Pressionado com os protestos de indígenas por todo o país na manhã desta quarta-feira (26), o ministro da Saúde, Ricardo Barros, anunciou no final da tarde que vai revogar as portarias 1.907 e 2.141 que tratavam das autonomias financeira e orçamentária dos Distritos Sanitários Indígenas (Dseis) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). A decisão deverá ser publicada amanhã (27) no “Diário Oficial da União”.

Índios de várias etnias foram às ruas, ocuparam prédios regionais do Ministério da Saúde e rodovias federais. Em Manaus, cerca de 450 pessoas estão ocupando a sede da Sesai, na zona centro-sul da cidade. Ronaldo Maragua, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) de Manaus, disse que a ocupação na sede da Sesai vai permanecer até que sejam publicadas as novas decisões do ministro Ricardo Barros.

Conforme as organizações indígenas nacionais, há protestos também em Atalaia do Norte e Humaitá, no Amazonas, Amapá, Alagoas, Pará, Paraná, Paraíba, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Rio Grande do Sul, Sergipe e Santa Catarina. Segundo Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a revogação das duas portarias é uma vitória do movimento indígena.

“A gente sabe que a saúde precisa melhorar muito. Não está satisfatória, mas não é com novas portarias que isso iria acontecer. Ao contrário, só vai piorar. O Brasil inteiro se revoltou contra essa portaria 1.907 e depois com a 2.141. Mostramos nossa indignação ao ministro. Falei das ocupações, dos bloqueios organizados por nós e que estamos dispostos a lutar. Ficou clara a força do movimento indígena quando enfrenta qualquer situação”, disse Sônia Guajajara à Amazônia Real, confirmando que os protestos continuam ao menos até quinta-feira (27).

As falhas das portarias

Protestos em Boa Vista, em Roraima (Foto: Alan Yanomami)

Protestos em Boa Vista, em Roraima (Foto: Alan Yanomami)

No dia 17 de outubro, o ministro Ricardo Barros baixou a portaria 1.907/16 em substituição à portaria no. 475 de 16 de março de 2011, que criou a Sesai e retirou a competência da gestão orçamentária e financeira da pasta. Como consequência, o secretário da Sesai, Rodrigo Rodrigues, tirou a competência dos Distritos Sanitários Indígenas de ordenar despesas, o que permitia a municipalização do atendimento de saúde aos índios.

Após o início dos protestos dos indígenas e a promessa das ocupações dos prédios públicos, na segunda-feira (24) o ministro Ricardo Barros voltou atrás e assinou nova portaria, a de no. 2.141 que restabeleceu a gestão financeira e orçamentária aos distritos. Mas a decisão dizia que os Dseis poderiam “requisitar, em objeto de serviço, passagens e transporte por qualquer via ou meio, de pessoas, cargas e bagagens”.

No entanto, o texto da portaria no. 2.141 publicado no Diário Oficial da União na terça-feira (25) a decisão de Ricardo Barros era diferente. Dizia que a “requisição de serviços, passagens e transportes” só poderá ser encaminhada e autorizada pelo secretário-executivo do Ministério da Saúde. As lideranças indígenas disseram que foram enganadas pelo ministro, o que intensificou os protestos.

Nesta quarta-feira (26), em Brasília, o ministro Ricardo Barros recebeu lideranças indígenas de mais de 15 estados, segundo informou em nota o Ministério da Saúde. Barros atendeu ao pedido dessas lideranças e anunciou que serão revogadas as portarias nº 1.907/16 e 2.141/16. “O objetivo do encontro foi avançar no diálogo para qualificar o atendimento a essa população. O ministro solicitou que as lideranças indígenas produzam uma avaliação da atuação de cada Dsei”, disse a nota.

O ministro Ricardo Barros não comentou a sequência de erros com as publicações de duas portarias para tratar das ações do atendimento de saúde aos indígenas. Conforme a nota do Ministério da Saúde, “novas propostas para atenção à saúde indígena serão apresentadas e debatidas na reunião com o Condisi (Conselhos Distritais de Saúde Indígena), no dia 09 de novembro”.

“As medidas em curso buscam estabelecer um novo fluxo e modelo administrativo para o setor, corrigindo, por exemplo, distorções de compra de produtos com variação acima de 1.000% e atendendo determinação judicial para adequar a assistência pelas atuais empresas conveniadas”, explicou o Ministério da Saúde.

O protesto em Manaus

Protesto nas ruas de Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Protesto nas ruas de Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Ocupação da sede da Sesai em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Ocupação da sede da Sesai em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Um grupo de ao menos 450 indígenas, segundo estimativa dos organizadores, saiu em passeata na manhã desta quarta-feira (26) pelas principais avenidas de Manaus em protesto contra portarias assinadas pelo ministro Ricardo Barros, que, na prática, transferia aos municípios a responsabilidade da saúde indígena. Com faixas e cartazes, os índios fizeram um ato pacífico que acabou na ocupação do prédio do Ministério da Saúde, onde também fica a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

Com alguns dos participantes com corpos e rostos pintados para a guerra e com suas flechas e outras armas, os índios ocuparam de forma ordeira o prédio e receberam orientações por parte dos líderes para não praticarem nenhum tipo de depredação do espaço público. Por conta do protesto, os funcionários do ministério já tinham sido avisados previamente e não houve expediente nesta quarta.

Para os líderes do movimento, a medida adotada pelo governo representa um retrocesso e coloca em risco o atendimento de saúde às populações indígenas de todo o país. Desde a criação da Sesai, o Brasil passou a ter 34 distritos sanitários especiais indígenas, responsáveis por ações que vão de mutirões de atendimento com consultas e vacinações nas aldeias, além de serviços de remoção para a assistência especializada nas cidades.

