O nome “igarapé” tem origem na língua Tupi-Guarani e significa “caminho da canoa”. Esse caminho de cursos d´água de rios atravessa ou margeia cidades, comunidades indígenas e ribeirinhas da Amazônia. Com uma rica biodiversidade e uma importância socioambiental às populações, em muitos lugares esses mananciais estão degradados, assoreados e impactados pela ação humana.
Na maior parte das cidades da região amazônica, os igarapés não são protegidos pela legislação ambiental e tampouco na gestão e conservação dos recursos hídricos como deveria. Entre as principais ameaças estão a atividade do agronegócio, a abertura de estradas e o desmatamento.
Nos municípios de Santarém e Paragominas, no estado Pará, um grupo de 30 pesquisadores de instituições como Museu Goeldi, Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ), unidade da Universidade de São Paulo (USP), instituições que integram a Rede Amazônia Sustentável (RAS), realizou o mais completo estudo de que se tem registro sobre igarapés em paisagens agropecuárias da Amazônia.
Os estudos dos igarapés foram realizados no rios Curuá-Una, em Santarém, e nos rios Capim e Gurupi, em Paragominas. Os três desaguam no rio Amazonas.
O objetivo da pesquisa intitulada “Pequenos Gigantes” foi avaliar como as atividades humanas afetam a biodiversidade e a integridade ambiental dos igarapés. Um relatório sobre o estudo será apresentado nesta terça-feira (06), durante o Simpósio Amazônia Sustentável, que acontece no Hotel Grand Mercure, em Belém (PA), promovido pela Rede Amazônia Sustentável (RAS).
Os pesquisadores identificaram que as estradas vicinais de terra (conhecidas também como ramais) têm avançado cada vez mais sobre a paisagem amazônica. “Estudos apontam que a abertura de estradas gera um aumento nas taxas de desmatamento, mas poucos avaliaram seus impactos diretos sobre os cursos d’água. Na fronteira agropecuária da Amazônia, a expansão da rede de estradas vicinais tem levado a um aumento do número de pequenos represamentos e à interrupção do fluxo dos igarapés”, diz o estudo.
A reportagem da Amazônia Real entrevistou por email Cecília Gontijo Leal, pesquisadora de pós-doutorado do Museu Paraense Emílio Goeldi e membro da Rede Amazônia Sustentável (RAS, Cecília Gontijo Leal. Ela integra o grupo de 30 pesquisadores que estudou os impactos socioambientais nos igarapés em Santarém e Paragominas. no Pará. Cecília Gontijo Leal tem mestrado em Ecologia Aplicada pela Universidade Federal de Lavras (UFLA) e doutorado em Ecologia Aplicada pela UFLA e pela Universidade de Lancaster, no Reino Unido. Há 12 anos ela participa de diversos projetos de pesquisa no Cerrado e na Amazônia, investigando os impactos das atividades humanas e suas implicações para a conservação ambiental. Cecília trabalha na Amazônia desde 2010 com os efeitos das mudanças nos usos da terra em paisagens agropecuárias sobre a biodiversidade dos igarapés de pequeno porte. Leia a entrevista exclusiva.
Amazônia Real – Os igarapés são ricos em biodiversidade aquática. Há igarapés em diferentes estados de conservação. A senhora pode fazer um relato sobre as condições destas bacias na Amazônia?
Cecília Gontijo Leal – A condição das bacias hidrográficas na Amazônia é bastante variada até mesmo pelo tamanho de toda a região. Encontramos desde áreas muito íntegras, com pouquíssima interferência atual (exemplo é a região do Alto rio Negro, no Amazonas) até áreas muito degradadas, sobre alta pressão das atividades humanas (exemplo do Alto rio Xingu, no Pará). Isso torna a região amazônica muito diversa de situações e também complexa de se estudar. Com isso, é importante ter cautela ao extrapolar resultados de uma área de estudos para outras com contextos diferentes. Por outro lado, não significa que precisemos esperar estudos em toda Amazônia para então dizer algo a este respeito. Nossos estudos em Santarém e Paragominas servem como laboratório para outras regiões também de uso agropecuário na Amazônia. As bacias hidrográficas destes dois municípios apresentam sinais claros de que estão sendo impactadas pelo uso da terra. Por exemplo, as estradas que são construídas para deslocamento das pessoas e também escoamento da produção agropecuária têm resultado no assoreamento dos igarapés e na diminuição de algumas espécies de peixes. Ou ainda, o desmatamento tem levado a um aumento da temperatura da água dos igarapés. Embora de poucos graus centígrados, esse aumento pode ser maior do que algumas espécies aquáticas são capazes de tolerar.
