Dos estados que compõem a Amazônia Legal, o Amapá é considerado o que mais conserva suas florestas pois registra as menores taxas de desmatamento. Mas nos últimos três anos o uso do fogo nas áreas agrícolas tem provocado números recordes de queimadas descontroladas no período da estação seca, que vai de julho a dezembro.

De 1º. a janeiro a 21 de dezembro o número de focos foi 2.654 contra 2.653 do ano passado, o maior desde que o Programa Queimadas Monitoramento por Satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) entrou em atividade, em 1998.

Mas se compararmos os dados de 1º. a 21 de dezembro deste ano com o mesmo período de 2015, temos um recorde de 491 focos de queimadas contra 269, um aumento de 82,6%. Dezembro é o mês em que geralmente há a redução dos focos de queimadas nesta parte da Amazônia Oriental.

Já no mês de novembro foram detectados 1.161 focos contra 1.300 do ano passado. Os municípios mais atingidos pela fumaça foram Macapá, Mazagão e Oiapoque. Confira os dados aqui.

O coordenador do Programa Queimadas Monitoramento por Satélites do Inpe, Alberto Setzer, disse à Amazônia Real que o aumento das queimadas no Amapá é decorrência de ações indevidas. “É uma situação que acontece em quase todas as regiões do país neste período. É o uso de fogo que vai contra toda a legislação federal, estadual e municipal. As pessoas fazem isso impunemente”, disse o pesquisador.

O gráfico do monitoramento do Inpe consultado pela reportagem indica que nos anos anteriores os focos de queimadas foram menores no Amapá: 975, em 2013, e 1.490, em 2014.

Segundo Setzer, é possível que as condições ambientais no Amapá melhorem a partir de janeiro, com a redução dos focos de queimadas. Mas ele alerta que, em 2017, tudo pode se repetir.

Já o secretário de Meio Ambiente do Amapá, Marcelo Creão, contestou os dados sobre queimadas do Inpe em entrevista à reportagem.

“Nós ainda temos algumas restrições de números de focos de calor captados, que podem ser algum telhado de zinco em alta temperatura, acima do normal, e isso é contabilizado como foco de queimada [pelo Inpe]. Temos que qualificar estes dados”, afirmou Marcelo Creão.  

O secretário do Meio Ambiente do Amapá disse que há “falha” ao se registrar vários pontos de queimadas, quando se trata de apenas um. “Os focos de calor no Amapá sobem muito por conta da Reserva Biológica do Lago Piratuba. Todo ano essa unidade possui um regime de queimadas descontrolada e acaba aparecendo diversos focos de calor, quando, na verdade, é só um dentro da área. Isso faz com que se aumentem os focos no estado”, diz Creão.

O coordenador do monitoramento de queimadas do Inpe, Alberto Setzer, rebateu o secretário Marcelo Creão. Ele negou a informação de que telhas de zinco em elevadas temperaturas possam ser captadas como focos de calor.

“Não faz qualquer sentido essa afirmação. No passado ela foi usada em dois casos: desconhecimento total dos produtos do Programa de Queimadas do Inpe, ou má intenção no sentido de distorcer a realidade do uso do fogo na vegetação”, afirma Setzer.

O coordenador do Programa Queimadas Monitoramente por Satélites explicou que “a única detecção questionável que temos atualmente é de fontes de calor fixas como siderúrgicas e ocasionais como incêndios industriais ou residenciais, pois o sensor VIIRS do novo satélite NPP é mais sensível que os satélites anteriores. De qualquer forma, não é o que ocorre no Amapá.”

A Reserva Biológica do Lago Piratuba citada pelo secretário Marcelo Creão é administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio), ligado ao Ministério do Meio Ambiente. A reserva está localizada no extremo leste do Amapá e tem uma área de 392,4 mil hectares predominantemente do bioma Amazônia. A unidade tem sido uma das mais impactadas pelo fogo nos últimos anos, isso mesmo com as dificuldades de acesso e isolamento.

No total, segundo o ICMBio, o estado do Amapá tem uma área protegida de 10,2 milhões de hectares distribuídas em 19 Unidades de Conservação e cinco Terras Indígenas homologadas, o que representa 72% do território sob proteção formal.

A última taxa de desmatamento no Amapá divulgada pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes) do Inpe, para o período de 2014 a 2015, caiu 19%: de 31 quilômetros quadrados para 25 quilômetros quadrados.

