Descobrir a história da ocupação humana na Amazônia Central é um desafio. O clima tropical úmido e a paisagem florestal dinâmica, onde os materiais orgânicos se deterioram rapidamente, pode ser um inimigo de vestígios arqueológicos. Mas os investigadores têm persistido e ao longo das últimas duas décadas reuniram-se evidências que podem destruir a teoria comumente considerada de que a antiga Amazônia foi pouco povoada, e em grande parte “intocada”. 

A arqueologia moderna parece pintar um retrato de uma paisagem muito mais densamente povoada e altamente manipulada, ocupada por uma variedade de comunidades pré-colombianas.

Um estudo recente revelou as primeiras evidências “zooarqueológicas” – ossos de animais que indicam hábitos alimentares – no sítio pré-histórico Hatahara, um povoamento em Iranduba, perto da confluência dos rios Solimões e Negro, a 25 quilômetros de Manaus, no Amazonas.

Hatahara remonta ainda mais ao passado, mas durante este período de tempo o povoamento expandiu-se até cobrir cerca de 20 hectares, e os seus residentes produziram cerâmica, cultivaram culturas, e modificaram a cobertura vegetal de forma tão extensa que este estudo sugere uma “transformação intensa da paisagem relacionada com o crescimento da população”, como afirmam os investigadores. 

Mas o que é que eles comiam? Depois de peneirar 300 litros (79,3 galões) de sedimentos escavados, desde 4,5 a 9 pés debaixo de um monte artificial, numa parte funerária do povoamento, os investigadores descobriram uma resposta surpreendente: peixes.  “Quando eu comecei este estudo em Hatahara, eu esperava encontrar [evidência do consumo de] mamíferos atualmente caçados na Amazônia, tais como macacos, queixadas, paca, etc.”, afirmou à Mongabay, Gabriela Prestes-Carneiro, que conduziu o estudo.

Ela explica que os mamíferos eram normalmente também uma parte importante das dietas de subsistência dos povos americanos e europeus pré-históricos. “[Para] minha surpresa, mamíferos correspondiam apenas a 4 por cento dos restos mortais, enquanto peixes e répteis correspondiam aos restantes 96 por cento.”

Mas não foi apenas a quantidade de peixes – 76% dos restos mortais – que foi uma revelação; 37 taxas de peixes foram identificados nas amostras, indicando que as pessoas daquela época foram “explorar um espectro muito mais diversificada [de espécies] do que fazemos agora”, disse Prestes-Carneiro, do Museu de História Natural de Paris. As espécies mais comuns encontradas foi pirarucu; tambaqui, piranha e cobra-d´água (enguias do pântano).

Pescar tantas espécies regularmente exigiria um conhecimento claro e profundo ao longo alcance do habitat dos peixes, comportamento, predação e migração específica para cada espécie. Hoje, por exemplo, pirarucus são capturados principalmente quando eles estão restritos a lagos durante a estação seca, quando sobem à superfície para respirar ar. Isto levou Prestes-Carneiro a suspeitar que o povo de Hatahara sabia mais sobre os peixes que nós, como cientistas, sabemos agora.

Para o estudo de Hatahara foram peneirados 300 litros de sedimentos da Amazônia, e recuperados os restos mortais de 37 taxas de peixes diferentes. Esta fotografia foi tirada no Monte Castelo, um outro local da Amazónia. Fotografia cedida por Eduardo Góes Neves. (é legenda?)

Podocnemis, um género de tartaruga de rio, dominou as amostras de répteis encontrados; animais deste gênero podem pesar até 90 kg. Um pequeno mistério: apesar da diversidade de taxa de tartarugas na região, as outras tartarugas não parecem ter sido caçadas. Além do mais, os restos de todos os indivíduos variaram entre 30 a 70 centímetros, o que sugere que não só a população de Hatahara preferia este grande gênero sobre os outros, mas que os juvenis e muito grandes indivíduos foram preferencialmente evitados. Evidências encontradas num povoamento localizado a 15 km (9,3 milhas) de Hatahara indica que as tartarugas podem ter sido mantidas em currais.