Amazônia Real – O estudo em questão é considerado o mais completo registro sobre igarapés em paisagens agropecuárias da Amazônia, com recorte nas regiões de Santarém e Paragominas. Como se deu escolha e o que lhes motivou?
Cecília Gontijo Leal – Um dos fatores que motivaram nossa escolha foi que Santarém e Paragominas têm algumas diferenças em seu histórico de ocupação humana. Este cenário nos permite entender melhor como as inferências feitas a partir de uma região podem ser generalizadas para a outra, e também para outras áreas da Amazônia, como comentei acima. Santarém foi fundada em 1661, enquanto que Paragominas teve seu estabelecimento e crescimento intenso muito mais recente, em 1959. Importante dizer que elas também têm semelhanças que as tornam comparáveis. Em ambos os municípios a construção de rodovias federais nas décadas de 1960 e 1970 [regime militar] foi um grande impulso ao desenvolvimento. Hoje, Santarém e Paragominas são caracterizadas por um mosaico diverso, incluindo florestas em diferentes estágios de conservação, agricultura mecanizada e de pequeno porte, pasto, assentamentos de reforma agrária. Este mosaico de usos da terra é comum em outras regiões da fronteira agropecuária na Amazônia Oriental.
Amazônia Real – Quem participou da pesquisa e do estudo e em qual período?
Cecília Gontijo Leal – O trabalho de campo foi realizado em 2010 em Santarém e em 2011 em Paragominas, e só foi possível devido à participação de uma grande equipe. Cerca de 30 pessoas entre assistentes de campo, estudantes e pesquisadores de várias instituições nacionais (UFLA, Inpa, UFG e UFRJ só para citar algumas) e internacionais (Lancaster University, do Reino Unido, Amnis Opes Institute and Department of Fisheries & Wildlife, dos EUA, The University of Canberra, da Austrália) foram fundamentais em todas as etapas do estudo.
Amazônia Real – Como a senhora descreve o atual estado/condição dos igarapés desta região estudada? Estão muito degradados? Foram drasticamente modificados com as intervenções?
Cecília Gontijo Leal – Tanto em Paragominas quanto em Santarém vimos que existem igarapés bastante degradados, outros em estágio intermediário e alguns bem preservados. Isso indica que temos a responsabilidade de manter o que ainda está em boa condição e também o desafio de contornar os danos que já foram feitos antes que sejam irreversíveis. Para isso é necessário pensar nos igarapés como parte integrante de um sistema como um todo, que são as bacias hidrográficas das quais fazem parte. É fundamental que sua conservação e manejo sejam conciliados às práticas agrícolas e ao contexto das paisagens nas quais se inserem.
Amazônia Real – Quais são as maiores ameaças aos cursos d´água da região estudada (Santarém e Paragominas)?
Cecília Gontijo Leal – O desmatamento é certamente uma forte ameaça aos igarapés de ambas as regiões e merece destaque. A perturbação às florestas ainda presente nas duas regiões, como mencionei acima, também é preocupante. Ainda é importante salientar alguns impactos geralmente pouco associados aos cursos d’água, mas que foram bem evidentes no nosso estudo, como os efeitos das travessias das estradas de terra (ou ramais).
Amazônia Real – Por que chegou a este ponto? A senhora acha que é possível recuperar os igarapés desta região afetada pela agropecuária e rodovias?