O fogo no Bailique 

No município de Macapá, distritos e nas ilhas que formam o Arquipélago do Bailique, na foz do rio Amazonas, a fumaça das queimadas prejudicou a saúde da população. A situação foi agravada pela falta de chuvas, o tempo seco e as elevadas temperaturas. A capital do Amapá tem uma população de 465.495, segundo o IBGE.

Já o município de Mazagão, distante 33 km da capital, no sul do Amapá, ficou entre os dez municípios com a maior concentração de focos de calor nos últimos cinco meses no país, segundo o Monitoramento de Queimadas do Inpe. No período, Mazagão registrou 1.103 focos de incêndio –ou seja, quase a metade do total registrado em todo o estado.

O fogo consumiu plantios de açaí, cultivo que é uma das principais fontes de renda para as comunidades ribeirinhas. A estiagem secou lagos, dificultando a obtenção de água potável, a pesca e a criação de búfalos. Para garantir o abastecimento, a Defesa Civil disse que distribuiu 350 mil litros de água para as famílias do Distrito de Sucuriju, região conhecida como um santuário pela conservação da floresta do município de Amapá, que fica no centro oeste do estado homônimo.

Uma das áreas mais impactadas pelas queimadas este ano é o Arquipélago do Bailique, distrito de Macapá. Formado por um conjunto de dez ilhas (sendo duas não habitadas), Bailique tem acesso exclusivamente por embarcação. Este isolamento no encontro entre o rio Amazonas e o Oceano Atlântico, porém, não tem sido suficiente para livrar a população de 7.600 habitantes (conforme estima o IBGE em 2016) da poluição provocada pela fumaça das queimadas.

Moradores do Bailique relataram à Amazônia Real que crianças, idosos e até jovens estão com problemas respiratórios provocados pela fumaça e o tempo seco. Outra consequência é para a economia das famílias que veem suas áreas de agricultura e floresta serem consumidos pelo fogo.

O produtor rural Alcindo Bajo Farias, 53 anos, é morador da comunidade Progresso, no Arquipélago do Bailique.

“Tem mais de 20 anos que não dava uma seca assim. Os lagos secaram e morreram muitos peixes. Vi o fogo destruir o roçado e os pés de açaí. Perdi pelo menos 60% da minha plantação”, diz Farias, que é conhecido no arquipélago como Chinoá. 

Nas comunidades ribeirinhas o fogo é usado para “limpar” o terreno para receber novas plantações. Com a falta de chuvas e sem o devido preparo para o manejo do fogo, as queimadas acabam por sair do controle e invadir áreas de floresta. O fogo que causa destruição ao ambiente é o mesmo que gera a fumaça a poluir o ar e causar doenças.

“Várias pessoas ficaram doentes por conta da fumaça. Os idosos sofrem muito por problemas de respiração, as crianças também sofrem. Ainda há muitas queimadas, muita fumaça no ar”, disse Alcindo Farias.

Ele contou que as comunidades do Bailique tiram parte da renda da produção do açaí e da pesca. “A gente tem o açaí, tem o peixe, tem a criação de galinha. Conforme o período do ano nós vamos tirando a renda. Agora está chegando a época do açaí”, afirma.

Alcindo Farias reclamou da ausência do Corpo de Bombeiros nas ações de combate ao fogo. “Os Bombeiros não vêm. O pessoal do Ibama tempos desses passou de helicóptero, perguntou para as pessoas se sabiam quem tinha iniciado o fogo, ninguém sabia, e foi embora”, denunciou Farias.

De acordo com Farias, a única forma de se controlar os incêndios é quando ocorre alguma chuva. Como elas estão escassas neste período, o fogo avança sem encontrar dificuldades. “A gente mesmo não tem nem como combater porque a seca está muito forte. Ficamos na torcida para que venha uma água, uma chuva. A gente nem liga mais para os Bombeiros. Nem que ligue não contamos com essa contribuição dos Bombeiros, do Ibama. Preferimos nós mesmos ir lá e apagar”, disse Alcindo Farias.

Ausência do estado

Jeová Alves é o presidente da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique. Ele também fala da omissão do governo do Amapá nas ações de combate às queimadas. “Aqui a ausência do estado é total. Nós não costumamos contar com a ajuda do estado. O Ministério Público Federal acionou o governo para tomar alguma providência, ficaram de enviar o helicóptero dos Bombeiros mas até agora nada”, disse.

