Quando os Munduruku reuniram-se com o novo presidente interino da FUNAI (Flávio Chiarelli Vicente de Azevedo, que ficou no cargo entre 2014 e 2015) fizeram um convite para que participasse da próxima Assembleia da etnia, o que ele aceitou. No entanto, enviou um substituto, o que foi visto como uma quebra da sua primeira promessa. Os Munduruku recusaram-se a falar com o substituto, informando que só iram conversar com alguém que tenha o poder de tomar decisões.

Os Munduruku então decidiram não esperar o governo criar e demarcar sua Terra Indígena, e em outubro de 2014 começaram um projeto de “autodemarcação”, cortando uma trilha ao redor do perímetro da área e colocando placas.

A tomada de decisão dos Munduruku é amplamente democrática, com todos os membros da comunidade (incluindo mulheres e adolescentes) participando de longas discussões, seguidas por um consenso entre os líderes de cada aldeia. Esse costume contrasta com outros grupos indígenas que possuam uma hierarquia centralizadora, tais como o Kayapó. Uma vez que os Munduruku tomam uma decisão é menos provável de ser revertido do que para outros grupos.

É relevante que os Munduruku enfatizam seu passado bélico, quando eles eram temidos por tribos vizinhas por cortar as cabeças dos seus inimigos e exibi-las em varas. Uma representação de uma cabeça deste tipo é destaque nas placas colocadas ao redor da TI Sawré Muybu como parte da autodemarcação.

Os Munduruku estão entre os mais assertivos dos povos indígenas do Brasil em confrontar diretamente as autoridades governamentais. Em março de 2013 começou a “Operação Tapajós” com 80 biólogos e pessoal de apoio, acompanhados pela Força Nacional (Força Nacional de Segurança) [1]. Em junho de 2013 os Munduruku capturaram três biólogos que estavam coletando dados para o EIA e que haviam entrado na sua área sem a permissão dos Mundurukus [2]. Isto resultou em uma ordem da presidente Dilma Rousseff para os soldados armados da Força Nacional acompanharem todos os pesquisadores que trabalhavam na preparação do EIA, desse modo aumentando a tensão e desconfiança entre indígenas e não-indígenas moradores da área de Tapajós.

Em junho de 2013, os indígenas expulsaram da TI Munduruku 25 pesquisadores da equipe do EIA, libertando-os após a chegada de um avião carregado de tropas da Força Nacional [3]. A fim de chamar a atenção para os planos do Tapajós, um grupo de guerreiros munduruku viajou quase 1.000 km até Altamira, no Rio Xingu, onde eles eram o grupo mais forte para invadir o local de construção da barragem de Belo Monte, ocupando o local durante 17 dias, entre maio e junho de 2013 (e.g., [4]).

Em novembro de 2014, os Munduruku ocuparam os escritórios da FUNAI em Itaituba e impediram o pessoal de sair até que uma delegação de alto nível fosse trazida de Brasília para discutir a proposta TI Sawré Muybu [5].

O documento da FUNAI propondo a TI Sawré Muybu conclui:

“A conclusão do procedimento da TI Sawré Muybu constituiria uma garantia fundamental de sobrevivência aos povos indígenas que ali vivem e a sua manutenção enquanto culturas diferenciadas na região do rio Tapajós. Tendo em vista que a sobrevivência e a continuidade da população indígena dependem da sustentabilidade do uso e preservação dos recursos naturais ali existentes, a TI Sawré Muybu contempla os fatores apontados no estudo ambiental como imprescindíveis para que a cultura e as atividades produtivas dos indígenas possam desenvolver-se ao longo dos anos sem ameaças à sua integridade. A terra indígena, como um todo, é imprescindível à preservação ambiental, visto que abrange os principais nichos de recursos utilizados pelos indígenas para prover sua sustentabilidade e possibilita o usufruto exclusivo aos índios sobre esses recursos, que são frequentemente ameaçados pela ação de não-indígenas …” ([6], p. 189-190).  

O contraste com o EIA é evidente. No entanto, não é a FUNAI, nem mesmo o Ministério do Meio Ambiente, que decide o rumo dos acontecimentos na prática. É o Ministério das Minas e Energia. Uma série de reportagens por Ana Aranha e Jessica Mota mostra isto claramente [7-10].  