Cecília Gontijo Leal – Embora tenhamos encontrado sinais claros de alteração dos igarapés (assoreamento, aumento da temperatura da água, perda da qualidade da água, diminuição de algumas espécies de peixes), acredito ainda ser possível recuperá-los. Mas tudo vai depender da trajetória de usos da terra a ser seguida daqui para adiante. O custo-benefício da recuperação de um sistema muito degradado é muito baixo, sendo muito mais viável conservar dentro de um planejamento de uso mais sustentável. Ainda assim, algumas medidas simples, especificamente em termos das estradas de terra, poderiam ter bons resultados em Santarém e Paragominas. Por exemplo, no caso da restauração e da manutenção de estradas já existentes, a substituição de manilhas e tubulões por pontes reduziria muito a quantidade de represamento, o que ajudaria a manter a conectividade da rede hídrica e as vazões máximas locais – e reduziria os impactos de assoreamento do canal e de aumento da temperatura da água dos igarapés.
Amazônia Real – O governo tem planejamento de ampliar a malha rodoviária da Amazônia, com mais rodovias e que resultam na chamada “espinha de peixe”. Esta situação já ocorre na região de Santarém e Paragominas? Quais as consequências?
Cecília Gontijo Leal – Esta situação de “espinha de peixe” é mais comum nas regiões de colonização planejada, como por exemplo na Transamazônica. Ainda assim, a abertura de estradas tem sido relacionada ao aumento nas taxas de desmatamento da Amazônia. Na fronteira agropecuária, onde estão Santarém e Paragominas, a expansão da rede de estradas de terra tem levado a um aumento no número de pequenos represamentos e à interrupção do fluxo dos igarapés. Isso acontece porque as travessias sobre os igarapés são feitas de forma precária, incluindo pontes e pontilhões mal construídos, manilhas menores do que seria necessário e instaladas acima do nível da água, ou seja, desniveladas com o trecho de igarapé rio abaixo. Na maioria das vezes, tais estruturas são erguidas durante o período de estiagem, sem levar em conta o fluxo d’água no período chuvoso. Assim, os impactos não ocorrem somente no momento da construção das estradas – quando cascalho, areia e outros materiais são carreados para o canal –, mas podem perdurar ao longo de muito tempo. Para piorar, esses represamentos não planejados representam um risco para as populações humanas rio abaixo, que ficam vulneráveis ao seu rompimento durante a estação chuvosa.
Amazônia Real – No Amazonas, há o caso da BR-319 (Manaus-Porto Velho). Há uma pressão política e econômica para que a rodovia seja reconstruída. Cientistas e ambientalistas, além do Ministério Público Federal, alertam para o grande impacto ambiental. Nesta área, há muitos rios e igarapés. A senhora acha que, sem um projeto e um planejamento que contemple a proteção dos igarapés e demais cursos d´água, estas pequenas bacias serão gravemente impactadas da mesma forma como vem acontecendo com os igarapés de Santarém e Paragominas?
Cecília Gontijo Leal – Certamente. Novos empreendimentos agropecuários e concessões madeireiras devem incluir um planejamento cuidadoso da distribuição das estradas de acesso, de forma a aperfeiçoar a malha viária e, ao mesmo tempo, minimizar os impactos sobre os cursos d’água. Além do nosso exemplo, a literatura mostra um cenário semelhante de impacto aos cursos d’água pelas travessias das estradas e pequenos barramentos que elas geram na região do Alto rio Xingu. É importante salientar que as grandes rodovias asfaltadas contam com especificações técnicas bem definidas para sua construção, incluindo as travessias sobre os cursos d’água. Mas no caso das estradas de terra, essa instrução técnica não existe. Sem planejamento adequado, o prejuízo para o meio ambiente e também para as pessoas que delas dependem pode ser muito alto. Nesse sentido, as secretarias municipais ou estaduais de obras devem orientar sobre a construção e manutenção das estradas de terra que se sobrepõem aos igarapés.
Amazônia Real – A senhora acredita que há carência de uma legislação mais rigorosa que proteja os igarapés?
