A presença de um batelão, típica embarcação dos rios da Amazônia, em uma praia próxima à confluência dos rios Negro e Solimões poderia dar a impressão de se tratar de mais um passeio de turistas interessados em conhecer o famoso Encontro das Águas. É partir daquele ponto que nasce o maior rio em extensão do mundo: o Amazonas. Dentro do barco, contudo, estavam pesquisadores das agências reguladoras e de pesquisa sobre águas de sete dos oito países que formam a Bacia Amazônica: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana Inglesa, Peru, Suriname e Venezuela. 

Muito mais do que simplesmente conhecer o “nascimento” do rio Amazonas, que tem extensão de 6.992,06 quilômetros da nascente no Peru até a foz no Oceano Atlântico, no Pará, os pesquisadores trocaram experiências e aprenderam a usar os equipamentos que passarão a operar em seus países para monitorar de forma rápida e precisa o comportamento dos rios e das chuvas.

Após um susto provocado por uma forte tempestade que atingiu a região e deixou as águas do rio Negro ainda mais escuras ante um céu de nuvens negras, os pesquisadores aprenderam a forma de operar equipamentos que vão ajudar na medição de índices como vazão, profundidade e a qualidade da água dos rios, além dos níveis de precipitação das chuvas.

Apesar da maioria falar o espanhol, na pesquisa não há desigualdade na detenção de tecnologias para estas atividades. O encontro acabou por mostrar a necessidade de cada país da bacia hidrográfica da Amazônia estar preparado para lidar com a mudança climática que tem, na escassez ou abundância de água, uma de suas principais características e desafios.

A cada ano, cidades e comunidades ribeirinhas dos países da Bacia Amazônica são impactadas com estiagem severa (seca) ou enchentes, ambos eventos cada vez mais recorrentes. A antecipação das autoridades a estes comportamentos das chuvas e sua influência na hidrologia dos rios pode amenizar os danos econômicos, sociais e ambientais.

Com um método convencional para saber se o volume de chuvas que atinge as cabeceiras dos rios será capaz de provocar inundações, agora a Bolívia poderá contar com instrumentos que farão esta análise em tempo real.

“Dependemos de uma pessoa num lugar, que tem o dever de fazer as observações e depois elaborar um relato via telefone, isso onde há sinal. Quando não há, usamos rádio de comunicação”, diz Hugo Cutile Capa, diretor do Serviço Nacional de Meteorologia e Hidrologia da Bolívia, no Departamento (estado) de Beni.

Beni é o nome do rio na Bolívia, mas que quando se une ao Mamoré, entrando no território brasileiro, passa a se chamar Madeira, o 17o em extensão no mundo com 3.315 quilômetros, e que banha os estados de Rondônia e Amazonas.

A partir do Projeto Amazonas, liderado pela Agência Nacional de Águas (ANA) brasileira, a Bolívia terá duas miniestações que vão substituir o trabalho artesanal de medição das chuvas e níveis dos rios.

A Bolívia – país mais pobre da América do Sul – é também um dos que mais sofrem com as alterações do clima. Na parte andina e de clima quase desértico, o grande desafio é encontrar água potável. Já na região amazônica há períodos com grandes enchentes e secas. 

“Nestes últimos tempos a Bolívia, em sua parte amazônica, precisamente nas bacias dos rios Mamoré e Beni, as partes baixas destas bacias, tem sido bastante impactada. As comunidades ribeirinhas que estão em toda a extensão dos rios estão sendo afetadas nos períodos de chuva. As chuvas intensas têm resultado em inundações”, diz Hugo Cutiles.

De acordo com ele, chuvas intensas e contínuas são registradas nas partes montanhosas destas duas bacias. Todo este volume de água que cai sobre a parte alta acaba por ser “puxada” para baixo e atingir cidades e comunidades ao longo das bacias.

