de novembro de 2016. https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-ppds/ruralistas-pedem-cabeca-de-sarney-filho-para-fragilizar-licenciamento

[9] Salisbury, C. 2016. Top scientists: Amazon’s Tapajós Dam Complex “a crisis in the making”. Mongabay, 28 de novembro de 2016. https://news.mongabay.com/2016/11/top-scientists-amazons-tapajos-dam-complex-a-crisis-in-the-making/

[10] Nunes, F. & V. Neder. 2016. Eletrobrás quer retomar projeto de megahidrelétrica no Tapajós. O Estado de São Paulo, 01 Dezembro 2016. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,eletrobras-quer-retomar-projeto-de-megahidreletrica-no-tapajos,10000092046

[11] Senado Federal. 2015. Texto Final    Projeto de Lei do Senado Nº 654, de 2015. http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/183980.pdf

[12] Câmara dos Deputados. 2004. PL-3.729/2004, Projeto de Lei que dispõe sobre o licenciamento ambiental, regulamenta o inciso IV do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, e dá outras providências. Câmara dos Deputados: Brasília, DF. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=E0835B55D081DCED29036318FAA6A7F1.proposicoesWebExterno2?codteor=225810&filename=PL+3729/2004

[13] Senado Federal. 2016. Proposta de Emenda à Constituição Nº       , de 2012. http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getTexto.asp?t=120446&c=RTF&tp=1

[14] Fearnside, P.M. 2016. A Política Brasileira Ameaça as Políticas Públicas Ambientais. (tradução de: Brazilian politics threaten environmental policies. Science 353: 746-748. 2016. doi: 10.1126/science.aag0254). http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/mss%20and%20in%20press/Fearnside-Licenciamento-port.pdf

[15] Presidência da República. 2016. Lei Nº 13.334, de 13 de Setembro de 2016. Cria o Programa de Parcerias de Investimentos – PPI; altera a Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, e dá outras providências. Presidência da República, Brasília, DF. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13334.htm

[16] As pesquisas do autor são financiadas por: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processos nº305880/2007-1, nº304020/2010-9, nº573810/2008-7, nº575853/2008-5), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (processo nº 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03). O Greenpeace custeou despesas de viagem no Tapajós [17].

[17] Fearnside, P.M. 2015. Impactos nas comunidades indígenas e tradicionais. p. 19-29 In: R. Nitta & L.N. Naka (eds.) Barragens do rio Tapajós: Uma avaliação crítica do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) do Aproveitamento Hidrelétrico São Luiz do Tapajós. Greenpeace Brasil, São Paulo, SP. 99 p. http://greenpeace.org.br/tapajos/docs/analise-eia-rima.pdf

 

Leia os artigos da série:

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 1 – Resumo da série

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 2 – O processo de licenciamento na teoria

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 3 – O processo de licenciamento na prática

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 4 – O deslocamento de populações indígenas

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 5 – O direito de “consulta” dos povos indígenas

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 6 – O bloqueio do reconhecimento da terra indígena

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 7 – A barragem e o enfraquecimento da FUNAI

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 8 – Os Munduruku desistem de uma FUNAI inexistente

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 9 – A perda de pesca

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 10 – A perca de locais sagrados dos Munduruku

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 11 – Áreas indígenas afetadas “indiretamente”

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 12 – O escândalo do “componente indígena” do EIA

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 13 – Barragem, hidrovia e falsas promessas

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 14 – Aos ribeirinhos negado o direito de consulta

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 15 – O EIA endossa grilagem de terras ribeirinhas

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 16 – Os colonos e os residentes urbanos

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 17 – Os atores na política de decisões sobre barragens

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 18 – Triângulo de ferro nas decisões sobre barragens

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 19 – Um sistema enviesado de avaliação de impacto

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 20 – As leis de suspensão de segurança

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 21 – Conclusões

PHILIP M. FEARNSIDE

 

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link

VER MAIS EM: http://amazoniareal.com.br/hidreletrica-de-sao-luiz-do-tapajos-22-pos-escrito/