Cecília Gontijo Leal – Certamente. Os instrumentos existentes não são suficientes para garantir a proteção necessária. O Código Florestal, por exemplo, estabelece que uma faixa da vegetação nativa nas margens dos cursos d’água em propriedades privadas (áreas de proteção permanente) deve ser mantida para garantir o seu bom funcionamento. Entretanto, vimos que as florestas mais distantes das margens, em outras áreas das microbacias dos igarapés, também são importantes. Ao permitir que a compensação pelo desmatamento destas florestas fora das margens seja feita em outras microbacias, a referida lei desconsidera a conectividade inerente às bacias hidrográficas – um impacto em dada área da bacia vai ser carreado e refletido rio abaixo. Outro exemplo é que, sendo os igarapés altamente diversos em espécies e muito diferentes entre si, a preservação de apenas alguns igarapés, situados dentro de unidades de conservação isoladas, não é suficiente para sua conservação como um todo. Esses exemplos chamam a atenção para o fato de que os igarapés têm recebido pouca (ou nenhuma) atenção nos programas de gestão e conservação dos recursos hídricos e da biodiversidade.
Amazônia Real – A senhora acredita que, se não houver uma medida de recuperação mais profunda, os igarapés podem desaparecer?
Cecília Gontijo Leal – Não apenas a recuperação do que já foi degradado, mas também a manutenção do que ainda temos nas paisagens das fronteiras agropecuárias. Tanto Santarém quanto Paragominas ainda possuem cerca de 60% de cobertura florestal. Isso representa uma oportunidade de conciliar a conservação e o manejo dos ecossistemas aquáticos com as práticas agrícolas, visando a um desenvolvimento mais sustentável. Entretanto outros estudos da RAS indicam claramente que estas florestas estão sendo seriamente perturbadas pelo fogo, pela caça e pela fragmentação, perdendo sua qualidade. Como a conservação dos igarapés depende da conservação das florestas, essa perda de qualidade deve servir de alerta como ameaça também aos igarapés.
Amazônia Real – Qual a riqueza biológica dos igarapés? Qual a sua importância para a biodiversidade amazônica e quais são as espécies mais ameaçadas?
Cecília Gontijo Leal – Os igarapés abrigam uma alta diversidade de espécies da fauna aquática. Por exemplo, em um trecho de 150 metros num único igarapé, registramos 50 espécies de peixes – o que é similar ao total de peixes de água doce encontrado em toda Noruega ou Dinamarca. No total, nosso trabalho estudou 143 espécies de peixes, 133 de libélulas e 43 gêneros de insetos aquáticos. Um fato muito interessante é que toda essa biodiversidade encontra-se espalhada em toda a paisagem. Ou seja, não existe uma única região em Santarém ou Paragominas que concentre a maior parte dessas espécies aquáticas. Da mesma forma, os igarapés são diversos também em suas características ambientais (tipos de fundo, correnteza), tanto em áreas de floresta quanto em áreas de uso agropecuário.
Amazônia Real – De que maneira os igarapés e suas espécies ajudam no equilíbrio ambiental da região?
Cecília Gontijo Leal – Os igarapés são fundamentais ao bom funcionamento de toda a Bacia Amazônica. Eles constituem as cabeceiras dos grandes rios e estão conectados a eles e aos ambientes terrestres de toda a bacia. O fato de fazerem parte de uma rede, rede hídrica ou bacia hidrográfica, indica que não são ecossistemas isolados. Além de abrigarem uma rica fauna aquática, composta por muitas espécies raras que não ocorrem nos grandes rios, eles transportam nutrientes importantes das florestas (através de folhas, frutos, galhos) aos rios de maior porte. Não podemos esquecer também do seu papel em fornecer recursos vitais para as populações humanas, como água potável para consumo e para o gado, irrigação de cultivos de alto valor, como frutas e verduras, peixes para consumo e comércio ornamental, e áreas de recreação.
É o que diz o estudo “Pequenos Gigantes” realizado nos mananciais de Santarém e Paragominas. Na foto está a pesquisadora Cecília Gontijo Leal. (Foto: Rede Amazônia Sustentável (RAS))
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