Chamadas por eles de “gateadas”, chuvas que ocorrem de forma lenta, porém de longo prazo, provocam as cheias na Bolívia. “São precipitações que ocorrem de forma lenta, mas que provocam grandes inundações”, explica ele. “Quase toda a população da parte central e norte da Amazônia boliviana está exposta a inundações e grandes secas.”

Toda essa água, lógico, cruza os limites dos países e provoca efeitos além-território. As chuvas que atingem as cabeceiras do Mamoré e Beni chegam ao Brasil. Exemplo mais recente foi a grande enchente de 2014, quando o rio Madeira desabrigou milhares de pessoas em Rondônia e na Bolívia, causando estragos sociais e econômicos nos dois países.

A princípio se chegou a culpar as barragens das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, pela catástrofe. Análises científicas mostraram que o fenômeno foi causado por chuvas acima do normal na parte da Bolívia.

“Depois, tecnicamente avaliando, podemos verificar que essas estruturas [barragens] não provocaram tanto impacto. Registrou-se chuvas intensas, de longa duração, tanto na parte média como alta. Toda a descarga [de chuvas] na parte alta, pois todas as partes altas de ambos os rios estão nas montanhas, provocou a descida de todo esse volume. A água gerada lá teve que descer”, diz o pesquisador.

Qualquer comportamento atípico dos rios da bacia amazônica dentro de determinado território causa algum tipo de impacto fora destas fronteiras. Outro exemplo, além do Madeira, é o rio Acre, que nasce no Peru, entra na Bolívia e atravessa os limites do Acre e Amazonas até a foz com o rio Purus – este também de cabeceira peruana. As enchentes do rio Acre causam estragos em cidades do Peru como Iñapari, a boliviana Cobija, capital do departamento de Pando, e em cidades brasileiras.

É no Peru onde está a nascente do rio Amazonas. De uma pequena fonte de água a mais de 5,6 mil metros de altitude na Cordilheira dos Andes até a foz no Oceano Atlântico, o rio tem uma extensão de 6.992,06 km e tem importância para a vida de cidades do Peru e do Brasil. Por aqui, até se encontrar com o rio Negro, ele tem o nome de Solimões. Do outro lado da fronteira é conhecido por nomes que vão de Ucayali a Apurimac, e de Apacheta a Tambo.

No país vizinho uma das cidades banhadas pelo Amazonas é Iquitos, de onde vieram Marco Antônio Paredes e Bienvenido Atoche. Eles afirmam que a Amazônia peruana tem experimentado intensas mudanças do clima nos últimos 10 anos. Entre elas estão tempestades de vento que chegam a quase 100 km/h, chuva de granizo e estiagens e enchentes intensas.

“Na última década temos presenciado uma série de eventos extremos. Tivemos em Iquitos e várias outras cidades peruanas a maior inundação dos últimos 40 anos, assim como a maior seca também das últimas quatro décadas. As mudanças climáticas têm ficado cada vez mais intensas nos últimos 10 anos, com impactos provocados pelo desmatamento e contaminação da água. Superamos todos os limites toleráveis”, diz Marco Paredes. 

De acordo com ele, a parte amazônica do Peru é afetada com o aumento de dias mais frios e quentes. “Antes tínhamos a chegada de, no máximo, três ondas de frio ao longo do ano. Agora são 12. Isso acaba por provocar alterações e desequilíbrios nas características do ecossistema.”

Outro fenômeno que passou a ocorrer foram as chuvas de granizo. “Talvez no Brasil seja normal, mas em nossas zonas, próximas à linha equatorial, era pouco provável que acontecesse. Não era para cair [granizo], mas já está caindo”, completa Bievenido Atoche. É no litoral peruano onde nasce um dos fenômenos climáticos mais conhecidos e temidos do mundo: o El Niño.

Chamado de aquecimento das águas geladas do Pacífico, o El Niño provoca alterações nas chuvas em todo o Planeta. Na Amazônia brasileira o impacto são secas severas que provocam aumento dos focos de incêndio e redução do nível dos rios, comprometendo a segurança hídrica de inúmeras comunidades.