O contraste entre os padrões atuais de pesca na Amazônia, que tendem a favorecer menos espécies, e os de centenas de anos atrás, que tendiam a ser mais diversificados, é esclarecedor, diz Prestes-Carneiro. Uma das motivações para a realização do estudo é o atual debate sobre o uso sustentável dos recursos no passado, em comparação com o presente.

A forma como pescava o povo de Hatahara era sustentável? “Provavelmente sim”, disse Prestes-Carneiro. “Os pescadores de Hatahara foram capazes de adaptar as estratégias de pesca para diferentes [locais] e restrições climáticas. Além disso, não se pode subestimar a ingestão de proteínas de plantas na [dieta] tais como grãos que foram exploradas pelos habitantes de Hatahara”.

Alguns peixes de Hatahara, como pirarucu e bagres, ainda são consumidos pelas comunidades ribeirinhas atuais. No entanto, há uma diferença potencialmente importante entre então e agora: os ossos de pirarucu recuperados pelo estudo sugerem que os peixes apanhados pelo povo de Hatahara pesavam entre 5 e 100 quilogramas.

Tais indivíduos grandes são raros hoje em dia; a espécie de pirarucu está listada como “Dados Insuficientes” pela IUCN, e Prestes-Carneiro acha que a espécie pode mesmo estar em risco de extinção global. A diminuição em tamanho e abundância da espécie indica que “em algum momento estes peixes começaram a ser sobrepescados”, disse ela. “Seria interessante investigar quando e como é que tal ocorreu”.

Prestes-Carneiro espera que estudar povoamentos do passado, e o que parecem ser as suas práticas de pesca sustentáveis, poderia ser esclarecedor para o atual uso sustentável dos recursos na Amazônia. Fotografia cedida por Gabriela Prestes-Carneiro.

A preferência alimentar por peixes em vez de mamíferos pode ser interpretada de várias maneiras: tinham os mamíferos sido sobrecaçados nesta parte da Amazônia entre os anos de 750 a 1.230? Ou havia uma razão cultural para evitar espécies de mamíferos? “Nós ainda não sabemos”, admitiu Prestes-Carneiro. Mas parece certo que a proteína era abundante para o povo de Hatahara. “Nós temos que [abandonar] a ideia de que as pessoas lutavam contra a fome na Amazônia. Eles provavelmente tinham, na sua maioria, a opção de selecionar o que queriam comer”.

Compreender a dimensão da pesca através das comunidades amazônicas antigas, e seu potencial para a manutenção de povoamentos a longo prazo, vai exigir muito mais investigação, Prestes-Carneiro disse, advertindo contra a extrapolação do seu novo estudo. “Seria muito importante expandir os estudos Zooarqueológicos a diferentes ambientes, tais como povoamentos do interior, das áreas de interfluviais e das zonas húmidas, a fim de construir uma compreensão regional e de longo prazo dos recursos animais e da sua relação com os povoamentos humanos.”

Prestes-Carneiro também pensa que a combinação de investigação arqueológica com estudos contemporâneos pode ser proveitosa: “Eu acho que, como os arqueólogos, devemos trabalhar mais na comparação da evidência arqueológica com o conhecimento tradicional / indígena a fim de compreender ambientes como a gestão humana e a sua forma ao longo do tempo” disse ela. 

Claire Salisbury, do site Mongabay

Traduzido por Isabel Maria Duarte Rosa

Citação:

Prestes-Carneiro, G., Béarez, P., Bailon, S., Py-Daniel A.R., and Neves E.G. (2015) Subsistence fishery at Hatahara (750–1230 CE), a pre-Columbian central Amazonian village. Journal of Archaeological Science: Reports. In press: doi:10.1016/j.jasrep.2015.10.033

Este artigo foi publicado originalmente no site internacional Mongabay.

25/10/2016 16:42

VER CONTEÚDO COMPLETO E FOTOS EM: http://amazoniareal.com.br/peixe-era-o-principal-alimento-dos-povos-pre-colombianos-da-amazonia/