Projeto de lei que define medidas para combater “práticas tradicionais nocivas” em sociedades indígenas, em especial o infanticídio, gerou divergências na Comissão de Direitos Humanos (CDH) nesta segunda-feira (14). Para os defensores da proposta vinda da Câmara dos Deputados (PLC 119/2015), os direitos humanos não podem ser relativizados diante de atos contrários à vida e à dignidade pessoal. Os críticos reagiram afirmando que as práticas que se quer combater ocorrem na sociedade em geral e, ainda, que o país já conta com leis adequadas para prevenir e punir tais condutas. 

A antropóloga Marianna Assunção Holanda foi uma das que questionaram a validade do projeto, a seu ver iniciativa que estigmatiza e discrimina um grupo populacional. Ela observou que os povos indígenas já estão submetidos à legislação nacional, podendo ser julgados e punidos como qualquer outro cidadão diante de casos de infanticídio, maus tratos de crianças e qualquer outra forma de violação de direitos.

Durante sua exposição, Marianna apresentou slides com reprodução de reportagens sobre infanticídios cometidos por mães brasileiras em geral, não por índias. Sem negar que existam infanticídios em grupos indígenas, ela disse, contudo, que os casos são inexpressivos em comparação com as mortes decorrentes da situação de misérias nas aldeias, associadas à desnutrição, falta de saneamento e baixa assistência à saúde.

– Qual a justificativa de um projeto que verse especificamente sobre estas violações entre os povos indígenas e que promove interpretações equivocadas e sem embasamento científico e técnico, difamando as realidades dos povos indígenas? – questionou Marianna.

A audiência foi proposta pelo presidente da CDH, senador Paulo Paim (PT-RS), que também atua como relator da matéria e já anunciou que haverá novo de debate sobre o projeto. Pelo texto, os órgãos responsáveis pela política indigenista, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), deverão usar de todos os meios para proteger crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos indígenas de práticas que atentem contra a vida, a saúde e a integridade físico-psíquica. Além do infanticídio ou homicídio, entre as práticas listadas no projeto estão o abuso sexual ou estupro individual ou coletivo, escravidão, tortura, abandono de vulneráveis e violência doméstica.

Programas

A Funai e outros órgãos deverão também desenvolver programas e projetos para a defesa de recém-nascidos, crianças ou adolescentes, mulheres e idosos em diversas circunstâncias, como gestação múltipla, deficiência física ou mental, diante dos membros da comunidade considerados “portadores de má-sorte”, ou nos caos de filhos de pai ou mãe solteiros (considerando que são sujeitos a infanticídio).

O órgão responsável pela saúde indígena deverá ainda manter cadastro atualizado de mulheres gestantes por etnia e/ou aldeia com o objetivo de proporcionar acompanhamento e proteção durante a gestação. Ainda pelo projeto, caso seja constatado que a criança correrá risco de vida, o órgão poderá, com a concordância da mãe, removê-la da aldeia. Afastado o risco, eles deverão ser reintegrados ao grupo.

O projeto não prevê aplicação de penalidade adicionais aos indígenas, mas deixa claro que serão responsabilizados, na forma das leis atuais, as autoridades de política indigenista e todo cidadão que tomar conhecimento das situações de risco para membros vulneráveis das comunidades e não comunicá-los. As ouvidorias dos órgãos indigenistas serão responsáveis pelo recebimento das notificações e comunicados, com imediato encaminhamento ao Ministério Público e demais autoridades para que tomem as providências necessárias.

Mutilação genital

Defensora do projeto, a advogada e professora Maíra Barreto admitiu como inegável a permanência de “práticas tradicionais” contrárias aos direitos fundamentais dos indivíduos. Citou o infanticídio entre grupos indígenas brasileiros, praticado especialmente quando a criança nasce com deficiência. Mencionou ainda o assassinato de meninas recém-nascidas na China e Índia. Também como de igual natureza a mutilação genital feminina em regiões da África e a negação de ensino às mulheres em alguns países muçulmanos.

Segundo ela, o Estado brasileiro não pode de nenhum modo ficar inerte diante dessas praticas. Ao contrário, o Brasil tem a obrigação de empreender ações e políticas de combate, em razão dos compromissos internacionais decorrentes dos diferentes tratados internacionais que condenam tais práticas, todos contando com a adesão do Brasil.

– São compromissos internacionais que o país assumiu, e o país pode vir a ser responsabilizado se não cumpri-los. Se não quiser cumprir, tem que denunciar os tratados – observou.

Caráter religioso

O representante da Funai, Artur Nobre Mendes, deixou claro que nunca houve omissão do órgão nem do Estado brasileiro em relação à questão do infanticídio, e que já existem mecanismos e políticas para esse enfrentamento. Salientou que uma das premissas falsas do projeto é apresentar essa questão como prática habitual entre povos indígenas, ignorando o que ocorre no restante da sociedade. Na sua visão, a proposta não dialoga com leis protetivas de direitos que já existem no país, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Maria da Penha, além de ter “caráter religioso”.

– É parte do esforço de evangelização dos índios por missões religiosas. Decorre dessa visão que distorce a realidade, é eivado de julgamentos morais e não coincide com a relação dos índios com suas crianças, que é de amor e respeito – reforçou.

Mas para Sandra Terena, que integrou o grupo de três convidados ao debate, todos favoráveis ao projeto, a Funai  sempre adotou postura de negação diante do infanticídios nas aldeias. Sandra dirigiu um documentário sobre o tema chamado Quebrando o silêncio, de 2009. Ela disse que tentou, mas não conseguiu gravar entrevistas com representantes da instituição, e que chegou a ser aconselhada por um de seus servidores a “não mexer com tema tão delicado”. Sandra afirmou que as mães indígenas querem assistência e apoio para manter a vida de seus filhos.

– A partir do momento em que estamos pedindo que haja direito de vida para nossas crianças, é dever do governo apoiar meios para que isso aconteça – afirmou.

Criminalização

Fernando Pessoa Albuquerque, que representou a Secretaria Especial de Saúde Indígena, órgão do Ministério da Saúde que assumiu a função no lugar da Funai, condenou a visão “criminalizadora” do projeto, Quanto aos indivíduos vulneráveis em situação de risco de vida, Albuquerque disse que casos notificados motivam medidas de afastamento temporário da pessoa para lugar seguro, ”observadas as especificidades de cada etnia”.  Afirmou que não há dados precisos sobre “naticídio”, mas assegurou que as mortes de crianças índias se devem principalmente à desnutrição e ausência de serviços de saneamento nas aldeias.

Kakatsa Kamayurá, um dos índios que participaram do debate, relatou sua história de sobrevivente do infanticídio. Como o pai não reconhecia a paternidade, a mãe optou por seu sacrifício logo depois do nascimento. Contou que uma mulher o salvou no momento em que a mãe cavava o buraco onde iria enterrá-lo. Criado por essa senhora, hoje ele lidera projeto que visa combater a prática do infanticídio em aldeias.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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