Outro problema do Peru com impactos no Brasil é a intensa atividade ilegal da mineração na região amazônica. Com o uso de produtos químicos danosos, a atividade acaba por poluir fontes de água com este material. As consequências são a  destruição da fauna e da flora e a contaminação de rios cujas águas vão chegar por aqui.

“Tem ocorrido pressão por parte do governo, mas é um processo que não se pode controlar. É possível controlar as atividades das empresas, mas há muitos garimpos clandestinos, e isso por mais que haja a repressão da polícia e do exército. São esses garimpos que provocam muito mais estragos ao ecossistema e é bem mais difícil de controlar”, define Paredes.  

Tecnologias trocadas  

A bordo do batelão parado em diferentes pontos dos rios Negro e Solimões, os pesquisadores aprenderam a operar o M9, uma espécie de prancha colocada na água que capta em tempo real informações essenciais da vida do rio. Com estes dados, eles saberão como o rio tem se comportado dentro de suas fronteiras.

Em um dos pontos próximos ao encontro das águas, o rio Negro chegou a uma vazão de 85 mil m3 por segundo. “Certamente este é um dos maiores níveis de vazão do mundo. Não sei se outro rio chega a tudo isso”, diz Diana Cavalcanti, pesquisadora da ANA. Neste local a profundidade chegou a 50 metros, o equivalente a um prédio de 16 andares. Em outra área, próxima ao porto de Manaus, a vazão foi menor: 53 mil metros cúbicos por segundo.

Com a ajuda de técnicos, os pesquisadores dos países vizinhas aprenderam como operar o software do M9. Na parte debaixo do barco, pesquisadores do Serviço Geológico Brasileiro (CPRM) operavam o ADCP, equipamento que faz as mesmas análises do M9. 

O Projeto Amazonas 

A partir de parcerias com seus órgãos congêneres dos países vizinhos, a Agência Nacional de Águas (ANA) do Brasil desenvolve, desde julho do ano passado, o Projeto Amazonas. O objetivo é fortalecer as relações e troca de informações científicas entre os países que integram a bacia amazônica. Ao todo o projeto teve um custo de R$ 4,2 milhões.

De acordo com Diana Leite Cavalcanti, pesquisadora da ANA e uma das coordenadoras do projeto, o objetivo da iniciativa é “consolidar uma rede de monitoramento integrado dos oito países” da bacia.

“Cada país tem sua rede hidromológica (estações de monitoramento). Nós temos as nossas estações espalhadas pela Bacia do Amazonas, e os países têm as suas, com algumas semelhanças e diferenças, suas características. Alguns sistemas conversam entre si, outros não”, afirma Cavalcanti.

Para tocar o projeto, foi criada parceria com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), ligada ao Ministério das Relações Exteriores, e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Entre os recursos investidos estão a compra de seis estações de monitoramento de rios e chuvas, chamados PCD. Cada equipamento custa US$ 30 mil. É essa miniestação que agora vai substituir o trabalho no “olhômetro” feito na Bolívia, e no qual o informante tinha que abandonar a área caso visse as águas muito perto de sua casa.

Entre os pontos escolhidos para a instalação destas estações estão bacias da Bolívia, Peru e Colômbia. “Para o Brasil é muito importante que tenhamos essas informações, que se forme séries históricas para que a gente tenha condições de monitorar e de avaliar o problema da mudança do clima e também para planejar nossas ações de defesa civil, em sistema de alerta”, afirma a pesquisadora da ANA.

As PCDs contam com pluviômetros que medem a quantidade de chuva. Instaladas às margens de rios, elas ainda coletam dados como nível da água, vazão, Ph, acidez e oxigênio.

“Qualquer processo político, econômico, estratégico, você tem que ter dados, elementos para tomada de decisão, seja ela qual for. Na parte da hidrologia, do meio ambiente, é preciso entender sua realidade”, afirma Augusto Franca Bragança, coordenador de Planejamento da Rede Hidrometeorológica.

 

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