Infelizmente, na prática, os passos na sequência estabelecida por lei têm sido abreviados em diversos ocasiões por reguladores, sob pressão política, e as violações das proteções legais acabam sendo permitidas a permanecer como fatos consumados inalterados, por meio de decisões judiciais que invocam disposições de “suspensão de segurança” decretadas durante a ditadura militar (1964-1985), mas ainda presentes na legislação do País [1]. As “suspensões de segurança” já foram usadas 12 vezes para derrubar liminares contra as barragens do rio Tapajós, ou seja, ainda mais que os oito usos no caso da represa de Belo Monte [2].   

Os EIAs no Brasil têm evoluído constantemente ao longo dos anos, desde que esses documentos se tornaram obrigatórios em 1986, com as exigências da agência reguladora resultando em relatórios com maiores detalhes, adicionando tópicos e padronizando a organização [3]. No entanto, os problemas fundamentais que afetam a objetividade dos EIAs permanecem inalterados: os relatórios são preparados por consultorias contratadas pelos proponentes do projeto, e, antes dos relatórios serem apresentados à autoridade de licenciamento, seu conteúdo é sujeito tanto à habilitação explícita pelos proponentes como ao efeito mais sutil da autocensura pelos autores e editores individuais, contratados pela empresa de consultoria. Produzir EIAs é uma atividade comercial onde a aprovação rápida e segura é a chave para o avanço profissional e para os contratos futuros.

Outra característica fundamental que não evoluiu é o momento do EIA dentro do cronograma do processo geral de planejamento e tomada de decisões. Na prática (ao contrário do que é estabelecido juridicamente), as decisões sobre os grandes projetos de infraestrutura são feitas por um grupo pequeno de autoridades de alto nível antes de existir qualquer estudo sobre os impactos ambientais e sociais, e antes de qualquer informação oriunda das populações locais. Os processos subsequentes de produzir o EIA, realizar as audiências públicas, etc., servem para legalizar a decisão inicial, sujeito apenas a ajustes nos detalhes de execução e mitigação, mas não sujeito a questionamentos da sabedoria do projeto global (ver exemplos em [4-8]).

Os direitos humanos representam uma área com presença crescente em EIAs no Brasil [9, 10] e em todo o mundo (Boele & Crispin, 2013). O mais importante para que a inclusão desse tema nos EIAs tenha efeitos concretos é a interpretação do “Consentimento Livre, Prévio e Informado”, um conceito que tem sido objeto de debate entre as diferentes agências e especialistas [11]. A existência desse desacordo fornece uma desculpa conveniente para que atores como o governo brasileiro e a indústria de EIAs no Brasil ignoraram a obrigação de obter Consentimento Livre, Prévio e Informado, com base na justificativa de estar esperando que as “controvérsias” sejam resolvidas. São evidentes os paralelos históricos com as supostas controvérsias que foram usadas para evitar ação governamental sobre questões tais como a provocação de câncer pelo fumo do cigarro, a depleção do ozônio na estratosfera e o aquecimento global [12].

Todos os problemas mencionados acima são ilustrados pelo EIA da usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. A falta de objetividade nos EIAs de barragens brasileiras é evidente a partir de casos anteriores, tais como Belo Monte [13] e as barragens do rio Madeira [4, 6]. Cada barragem tem diferentes aspectos que se destacam. No EIA de São Luiz do Tapajós, o tratamento dos impactos socioeconômicos é uma área-chave, particularmente os impactos sobre povos indígenas e moradores ribeirinhos tradicionais. Neste caso, os impactos sobre os povos indígenas incluem o deslocamento de população, o bloqueio da criação de novas áreas indígenas em todo o Brasil, a perda de peixes e outros recursos do rio e a perda de locais sagrados. As lições que podem ser aprendidas a partir do caso de São Luiz do Tapajós têm valor para melhorar os processos de decisão, tanto no Brasil quanto em outros países onde existem desafios semelhantes [14].

