Índios do Pará criaram organização para fiscalizar e conter o desmatamento na Amazônia.
Entre o final de 2014 e o início de 2016, operações do IBAMA em parceria com a Polícia Federal conseguiram capturar duas grandes quadrilhas de criminosos ambientais operando em regiões próximas à BR-163, rodovia que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA), na Amazônia. As autoridades, no entanto, sabem que há muitas outras espalhadas nestas áreas. Contando com a sofisticação de monitoramento por satélite, a amizade e as redes sociais, fiscais do IBAMA e índios Kayapó querem ser um projeto-piloto de parceria na defesa dos territórios de floresta que ainda resistem no Pará.
Curuá Livre
“Preparem-se para ver o inferno”, avisa Luciano Evaristo, diretor de Proteção Ambiental do IBAMA, no caminho para o garimpo Esperança IV. De um sobrevoo de helicóptero é possível ver uma língua de tonalidade marrom entrando pelo rio Curuá, consequência da contaminação por mercúrio. Do alto, avista-se o corpo de um boi morto na beira da água, que provavelmente bebeu água contaminada. Capivaras nadam em piscinas azul turquesa – as bacias de rejeito típicas de garimpo. “Vão ficar radioativas”, ironiza Evaristo em tom triste. Até o ar exala devastação.
O uso do mercúrio na separação do ouro em garimpos é controlado pelo IBAMA. O metal é tóxico. Na lista do que pode causar em seres humanos está paralisia cerebral, surdez, cegueira, danos motores, ataques cardíacos e problemas renais. No Esperança IV, que tinha licença de operação expedida pelo município de Altamira, foi apreendido mercúrio. O garimpo foi embargado e multado em 50 milhões de reais.
Era fim de agosto e terminava a operação Curuá Livre, do IBAMA, que havia sido motivada por uma denúncia certeira dos índios Kayapó, da Terra Indígena Mekrãgnoti. O nome da operação vem do rio Curuá, contaminado pelo garimpo e que banha a reserva. Outro objetivo da Curuá Livre foi revisitar as áreas que haviam sido griladas por Antônio Junqueira Vilela Filha, vulgo Jotinha, chefão de recém desbaratada quadrilha, e homem a sofrer o maior valor em multa ambiental por desmatamento ilegal na Amazônia, um total de R$ 119,8 milhões. Ele está preso em São Paulo, mas o IBAMA desconfiava que as suas fazendas, mesmo embargadas, continuavam em funcionamento.
Os garimpeiros do Esperança IV e o grileiro paulista têm algo em comum: seus crimes foram descobertos pelos vigilantes Kayapó.
Amizade, satélite e whatsapp
Foi graças à Curuá Livre que Luciano Evaristo fez seu primeiro retorno à terra dos índios que o haviam ajudado a capturar Jotinha um mês antes. A recepção foi calorosa, pois os Kayapó se tornaram próximos do diretor do IBAMA. A ligação teve início em 2014, no escritório de Brasília, quando chegaram com pintura de guerra e munidos de arcos e flechas para denunciar o grileiro. Evaristo confiou nos índios e deu certo. Começou ali uma bem-sucedida parceria.
Dototakakyre Kayapó, conhecido como Dotô, liderava os indígenas durante a ida deles à Brasília. Ele relembra o sentimento que os movia: “Tinha invasão dos grileiros ao redor da terra indígena. A gente estava preservando, não queria que os grileiros passassem para o nosso lado”, conta. “Foi nesse momento que a gente chegou na parceria com o Luciano Evaristo para ajudar a defender a floresta”.
Entre 2013 e 2016 foram mais de 180 autos de infração lavrados pelo IBAMA em um raio de até 10 km do entorno de Mekrãgnoti, 27 dos quais dentro da terra indígena. A partir de 2014, grande parte destas ações foram oriundas de denúncias dos próprios indígenas. Luciano diz que não sabe ao certo quantas foram porque nada disso é, digamos, protocolado no IBAMA por meios formais. O alerta do crime chega ao diretor por um grupo no Whatsapp dele com os índios. “São tantas mensagens que eu já tive até que pedir para sair do grupo”, confessa Evaristo.
Embargadas, mas nem tanto
Durante a Curuá Livre, os fiscais do IBAMA vistoriaram quatro áreas atribuídas a Jotinha, que já estavam embargadas. Em todas encontraram algo fora da lei. Pasto em formação, sinais de incêndio criminoso, cercas, ramal de estrada adentrando área desmatada ilegalmente, gado e… gente. Em uma das fazendas, encontraram Leandro, que se disse funcionário do lugar e apontou o dedo para uma suposta proprietária, que teria arrendado a terra de fazendeiros de Santa Catarina. Com Leandro foram encontradas motosserras, espingarda e munição. Nada tinha documentação. Ele assumiu que colocou fogo na área. No total, 800 bois se alimentavam nos pastos da fazenda embargada.
Leandro deveria ter sido levado para a delegacia localizada em Castelo dos Sonhos, mas ele ficou por lá mesmo, por falta de lugar no helicóptero, tempo ou combustível suficiente para levar o homem até a cidade e voltar para resgatar os fiscais. A equipe do IBAMA também cogitou pernoitar no lugar, mas essa opção os expunha ao risco de serem atacados.
O resultado é que fiscais vão embora, mas grileiros e seus agentes ficam.
