Avesso à vida urbana, o agricultor Arildo Ari Mar, 72, nunca quis seguir os irmãos e trocar a comunidade Santa Rosa por Manaus, a cerca de 500 km de viagem de barco. Há um mês, porém, ele viu uma cidade de garimpeiros surgir sobre o trecho do rio Madeira diante da sua casa.

“Essas balsas chegaram do nada. Nem sabíamos que tinha ouro aqui. Sei que testaram ali, ficaram e foi chegando pessoal de Humaitá, Porto Velho”, diz o ex-seringueiro.

Na gíria amazônica, o fenômeno é conhecido como fofoca. Um garimpeiro encontra grande quantidade de ouro, a notícia se espalha, e logo uma multidão surge para buscar a mesma sorte.

Desta vez, a corrida do ouro se deu em trecho do rio Madeira bem em frente à comunidade de 16 famílias, fundada no final do século 19 pelo avô de Arildo, no ciclo da borracha. A área faz parte da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Rio Madeira, de 283 mil hectares.

No início, durante as primeiras semanas deste mês, havia cerca de 700 balsas de garimpo, segundo a administração da RDS. Isso significa uma população flutuante de 3.000 pessoas. Todas operando ilegalmente.

Mas não havia ouro para todo mundo, e o minério começou a “fracassar”. Quando a Folha esteve na região, em meados do mês, cerca de metade das balsas já havia deixado o local.

Por outro lado, havia quatro grandes dragas recém-chegadas em operação, com capacidade de processamento equivalente a várias balsas. Conhecidas como “dragões”, podem consumir mil litros de diesel por dia e conseguem perfurar pedras no fundo do leito.

Os transtornos da invasão para os moradores foram imediatos. Por causa da contaminação, passaram a comprar galões de água em Novo Aripuanã, a cidade mais próxima, a cerca de 40 km.

Do barco escolar, crianças, na maioria evangélicas, chegaram a ver mulheres nuas em cima do prostíbulo flutuante, estacionado a poucos metros das casas. O barulho do motor não para. As plantações de banana, principal fonte de renda, viraram banheiro para os garimpeiros. A pesca foi interrompida.

Até agora, as ações de fiscalização foram pontuais e de pouco efeito. No início, o chefe da RDS, Miqueias Santos, usou dois Pms para retirar garimpeiros de uma praia. Dias depois, recebeu ameaças e teve de deixar Novo Aripuanã.

Por se tratar de um rio interestadual, a fiscalização é de responsabilidade federal, mas apenas a Marinha esteve na região, limitando-se a inibir que os balseiros obstruam a navegação e a fiscalizar condições de segurança.

À Folha, o secretário estadual de Meio Ambiente, Antônio Stroski, afirmou que grandes ações de comando e controle na Amazônia são lentas por causa das distâncias e do custo, mas que uma operação com o governo federal está sendo planejada.

DIVERGÊNCIAS

Passado o susto inicial, a comunidade Santa Rosa, toda com laços de parentesco, se dividiu. Parte das famílias quer a saída imediata e incondicional dos garimpeiros. Sentindo-se ameaçadas após darem entrevista a uma TV local, se recusaram a falar com a reportagem.

Mais pragmática, a ala liderada por Arildo já se acostumou com a ideia de conviver com o garimpo, que pode ficar em atividade por anos, principalmente durante o período da seca. “Estamos até entrosados”, afirma.

Na condição de presidente da associação de moradores, Arildo passou a pedir uma contribuição semanal de R$ 100 para cada uma das balsas. Com o dinheiro arrecadado, já comprou um gerador de eletricidade novo e planeja um poço artesiano.

Empolgado, um dos seus filhos pegou dinheiro emprestado para investir cerca de R$ 30 mil numa balsa e contratou dois garimpeiros. Nos dias em que a reportagem esteve na região, tentava colocar o motor para funcionar.

“Entrei no negócio pela fofoca do ouro”, diz Arildo Filho, 40. “Mas não sei operar.”

PRECARIEDADE

Imersas na maior floresta do mundo, as balsas de garimpo parecem saídas da Revolução Industrial. O barulho alto do motor ligado dia e noite, o ar impregnado de fumaça de óleo diesel e o espaço exíguo fazem esquecer que se está em plena Amazônia.

Foi sobre balsas assim que Jaime Cruz, 50, o Jamico, passou a maior parte da sua vida. Atrás do ouro desde os 22 anos, possui quatro delas, operadas com seis filhos, nove garimpeiros e a mulher.

