O EIA (Estudo de Impacto Ambiental) foi preparado e divulgado pelo IBAMA sem o componente indígena; a FUNAI opôs-se em 15 de agosto de 2014. Uma versão do EIA com o componente indígena adicionado foi então entregue à FUNAI, pelo IBAMA em 12 de setembro de 2014. Um parecer interno da FUNAI datada de 25 de setembro de 2014 [1] vazou posteriormente para a imprensa. O documento deixa clara a insuficiência do componente indígena, que, entre outras irregularidades, tinha sido elaborado sem qualquer trabalho de campo nas áreas indígenas afetadas, em desconformidade com os termos de referência para o estudo.

O que é mais importante é que, embora o componente indígena tenha apontado graves perdas de recursos que o projeto de barragem iria infligir sobre os Munduruku, não houve alterações no restante do EIA para refletir essas implicações, especialmente a parte sobre a viabilidade do projeto. O documento vazado mostra que a administração não é homogênea.

O componente indígena foi adicionado ao EIA como um anexo, e explica que:

“O presente estudo não seguiu completamente os processos metodológicos, como o plano apresentado anunciava. A equipe não recebeu autorização da FUNAI–DF e dos Munduruku para entrada em terras indígenas”. ([2], Vol. 22, Anexo Geral, p. 34).

O anexo apresentando o Estudo de Componente Indígena (ECI) afirma que “É importante evidenciar que o trabalho de campo não se configura exclusivamente em estar no locus, onde o sujeito social e seus modos de vida estão concentrados, suas terras”, e explica que os autores do EIA havia falado com alguns Munduruku (aparentemente professores de educação fundamental) enquanto a equipe permanecia em Itaituba ([2], Vol. 22, Anexo Geral, p. 34). Então cita uma passagem da Constituição brasileira de 1988 (Constituição Federal, Artigo 7, Inciso 3) para reivindicar que a FUNAI, como um órgão do governo, fosse obrigada a permitir e facilitar a entrada da equipe nas áreas indígenas:

“… Os governos [mesmo redundante precisa-se reforçar, que o órgão indigenista é governo] deverão zelar para que, sempre que for possível, sejam efetuados estudos [grifo nosso] junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento previstas possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas.” ([2], Vol. 22, Anexo Geral, p. 36).

Em vez das palavras que os autores do EIA destacaram em negrito, poderia ter sido salientada a última frase nesse trecho.

O Estudo de Componente Indígena apresenta uma lista resumindo os impactos sobre os povos indígenas:

“De todo modo, durante o período em que a equipe esteve em campo foi possível, através de relatos de indígenas contatados, conforme anteriormente relatado, listar alguns impactos, como:

 A geração de expectativas quanto ao futuro da população indígena e da região;

 Aumento da visibilidade indígena em níveis local, regional, nacional e Internacional;

 Aumento do fluxo migratório;

 Alteração dos elementos culturais das populações tradicionais;

 Alteração da organização social vigente;

 Possibilidade de aumento da incidência de doenças (DSTs, malária, febre amarela, leishmaniose, doenças respiratórias, doenças diarreicas, hanseníase e tuberculose) nas TIs e áreas indígenas.” (([2], Vol. 22, Anexo Geral, p. 115).

Com exceção dos dois primeiros, esses impactos são todos sérios e altamente prejudiciais [3].

 

NOTAS

[1] FUNAI (Fundação Nacional do Índio). 2014. Informação n° 249/COEP/CGLIC/DPDS/FUNAI-MJ. 25 de setembro de 2014. Assunto: UHE São Luiz do Tapajós. Componente indígena do processo de licenciamento ambiental. Referência: Processo Funai n° 08620.000765/2009-09; ACP n° 3883-98.2012.4.0 1.3902. FUNAI, Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável (DPDS), Coordenação Geral de Licenciamento Ambiental (CGLIC), Coordenação do Componente Indígena de Energia. Petróleo e Gás (COEP), Brasília, DF. 5 pp. Disponível em: http://apublica.org/wp-content/uploads/2014/12/funai-25-setembro.pdf   

[2] CNEC Worley Parsons Engenharia, S.A. 2014. EIA: AHE São Luiz do Tapajós; Estudo de Impacto Ambiental, Aproveitamento Hidrelétrico São Luiz do Tapajós. CNEC (Consórcio Nacional dos Engenheiros Consultores), São Paulo, SP. 25 Vols. + anexos. http://licenciamento.ibama.gov.br/Hidreletricas/São%20Luiz%20do%20Tapajos/EIA_RIMA/

[3] Isto é uma tradução parcial de Fearnside, P.M. 2015. Brazil’s São Luiz do Tapajós Dam: The art of cosmetic environmental impact assessments. Water Alternatives 8(3): 373-396, disponível aqui. As pesquisas do autor são financiadas por: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processos nº305880/2007-1, nº304020/2010-9, nº573810/2008-7, nº575853/2008-5), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (processo nº 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03). O Greenpeace custeou despesas de viagem no Tapajós [4]. M.A. dos Santos Junior fez os mapas. N. Hamada e P.M.L.A. Graça contribuíram comentários. Agradeço especialmente aos Munduruku.

[4] Fearnside, P.M. 2015. Impactos nas comunidades indígenas e tradicionais. p. 19-29 In: R. Nitta & L.N. Naka (eds.) Barragens do rio Tapajós: Uma avaliação crítica do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) do Aproveitamento Hidrelétrico São Luiz do Tapajós. Greenpeace Brasil, São Paulo, SP. 99 p. http://greenpeace.org.br/tapajos/docs/analise-eia-rima.pdf

 

Leia os artigos da série:

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 1 – Resumo da série

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 2 – O processo de licenciamento na teoria

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 3 – O processo de licenciamento na prática

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 4 – O deslocamento de populações indígenas

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 5 – O direito de “consulta” dos povos indígenas

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 6 – O bloqueio do reconhecimento da terra indígena

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 7 – A barragem e o enfraquecimento da FUNAI

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 8 – Os Munduruku desistem de uma FUNAI inexistente

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 9 – A perda de pesca

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 10 – A perca de locais sagrados dos Munduruku

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós – 11: Áreas indígenas afetadas “indiretamente”

PHILIP M. FEARNSIDE

 

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link.

 

03/10/2016 17:06

 

VER MAIS EM:  A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 12 – O escândalo do “componente indígena” do EIA