O líder comunitário avalia que as chuvas que tendem a cair na região neste fim de ano não serão suficientes para acabar com as chamas. De acordo com ele, o período chuvoso mais intenso ocorre entre fevereiro e julho. O presidente da associação afirma que os casos de doenças respiratórias tiveram aumento nos últimos meses por conta da fumaça.

Alves denuncia que parte das queimadas é provocada por grandes fazendeiros.

“Muitos nem são daqui do Bailique, são de fora, outros nem do Amapá são. Geralmente são pessoas parentes do governador, do senador, de deputado. Tocam fogo nas áreas de campo preparando para o inverno [forma como os moradores da região definem os meses de chuva na Amazônia]. Ao invés de contratarem alguém para roçar, tocam fogo que é mais fácil”, diz Jeová Alves.

Próximo ao Oceano Atlântico, o Arquipélago do Bailique acaba recebendo muitas correntes de ventos. Esta ventania, diz Jeová Alves, acaba por concentrar quase toda a fumaça dos incêndios nas comunidades mais às margens das ilhas. “Elas [as famílias] convivem dia e noite com essa fumaça.” Ao todo, o arquipélago tem 52 comunidades.

Dificuldade da água potável

Por serem vizinhas ao Atlântico, as comunidades ribeirinhas do Arquipélago do Bailique tem dificuldade de encontrar água potável para consumo devido a salinidade dos aquíferos no entorno das oito ilhas habitadas: Bailique, Brigue, Curuá, Faustino, Franco, Igarapé do Meio, Marinheiro e Parazinho (distantes entre 160 a 180 quilômetros de Macapá). O abastecimento nas ilhas depende quase que exclusivamente do armazenamento da água da chuva. Com a estiagem, as cisternas esvaziaram.

De acordo com presidente da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique, Jeová Alves, ao menos 90% das famílias das ilhas não contam com serviço de saneamento ambiental, como distribuição de água potável e tratamento de esgoto.

“Há cinco comunidades que têm uma estação de tratamento de água que foi instalada há 30 anos pelo governo e já está totalmente sucateada”, relata Alves.

Para agravar a situação, os poucos lagos que servem de fonte de água doce estão sendo invadidos pelo oceano. O motivo para isso é a abertura de canais pelo pisotear dos búfalos criados nestas ilhas. Com a movimentação constante dos animais de um lado para o outro, “córregos” se abrem e a água salgada chega até a doce.

Outro risco provocado pelas queimadas é a fumaça que atrapalha a navegabilidade, reduzindo o campo de visão dos pilotos. Numa região que depende só deste meio de transporte para se conectar ao continente, o risco de ocorrer alguma colisão é alto.

A Amazônia Real procurou o comandante do Corpo de Bombeiros, coronel Wagner Coelho – também responsável pela Defesa Civil -, para saber do atendimento à população do Arquipélago do Bailique. Ele disse que não sabia informar se a instituição recebeu algum pedido de ajuda por parte dos moradores para combater queimadas. O militar pediu para a reportagem ligar em outra ocasião para confirmar a informação, mas ligações não foram atendidas e os e-mails enviados, não foram respondidos.

A reportagem também entrou em contato com a Companhia de Água e Esgoto do Amapá para comentar a denúncia de descaso nos serviços de saneamento ambiental no Arquipélago do Bailique, mas estatal não se manifestou até a publicação desta reportagem.

O secretário de Meio Ambiente do Amapá, Marcelo Creão afirmou que a secretaria tem um plano de controle das queimadas e do desmatamento. Creão disse que o plano tem como uma de suas bases as análises dos dados de satélite da supressão da vegetação no estado desde o ano 2000, além de desenvolver ações conjuntas de combate ao desmatamento e incêndios entre os órgãos estaduais e federais.

Creão reconheceu que no Amapá o fogo ainda é muito usado pelos produtores rurais. “Historicamente o Amapá, como os demais estados da Amazônia, tem essa tradição do uso do fogo por parte dos agricultores. As novas tecnologias que substituem este uso do fogo ainda não foram incorporadas de forma massiva. Então o fogo passa a ser incorporado na cultura da agricultura familiar, principalmente, como tecnologia de preparo da área”, afirma o secretário de Meio Ambiente do Amapá.

22/12/2016 19:41