Com as vistorias em terras griladas por Jotinha, o IBAMA percorre um trâmite de ações e de burocracia legal que permitirão aos agentes do órgão seguir a recomendação do Ministério Público para o caso: destruir cercas, casas e todo tipo de construções e equipamentos encontrados nessas terras.
Daqui pra frente
Dotô herdou o nome do avô, que por sua vez achou bonita a alcunha de um certo Doutor Bruno, médico do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) -órgão que na época da ditadura militar funcionava como a FUNAI- que frequentava a aldeia quando era mais jovem, e resolveu incorporar o Dotô ao próprio nome. Dotô, o neto, saiu da Terra Indígena Mekrãgnoti para o município de Novo Progresso quando tinha cinco anos de idade, por incentivo deste mesmo avô. Lá aprendeu português e se envolveu com a cultura do branco. Aos dezoito foi oficialmente contratado pela FUNAI para atuar na interlocução com os Kayapó, onde trabalhou por vinte anos.
Em parte, os Kayapó vigiam suas terras circulando no entorno regularmente, indo e voltando de cidades mais próximas como Novo Progresso e Castelo dos Sonhos, onde moram alguns. Mas há um reforço extra, o Instituto Kabu, uma organização dirigida pelos índios para representar as dez aldeias que compõem a Terra Indígena Mekrãgnoti. Na sede do Instituto, em Novo Progresso, fica a “central de inteligência Kayapó”, como brinca Evaristo. O Kabu conta com equipamentos comprados com recursos do Plano Básico Ambiental (PBA) da BR-163. De lá, profissionais de geoprocessamento monitoram com imagens de satélites o que acontece dentro e também próximo às terras dos índios.
“Só em 2014 eu tomei conhecimento do sistema que eles tinham e vi que este trabalho tinha potencial de ganhar a parceria do IBAMA”, conta Evaristo. Os Kayapó não são os únicos índios a fazerem este tipo de monitoramento. O que chama a atenção no caso deles é o quão bem preservadas mantêm suas terras. “São 6 milhões e meio de hectares totalmente intactos”, diz Evaristo, em referência ao tamanho da soma das duas terras indígenas da etnia quase contíguas – Mekrãgnoti e Baú. “Se você olha em volta das reservas, tudo destruído. Dentro, tudo inteiro. Por que será? Os Kayapó defendem a sua área”.
Em parceria com o Instituto Kabu, Evaristo propõe agora um projeto-piloto de pagamento aos Kayapó por serviços de monitoramento e vigilância da região no entorno de Mekrãgnoti e Baú: “Minha ideia é que, assim como os vigilantes são remunerados no IBAMA, os índios também o sejam. É pagá-los por um serviço de proteção de terra pública federal”.
A proposta está sendo redigida. Quando a tiver em mãos, Evaristo diz que irá buscar o apoio do Ministério do Meio Ambiente. O dinheiro, segundo ele, poderia vir do Fundo Amazônia. “O tempo do ‘toma aqui um dinheirinho’ acabou. Hoje um jovem Kayapó tem smartphone e está no Facebook se comunicando com a sociedade”. Acima de tudo, Evaristo defende que é preciso unir forças com os índios. “Como proteger a floresta com um ‘exército de Brancaleone’ de agentes ambientais do IBAMA, que têm que cuidar de todos os ecossistemas do Brasil e heroicamente se revezam o ano inteiro para defender a Amazônia?”
Fartura de crime ambiental
Nem mesmo os recentes casos de prisão parecem assustar quem vive de ilegalidade na Amazônia. Jotinha, preso em agosto de 2016, superou Castanha no quesito maior desmatador da região. Castanha, grileiro paraense pego em fevereiro de 2015, era famoso por exercer influência em todas as esferas da vida de Novo Progresso -da rede de supermercados local à polícia. Neste recorte da BR-163 há todo tipo de atividade ilegal: garimpo, pesca e caça em território protegido, exploração de madeira e incêndios compõem uma lista extensa.
Em comum, o cenário destas atividades econômicas revela pobreza, ignorância e medo. Quando flagrados em áreas desmatadas, quem está no campo economiza nas explicações. Em geral, todos alegam que qualquer área aberta recentemente não passa de resquício de desmatamento antigo. Garantem que não sabem de boi ou venda ilegal de madeira em áreas proibidas. Nunca conhecem seus vizinhos e pouco ou nada sabem de seus patrões. Jamais citam nomes.
Todas estas cenas se repetiram durante os quatro dias da Operação Curuá. Neste período, homens passaram pelo acampamento do IBAMA para prestar depoimentos, depois de pegos em flagrante desmatamento ou portando armas sem documentação. Ao menos um foi levado para a delegacia de Novo Progresso, onde não havia delegado. “A BR-163 é terra sem lei. Lá o Estado só aparece ou com o IBAMA na fiscalização ou com a Polícia Federal para prender”, diz Evaristo. O diretor do IBAMA não sabe dizer ainda se os rastros que investiga no momento são de outras quadrilhas tão grandes quanto as de Jotinha, mas tem certeza de que há muitas operando na região da BR-163. Animado pelos sucessos recentes, mas contra o cenário que ele próprio descreve, garante: “Nós vamos pegar uma por uma”.
Essa reportagem foi originalmente publicada pelo ((o))eco, site feito pela ONG Associação O Eco, trabalho de uma rede de jornalistas e especialistas, muitos voluntários e outros que trabalham em tempo parcial.
FONTE: EL PAÍS
VER FOTOS, VÍDEOS E CONTEÚDO EM: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/16/politica/1479314059_776039.html
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