Com a portaria ministerial, estes distritos ficariam enfraquecidos, com a perda de autonomia orçamentária e de tomada de decisões, com as prefeituras e o próprio ministério centralizando as ações. O Distrito Sanitário Especial Indígena de Manaus é responsável por atender 28 mil índios das comunidades da região metropolitana da capital do Amazonas, mais os municípios da calha do rio Madeira.

“O nosso ponto de vista, enquanto lideranças, é que ele [Ricardo Barros] quer enfraquecer a saúde indígena. Essa é uma proposta antiga do ministro e de seu secretário-executivo de enfraquecer a Sesai e passar a autonomia para os municípios. Essa gestão [da saúde] na mão dos municípios, para nós, é um terror”, afirma Ronaldo Maraguá, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) de Manaus.

Segundo ele, deixar o gerenciamento da saúde indígena nas mãos das prefeituras a deixaria exposta a manobras de corrupção. “Nos municípios não há órgão de controle, não tem fiscalização. As Câmaras Municipais ficam dominadas pelos prefeitos. Nós já passamos por isso antes e sabemos como é”, afirma Maraguá.

Com a crise econômica que provocou a quebradeira nas contas das prefeituras, o dinheiro, segundo o presidente do conselho, poderia ser desviado para outras finalidades, “para tapar rombos”.

“Não bastasse a Funai estar sendo enfraquecida neste momento, agora também querem desarticular e enfraquecer a Sesai”, afirma Nara Baré, coordenadora-tesoureira da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Para ela, as consequências da municipalização do serviço seriam “desastrosas”.

Caminhada pelas ruas de Manaus marcou o protesto (Foto: Alberto César Araújo/Amaazônia Real)

Caminhada pelas ruas de Manaus marcou o protesto (Foto: Alberto César Araújo/Amaazônia Real)

“Nós, hoje, já temos uma deficiência muito grande em nosso sistema de saúde, do SUS, onde os municípios não têm um quantitativo de pessoal que possa acompanhar o atendimento básico nas aldeias. Quando se fala em saúde indígena os atendimentos são feitos nas aldeias. Há equipes que vão para campo, onde ficam de 30 a 45 dias nas comunidades”, explica Nara Baré.

Cada equipe é formada por médicos, enfermeiros, dentistas, nutricionistas e agentes indígenas de saúde. “Com a municipalização nós não vamos ter este tipo de atendimento específico, tanto de saúde quanto de equipamento”, diz a coordenadora da Coiab. Nara Baré também tem a mesma avaliação do presidente do Condisi de que a transferência para as prefeituras levariam os recursos a serem aplicados em outras áreas.

O contrato de funcionários para o atendimento de saúde indígena, atualmente, é feito por meio de uma organização social, a Missão Evangélica Caiuá. Entre estes profissionais está a enfermeira Elionaia Soares.

“Nós estamos vivendo um retrocesso na saúde indígena. Todas as conquistas obtidas pelos povos indígenas estão hoje paralisadas diante de um ministro que não entende como funciona o Sistema Único de Saúde, não entende o  SASI/SUS, que é um subsistema dentro do SUS, que garante atendimento diferenciado aos indígenas”, afirma a enfermeira Elionaia Soares.

Segundo ela, com a portaria a Missão Evangélica Caiuá está impedida de receber recursos federais. A enfermeira afirma que os salários não estão atrasados, mas a entidade já teria informado que não terá recursos para o pagamento dos salários de novembro, dezembro, décimo terceiro, mais as rescisões contratuais.

“Eles já nos avisaram que não tem mais como pagar os salários até o fim do ano. Eles vão pagar o mês de outubro e possivelmente vamos entrar em aviso prévio e não há dinheiro em caixa para pagar as nossas indenizações tudo porque não houve o repasse dos recursos das duas últimas parcelas”, diz Elionaia Soares.

Sem pessoal, estrutura e equipamentos, a assistência à saúde indígena tende a ficar comprometida em todo o país. “Para ser bem objetivo, seria o fim da saúde indígena no Brasil”, resume Warlem Mura, representante dos povos indígenas no Conselho Estadual de Saúde.

“Com estas portarias e a Sesai perdendo sua autonomia o que teremos são muitos índios sem ter condições de ser removidos, pois as prefeituras não têm condições para isso. Vai se criar um estado de calamidade dentro das comunidades indígenas”, afirma ele.

“O movimento indígena está mandando um recado ao presidente Temer de que a nomeação deste ministro [Ricardo Barros] despreparado, sem conhecimento de causa não só da saúde indígena, mas da saúde pública como um todo, está provocando um caos para a sociedade”, ressalta a liderança.

“A saúde indígena está parada. Nós não temos combustível, estamos com pouco medicamento, as equipes estão saindo de área porque não têm como se manter lá. Está tomado pelo caos e estamos totalmente desassistidos. Não estamos aqui por política ou bandeira partidária, mas, sim, pela causa da vida humana. Se não houver a revogação [das portarias] tudo vai só piorar”, afirma Warlem Mura.

Elaíze Farias e Fábio Pontes, da Amazônia Real

26/10/2016 19:22

Protesto em Uraimutã, em Roraima (Foto: Enilton Taurepang)

Protesto em Uraimutã, em Roraima (Foto: Enilton Taurepang)

Protesto em Uiramutã, em Roraima (Foto: Enilton Taurepang)

Protesto em Uiramutã, em Roraima (Foto: Enilton Taurepang)

Protestos nas ruas de Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Protestos nas ruas de Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Protestos nas ruas de Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Protestos nas ruas de Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Protestos em Boa Vista, Roraima (Foto: Alan Yanomami)

Protestos em Boa Vista, Roraima (Foto: Alan Yanomami)