Filho de seringueiro, Jamico nasceu em uma comunidade ribeirinha próxima a Humaitá (AM), na bacia do Madeira. De infância pobre, compara-se com os filhos dizendo que “já foram criados tomando água gelada”, mas afirma que o garimpo só tornou a vida um pouco melhor.

“Nós não temos tempo de morar em terra. Se parar, o que vou comer?”, diz Jamico, um dos primeiros a chegar à nova “fofoca”, gíria usada tanto para indicar um local de ouro recém-descoberto quanto para uma fila de balsas.

As condições de trabalho são difíceis. Amarradas em linha a poucos metros do barranco, cada balsa tem uma mangueira acoplada a um motor que suga água e terra do rio. A maioria é operada de cima, mas algumas balsas usam mergulhadores, submersos de 3h a 4h por turno.

Água e lama passam por uma plataforma inclinada forrada de carpete, capaz de reter o pó do ouro, e volta ao rio.

A cada intervalo, um garimpeiro usa a cuia para checar se a água está trazendo ouro (“fagulhando”). Caso não esteja, a mangueira é mudada de posição. No rio Madeira, o ouro é extremamente fino e com ordem de pureza de mais de 98%, segundo o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

DESCANSO EM REDES

Nas balsas do Jamico, três garimpeiros, geralmente em chinelos e sem camisa, se revezam no controle do fluxo da água em turnos de 4h, noite e dia. O descanso é sobre redes num pequeno espaço acima do motor e do carpete.

“Por obrigação, nos acostumamos a essa vida. O barulho do motor já é a nossa cantiga pra dormir”, diz Jamico.

A cada 40 horas, o motor é desligado para que o ouro possa ser extraído do carpete e recuperado com uso do mercúrio. O resultado de tantas horas costuma ser do tamanho de uma bola de gude, da qual 45% é ouro.

Depois de separado, é vendido a um comprador, que geralmente aparece aos domingos, o único dia de descanso. Naquela semana, o grama saía por R$ 108.

Para o ambiente, a boa notícia é que a queima para a separação do ouro passou a ser feita no cadinho nos últimos anos. O aparelho, parecido a uma pequena panela, retém quase todo o mercúrio, que pode ser usado novamente.

É um alívio para o garimpeiro devido ao alto custo do mercúrio —1 kg do mineral custa cerca de R$ 1.000.

A atividade, porém, tem impactos ambientais significativos. Para o DNPM, os principais problemas são a mudança no leito do rio, despejo de derivados de petróleo e a perturbação da fauna aquática.

Dono de uma balsa vizinha à de Jamico, Edemir Albuquerque, 51, admite que o garimpo polui, mas diz que é pouco em comparação ao lixo produzido pelas cidades amazônicas.

COBRANÇA ILEGAL

A corrida do ouro não atrai apenas garimpeiros. Em um domingo, acompanhados de dois Pms armados, três secretários municipais de Novo Aripuanã visitavam balsa por balsa exigindo um imposto municipal de R$ 200 de cada um.

A cobrança é ilegal, segundo a secretaria estadual de Meio Ambiente.

Surpreendidos pela reportagem da Folha, eles explicaram que a cobrança se refere a um imposto municipal e que agiam em nome do prefeito da cidade, Robson de Sá (Pros).

Segundo o secretário municipal de Meio Ambiente, Herald Santana, a cobrança tem amparo em uma lei que licencia extração mineral. Falou que a visita servia para “promover educação ambiental”, mas admitiu que não haveria nenhuma sanção para quem não pagasse.

Com ele estavam o secretário de Habitação e Tributo Municipal, Jorge Sá de Assis, e o secretário da Agricultura, Valmir Mello.

Aos garimpeiros que concordavam com a cobrança, os secretários entregavam um recibo escrito a mão. Em pelo menos um caso, eles aceitaram receber apenas R$ 100.

“Isso é sacanagem”, disse o secretário estadual de Meio Ambiente, Antonio Stroski. Segundo ele, o licenciamento é competência do Estado.

Por: Fabiano Maisonnave – Fonte: Folha de São Paulo

FONTE: Amazônia.org.br – http://amazonia.org.br/2016/11/garimpo-ilegal-de-ouro-leva-milhares-a-reserva-ambiental-no-amazonas/ (LINK NÃO MAIS DISPONÍVEL)