O EIA (Estudo de Impacto Ambiental) faz um grande desserviço à população ribeirinha, implicitamente endossando um dos esquemas mais notórios da Amazônia para o roubo de terra (grilagem). A história dos 1.138.000 hectares usurpados pela Indústria e Comercio de Madeiras L.B. Marochi, Ltda. (nome de fantasia: Indussolo) tem sido exaustivamente documentada por Maurício Torres (e.g., [1, 2]). A Ação Civil Pública [3] movida pelo Ministério Público Federal foi decidida a favor dos ribeirinhos em 16 de junho de 2006, indicando a invalidade das reivindicações da Indussolo.

O EIA apresenta um mapa da área conhecida como “Montanha-Mangabal” mostrando as reivindicações fundiárias da Indussolo como se fossem legítimas (Figura 4), implicitamente endossando-as ([4], Vol. 23, Tomo II, p. 39). O texto ainda enfatiza o predomínio de grandes ‘propriedades’ na área controlada pela Indussolo como uma vantagem, minimizando o número de propriedades inteiras que seriam alagadas e, assim, evitando a necessidade de realocar os ocupantes:

“Na porção mais a montante do rio, os imóveis são de grande porte …. constituindo a porção com melhores condições para reestruturação das atividades produtivas e permanência de seus usuários.” ([4], Vol. 23, Tomo II, p. 38-39).

Figura 4 – Mapa da área de Montanha e Mangabal apresentada no EIA, mostrando áreas ilegalmente apropriadas (“griladas”) como propriedades legítimas ([4], Vol. 23, Tomo II, p. 39).

Em paralelo com o papel de São Luiz do Tapajós em motivar o bloqueio de propostas para criar novas áreas indígenas, a barragem também está causando bloqueio de novas reservas extrativistas. O Ministério Público afirma:

“Em 2006, com base em estudos realizados por Maurício Torres e Wilsea Figueiredo, com o objetivo de documentar a antiguidade da ocupação ribeirinha, o MPF obteve da Justiça Federal, por meio da ACP nº 2006.39.02.000512-0, o deferimento liminar da interdição completa da área a qualquer pessoa não pertencente às famílias de Montanha-Mangabal. No mesmo ano, o Ibama realizou consulta pública para debater a proposta de criação de uma Reserva Extrativista (Resex), aprovada unanimemente pelos ribeirinhos. Contudo, a proposta não se concretizou, tendo sido paralisada no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Isso, note-se, ocorreu tão somente em razão do interesse da área ocupada para projeto hidroelétrico do Governo.” [5].

Observe que, na época em questão, o chefe da casa Civil era Dilma Rousseff, atualmente presidente do Brasil. Desde então, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) tem estabelecido um Projeto de Assentamento Dirigido (PAD), distante aproximadamente 50 km, e dado lotes de colono para muitas famílias que foram expulsas pela Indussolo de suas casas ribeirinhas tradicionais (M. Torres, comm. pess.).

Um número estimado em 2.500 ribeirinhos estão para serem desalojados pelas barragens de São Luiz do Tapajós e Jatobá, e repetidas manifestações do poder do consórcio de construção de barragens conduziram uma fração deles a desistir da sua resistência inicial às represas e aceitar qualquer acordo de reassentamento que seja oferecido [6, 7].   

NOTAS

[1] Torres, M.G. 2008. A Beiradeira e o Grilador: Ocupação no Oeste do Pará. Dissertação de mestrado em geografia, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP. 330 p. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-27112008-132446/pt-br.php

[2] Torres, M.G. 2012. Terra privada, vida devoluta: ordenamento fundiário e destinação de terras públicas no oeste do Pará. Tese de doutorado em geografia, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP. 878 p. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-14012013-155757/pt-br.php

[3] MPF-PA, 2006 MPF-PA (Ministério Público Federal no Pará). 2006. Ação Civil Pública n. 2006.39.02.000512-0, Vara Única da Subseção Judiciária de Santarém. Ministério Público Federal 16 de junho de 2006. MPF-PA, Santarém, Pará.

[4] CNEC Worley Parsons Engenharia, S.A. 2014. EIA: AHE São Luiz do Tapajós; Estudo de Impacto Ambiental, Aproveitamento Hidrelétrico São Luiz do Tapajós. CNEC (Consórcio Nacional dos Engenheiros Consultores), São Paulo, SP. 25 Vols. + anexos. http://licenciamento.ibama.gov.br/Hidreletricas/São%20Luiz%20do%20Tapajos/EIA_RIMA/

[5] MPF-PA (Ministério Público Federal no Pará). 2013. Recomendação/3º Ofício/PRM/STM Nº 2, de 26 de Fevereiro de 2013. MPF-PA, Santarém, Pará.  http://www.prpa.mpf.mp.br/institucional/prpa/recomendacoes/2013/Recomendacao_PRM_Santarem_INSS_Itaituba_seguro_especial_Montanha_Mangabal.pdf

[6] Aranha, A. & J. Mota. 2015. Hidrelétricas do rio Tapajós devem desalojar mais de 2500 ribeirinhos. Agência Pública, apublica.org, 09/02/2015. http://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2015/02/09/hidreletricas-do-rio-tapajos-devem-desalojar-mais-de-2500-ribeirinhos.htm

[7] Isto é uma tradução parcial de Fearnside, P.M. 2015. Brazil’s São Luiz do Tapajós Dam: The art of cosmetic environmental impact assessments. Water Alternatives 8(3): 373-396, disponível aqui. As pesquisas do autor são financiadas por: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processos nº305880/2007-1, nº304020/2010-9, nº573810/2008-7, nº575853/2008-5), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (processo nº 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03). O Greenpeace custeou despesas de viagem no Tapajós [8]. M.A. dos Santos Junior fez os mapas. N. Hamada e P.M.L.A. Graça contribuíram comentários. Agradeço especialmente aos Munduruku.

[8] Fearnside, P.M. 2015. Impactos nas comunidades indígenas e tradicionais. p. 19-29 In: R. Nitta & L.N. Naka (eds.) Barragens do rio Tapajós: Uma avaliação crítica do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) do Aproveitamento Hidrelétrico São Luiz do Tapajós. Greenpeace Brasil, São Paulo, SP. 99 p. http://greenpeace.org.br/tapajos/docs/analise-eia-rima.pdf

Leia os artigos da série:

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 1 – Resumo da série

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 2 – O processo de licenciamento na teoria

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 3 – O processo de licenciamento na prática

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 4 – O deslocamento de populações indígenas

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 5 – O direito de “consulta” dos povos indígenas

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 6 – O bloqueio do reconhecimento da terra indígena

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 7 – A barragem e o enfraquecimento da FUNAI

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 8 – Os Munduruku desistem de uma FUNAI inexistente

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 9 – A perda de pesca

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 10 – A perca de locais sagrados dos Munduruku

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 11 – Áreas indígenas afetadas “indiretamente”

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 12 – O escândalo do “componente indígena” do EIA

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 13 – Barragem, hidrovia e falsas promessas

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 14 – Aos ribeirinhos negado o direito de consulta

24/10/2016 18:02

PHILIP M. FEARNSIDE

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link.

VER MAIS EM:   http://amazoniareal.com.br/a-hidreletrica-de-sao-luiz-do-tapajos-15-o-eia-endossa-grilagem-de-terras-ribeirinhas/