Como já mostrei em outros textos, as histórias dos povos indígenas do rio Negro começa desde que eles são seres divinos-humanos. E, principalmente desde que se tornaram humanos e pisaram no patamar da terra cada povo indígena segue construindo suas histórias, suas culturas, suas práticas culturais, seus pensamentos, organizando seus conhecimentos, superando seus desafios, mudando de um lugar para outro em diferentes espaços geográficos até estabelecerem nos lugares atuais. 

Se utilizarmos alguns conceitos psicológicos e antropológicos podemos dizer que as histórias dos povos indígenas do rio Negro são construídas, desconstruídas, reconstruídas, criadas e recriadas, inventadas e reinventadas, significadas e ressignificadas em todos os processos históricos.

Na vida diária os povos indígenas procuram viver intensamente cada dia. Sentem-se vivendo protegidos por diversas divindades presentes em todos os ambientes do universo. São as divindades que cuidam dos peixes, da caça, das florestas, das roças, de todo tipo de fertilidade, dos rios, das cachoeiras, das praias, das pedras, dos viajantes, etc. Embora haja mudança contínua na compreensão desse mundo, existem alguns fundamentos que sustentam as transformações históricas.

Os sábios indígenas, homens e mulheres, zelam através de suas forças de prevenção e cura, pelo equilíbrio da vida do ser humano consigo mesmo, com o mundo de seu entorno, desde o ventre materno até à nossa despedida desse mundo (morte). Para nós povos indígenas é importante estar bem com o mundo, com as pessoas e com outros seres existentes em diferentes mundos.

Há uma preocupação contínua de cuidar da vida humana desde o momento da gravidez, momento de parto, de resguardo dos pais, do espaço onde a criança vai viver e crescer, cuidado com os alimentos, com a iniciação à primeira alimentação da criança, iniciação dos adolescentes e jovens, formação da família, etc. Estão incluídos aqui todos os recursos de proteção da vida, como os benzimentos, medicinas tradicionais na base de plantas, raízes, casca de árvores, etc. Nos dias atuais contam com diversos programas de cuidado da saúde humana oferecidas pelas agências que cuidam da saúde.

Há um trabalho dos pais ensinarem aos filhos a sabedoria de cuidar da terra, terra como nossa vida, como outro ser dialoga conosco, como mãe que cuida dos filhos. Terra como algo importante para ser cuidado, preservado, utilizado, cultivado. Cada povo indígena possui modos próprios de cuidado com a terra e os modos de desenvolver os trabalhos.

Faz parte da construção das histórias dos povos indígenas o cuidado com as histórias sagradas, pois são elas que nos ajudam a narrar nossas histórias, de nossas origens; os nossos avós faziam isso, narrando, as pessoas aprendiam ouvindo, repetindo, contando, recontando, cantando, dançando, pintando seus corpos, etc.

As festas são também construções históricas de nossas histórias. Através das realizações das festas as pessoas aprendem diversos conhecimentos e põem em prática todos os aprendizados: organizar as festas, articular as forças, acolhida das pessoas, aprender a tratar com respeito às pessoas, prover as necessidades dos convidados, etc.

Na construção de nossas histórias aprendemos a valorizar os nossos sábios, como pessoas especializadas, que cuidam do bem estar das pessoas com seus poderes de prevenir e curar as doenças.

Algumas realidades de nossas vidas são mais visíveis. A partilha é uma dessas realidades, é uma realidade importante de nossas culturas indígenas. Com o passar das histórias mudaram-se formas de partilha. Variam muito a partilha nos tempos atuais: alimentos, materiais, disponibilização de bens (canoas, motor, gasolina…), partilha de conhecimentos, projetos, etc.

As formas de relações sociais são também construções históricas, por isso, são culturais. Isso vai desde as formas comuns do dia a dia, incluem nossas atitudes, comportamentos, reações; modos de interagir com outros no trabalho, lazer, estudos; nos tempos atuais incluem comunicação pelas radiofonias, telefones convencionais, celulares, mensagens e outros meios mais recentes de redes sociais, principalmente, entre os mais jovens.

As viagens que os povos indígenas realizam contribuem com a construção das histórias atuais dos povos indígenas. As viagens são momentos de aprendizagem e de ensinamento também, dependendo da viagem. Nos percursos das viagens ensina e se aprende muitos conhecimentos: improvisar casas, aprender a cozinhar, superar as dificuldades, etc. Nas viagens pelas cidades se aprende outros conhecimentos que contribuirão na vida da comunidade.

Os casamentos são importantes nas histórias dos povos indígenas, contribui profundamente na vida interna e externa de um povo, abrem portas para entrada em outros povos, aprendizagem de outras línguas, outros tipos de tratamentos e outros tipos de negócios (intercâmbio de bens materiais e imateriais).

Os povos indígenas mantêm vivas muitas tecnologias criadas pelos seus avós no campo do trabalho, das festas, das construções. Também vão agregando novas tecnologias do ocidente.

As escolas são outros espaços onde se aprende diversos conhecimentos. Os diferentes professores ensinam muitos conhecimentos além do que se aprende em casa e nas comunidades.

JUSTINO SARMENTO REZENDE

Leia o primeiro artigo da série: Povos Indígenas Contemporâneos do Rio Negro, no Amazonas

Justino Sarmento Rezende é indígena do povo Ʉtãpinopona-Tuyuka, nascido na aldeia Onça-Igarapé, distrito de Pari-Cachoeira, município de São Gabriel da Cachoeira (AM). É padre com formação em Licenciatura em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília; Bacharelado em Teologia pela Faculdade Teológica Nossa Senhora da Assunção (SP) e Mestrado em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (MS). Entre as atividades que atua, estão a de professor da Secretaria de Educação do Amazonas e colaborador de Licenciatura Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável.

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