NOTAS

[1] Fonseca, B. 2014. Entenda como se desenvolveu a disputa pelo futuro da bacia do Tapajós, um dos últimos grandes rios da Amazônia de potencial hidrelétrico inexplorado. Publica, 11 de dezembro de 2014. http://apublica.org/linha-do-tempo-decadas-de-luta-pelo-tapajos/

[2] Carvalho, C. 2013. Biólogos são sequestrados por índios munduruku no Pará. Ação ocorreu em Itaituba, na região da Bacia de Tapajós, onde estão espalhadas 118 aldeias. O Globo, 21 de junho de 2013. http://oglobo.globo.com/economia/biologos-sao-sequestrados-por-indios-mundurukus-no-para-8780653

[3] Sposati, R. 2013. Munduruku expulsam pesquisadores de suas terras. Dilma manda a Força Nacional. Língua Ferina, 04 de junho de 2013. http://faor.org.br/?noticiaId=1209

[4] Xingu Vivo. 2013. Belo Monte: canteiro de obras ocupado, contra as hidrelétricas na Amazônia. Fórum da Amazônia Oriental – FAOR, 02 de maio de 2013. http://faor.org.br/?noticiaId=1075

[5] Aranha, A. & J. Mota. 2014. Um aviso à Funai. Publica Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo, 29 de novembro de 2014. http://apublica.org/2014/11/um-aviso-a-funai/

[6] Seixas, B.C.S., P.R. de Almeida e Castro & I.N.R. Ferreira. 2013. Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Sawré Muybu (Pimental)/PA. Setembro de 2013. Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Brasília, DF. 194 p. Disponível em: http://apublica.org/2014/12/relatorio-funai-determina-que-terra-e-dos-munduruku/

[7] Aranha, A. & J. Mota. 2014. Relatório da Funai determina que terra é dos Munduruku. Publica Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo, 11 de dezembro de 2014. http://apublica.org/2014/12/relatorio-funai-determina-que-terra-e-dos-munduruku/

[8] Aranha, A. & J. Mota. 2014. A batalha pela fronteira Munduruku. Publica Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo, 11 de dezembro de 2014. http://apublica.org/2014/12/batalha-pela-fronteira-munduruku/

[9] Aranha, A. & J. Mota. 2015. Hidrelétricas do rio Tapajós devem desalojar mais de 2500 ribeirinhos. Agência Pública, apublica.org, 09/02/2015. http://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2015/02/09/hidreletricas-do-rio-tapajos-devem-desalojar-mais-de-2500-ribeirinhos.htm

[10] Isto é uma tradução parcial de Fearnside, P.M. 2015. Brazil’s São Luiz do Tapajós Dam: The art of cosmetic environmental impact assessments. Water Alternatives 8(3): 373-396, disponível aqui. As pesquisas do autor são financiadas por: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processos nº305880/2007-1, nº304020/2010-9, nº573810/2008-7, nº575853/2008-5), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (processo nº 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03). O Greenpeace custeou despesas de viagem no Tapajós [11]. M.A. dos Santos Junior fez os mapas. N. Hamada e P.M.L.A. Graça contribuíram comentários. Agradeço especialmente aos Mundurukus.

[11] Fearnside, P.M. 2015. Impactos nas comunidades indígenas e tradicionais. p. 19-29 In: R. Nitta & L.N. Naka (eds.) Barragens do rio Tapajós: Uma avaliação crítica do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) do Aproveitamento Hidrelétrico São Luiz do Tapajós. Greenpeace Brasil, São Paulo, SP. 99 p. http://greenpeace.org.br/tapajos/docs/analise-eia-rima.pdf 

 

PHILIP M. FEARNSIDE

Leia os artigos da série:

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 1 – Resumo da série

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 2 – O processo de licenciamento na teoria

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 3 – O processo de licenciamento na prática

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 4 – O deslocamento de populações indígenas

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 5 – O direito de “consulta” dos povos indígenas

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 6 – O bloqueio do reconhecimento da terra indígena

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 7 – A barragem e o enfraquecimento da FUNAI

 

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link.

 

NOTA

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