O EIA parece estar preparando o terreno para tirar dos ribeirinhos os seus direitos. Ribeirinhos são “populações tradicionais” e, como tal, têm o direito de consulta sob OIT-169. No entanto, o EIA afirma:
“Porém, não se pode afirmar que são populações tradicionais no termo da Lei No. 111.284 (Lei de Gestão de Florestas Públicas) … ou como define o Decreto No. 6.040, Art. 3º, Inciso 1, Povos e Comunidades Tradicionais …” ([1], Vol. 7, p. 120).
No entanto, os autores do EIA foram forçados a admitir que uma das comunidades ribeirinhas havia sido legalmente reconhecida como uma “população tradicional”: Montanha e Mangabal ([1], Vol. 7, p. 121). Este grupo foi reconhecido em 2006 pela Ação Civil Pública No. 2006.39.02.000512-0 [DOU n º 30654 de 04/03/2006]. A área é descrita em um relatório por Maurício Torres e Wilsea Figueiredo (2006) [citado no EIA [1], Vol. 7, p. 121]. Estes autores até encontraram algumas das mesmas familias no local que Henri Coudreau relatou haver visitado em 1895 [2]. O fato de que esta é a única comunidade ribeirinha que havia sido estudada e que resultou em um relatório citável é, aparentemente, a explicação de porque esta comunidade é a única reconhecida oficialmente como “tradicional”.
O EIA menciona que o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) “publicou chamada para Realização de Diagnóstico de Comunidades Tradicionais Localizadas em Glebas Públicas Federais, na Amazônia Legal, no segundo semestre de 2011, não concluído até o fechamento do presente documento” ([1], Vol. 7, p. 124). Mas, em outra parte ([1], Vol. 2, p. 80) o EIA afirma:
“…podem ser enquadradas comunidades ribeirinhas, compostas por população tradicional não indígena residentes [sic], em sua maioria, à beira de cursos d’água, lagos e várzeas amplamente dependentes desses corpos hídricos como sua fonte de água para uso doméstico, alimentação e transporte.
Deste modo, eventuais populações ribeirinhas atingidas pela implantação do AHE São Luiz do Tapajós, caso enquadrados no conceito de povos e comunidades tradicionais deverão ser reassentadas preferencialmente em áreas passíveis de manter a proteção da sua identidade cultural, estrutura organizacional e o acesso aos recursos tradicionalmente utilizados” ([1], Vol. 2, p. 80-81).
O termo-chave é “caso enquadrados”. É claro que, com exceção Montanha e Mangabal, onde uma decisão jurídica torna a negação impossível, o EIA está indicando que os ribeirinhos não são tradicionais e, portanto, não tem o direito de consulta. Mesmo para uma população oficialmente reconhecida como “tradicional”, nenhuma sugestão foi feita de um direito à consulta, mas apenas sugeriu que seja realizada uma forma mais sensível de reassentamento, e esta seria aplicada apenas “preferencialmente”, ou seja, só se isso fosse conveniente, mas sem qualquer tipo de obrigação.
Com referência a OIT-169, o EIA alega que:
“Há divergência quanto aos sujeitos de direito da consulta, existindo a defesa de uma consulta direcionada apenas as comunidades indígenas e uma mais ampla que atenda ribeirinhos e comunidades tradicionais.” ([1], Vol. 22, Anexo Geral, p. 78).
Evidentemente, isto está sendo interpretado no sentido de que não há nenhuma necessidade de consultar ribeirinhos, mesmo no caso de serem reconhecidos como “comunidades tradicionais” [3].
NOTAS
[1] CNEC Worley Parsons Engenharia, S.A. 2014. EIA: AHE São Luiz do Tapajós; Estudo de Impacto Ambiental, Aproveitamento Hidrelétrico São Luiz do Tapajós. CNEC (Consórcio Nacional dos Engenheiros Consultores), São Paulo, SP. 25 Vols. + anexos. http://licenciamento.ibama.gov.br/Hidreletricas/São%20Luiz%20do%20Tapajos/EIA_RIMA/
[2] Coudreau, H. 1977 [1896]. Viagem ao Tapajós. Itatiaia, Belo Horizonte, MG & Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. 162 p.
[3] Isto é uma tradução parcial de Fearnside, P.M. 2015. Brazil’s São Luiz do Tapajós Dam: The art of cosmetic environmental impact assessments. Water Alternatives 8(3): 373-396, disponível aqui. As pesquisas do autor são financiadas por: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processos nº305880/2007-1, nº304020/2010-9, nº573810/2008-7, nº575853/2008-5), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (processo nº 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03). O Greenpeace custeou despesas de viagem no Tapajós [4]. M.A. dos Santos Junior fez os mapas. N. Hamada e P.M.L.A. Graça contribuíram comentários. Agradeço especialmente aos Munduruku.
[4] Fearnside, P.M. 2015. Impactos nas comunidades indígenas e tradicionais. p. 19-29 In: R. Nitta & L.N. Naka (eds.) Barragens do rio Tapajós: Uma avaliação crítica do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) do Aproveitamento Hidrelétrico São Luiz do Tapajós. Greenpeace Brasil, São Paulo, SP. 99 p. http://greenpeace.org.br/tapajos/docs/analise-eia-rima.pdf
Leia os artigos da série:
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 1 – Resumo da série
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 2 – O processo de licenciamento na teoria
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 3 – O processo de licenciamento na prática
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 4 – O deslocamento de populações indígenas
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 5 – O direito de “consulta” dos povos indígenas
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 6 – O bloqueio do reconhecimento da terra indígena
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 7 – A barragem e o enfraquecimento da FUNAI
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 8 – Os Munduruku desistem de uma FUNAI inexistente
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 9 – A perda de pesca
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 10 – A perca de locais sagrados dos Munduruku
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 11 – Áreas indígenas afetadas “indiretamente”
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 12 – O escândalo do “componente indígena” do EIA
A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 13 – Barragem, hidrovia e falsas promessas
PHILIP M. FEARNSIDE
Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link.
http://A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 14 – Aos ribeirinhos negado o direito de consulta
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