 

NOTAS

[1] Fearnside, P.M. 2015. Amazon dams and waterways: Brazil’s Tapajós Basin plans. Ambio 44: 426-439. doi: 10.1007/s13280-015-0642-z

[2] Palmquist, H. 2014. Usina Teles Pires: Justiça ordena parar e governo federal libera operação, com base em suspensão de segurança. Ponte, 27/11/14. http://ponte.org/usina-teles-pires-justica-ordena-parar-e-governo-federal-libera-operacao-com-base-em-suspensao-de-seguranca/

[3] Landim, S.N.T. & L.E. Sánchez. 2012. The contents and scope of environmental impact statements: How do they evolve over time? Impact Assessment and Project Appraisal 30(4): 217-228. doi: 10.1080/14615517.2012.746828

[4] Fearnside, P.M. 2007. Brazil’s Cuiabá-Santarém (BR-163) Highway: The environmental cost of paving a soybean corridor through the Amazon. Environmental Management 39(5): 601-614. doi: 10.1007/s00267-006-0149-2

[5] Fearnside, P.M. 2013. Decision-making on Amazon dams: Politics trumps uncertainty in the Madeira River sediments controversy. Water Alternatives 6(2): 313-325. http://www.water-alternatives.org/index.php/alldoc/articles/vol6/v6issue2/218-a6-2-15/file

[6] Fearnside, P.M. 2014. Impacts of Brazil’s Madeira River dams: Unlearned lessons for hydroelectric development in Amazonia. Environmental Science & Policy 38: 164-172. doi: 10.1016/j.envsci.2013.11.004.

[7] Fearnside, P.M. 2014. Brazil’s Madeira River dams: A setback for environmental policy in Amazonian development. Water Alternatives 7(1): 156-169. http://www.water-alternatives.org/index.php/alldoc/articles/vol7/v7issue1/244-a7-1-15/file

[8] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia central. Novos Cadernos NAEA 12(1): 19-50.

[9] Hanna, P. & F. Vanclay. 2013. Human rights, Indigenous peoples and the concept of Free, Prior and Informed Consent. Impact Assessment and Project Appraisal 31(2): 146-157. doi: 10.1080/14615517.2013.780373

[10] Hanna, P.; F. Vanclay; E.J. Langdon & J. Arts. 2014. Improving the effectiveness of impact assessment pertaining to Indigenous peoples in the Brazilian environmental licensing procedure. Environmental Impact Assessment Review 46(1): 58-67. doi: 10.1016/j.eiar.2014.01.005

[11] Kemp, D. & F. Vanclay. 2013. Human rights and impact assessment: Clarifying the connections in practice. Impact Assessment and Project Appraisal 31(2): 86-96. doi: 10.1080/14615517.2013.782978

[12] Oreskes, N. & E.M. Conway. 2010. Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming. Bloomsbury Press, New York, E.U.A. 357 pp.

[13] Santos, S.B.M. & F.M. Hernandez (eds.). 2009. Painel de Especialistas: Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte. Painel de Especialistas sobre a Hidrelétrica de Belo Monte, Belém, Pará. 230 p. http://www.xinguvivo.org.br/wp-content/uploads/2010/10/Belo_Monte_Painel_especialistas_EIA.pdf (acessado 15 de junho de 2015).

[14] Isto é uma tradução parcial de Fearnside, P.M. 2015. Brazil’s São Luiz do Tapajós Dam: The art of cosmetic environmental impact assessments. Water Alternatives 8(3): 373-396, disponível aqui. As pesquisas do autor são financiadas por: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processos nº305880/2007-1, nº304020/2010-9, nº573810/2008-7, nº575853/2008-5), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (processo nº 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03). O Greenpeace custeou despesas de viagem no Tapajós [15]. M.A. dos Santos Junior fez os mapas. N. Hamada e P.M.L.A. Graça contribuíram comentários. Agradeço especialmente aos Mundurukus.

[15] Fearnside, P.M. 2015. Impactos nas comunidades indígenas e tradicionais. p. 19-29 In: R. Nitta & L.N. Naka (eds.) Barragens do rio Tapajós: Uma avaliação crítica do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) do Aproveitamento Hidrelétrico São Luiz do Tapajós. Greenpeace Brasil, São Paulo, SP. 99 p. http://greenpeace.org.br/tapajos/docs/analise-eia-rima.pdf.

 

  • PHILIP  M. FEARNSIDE

 

Leia o primeiro artigo da série: 

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 1 – Resumo da série

A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 2 – O processo de licenciamento na teoria

 

 

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link.  

 

http://amazoniareal.com.br/a-hidreletrica-de-sao-luiz-do-tapajos-3-o-processo-de-licenciamento-na-pratica/