A BR-080 foi projetada como parte do Plano de Integração Nacional, criado em 1970, no governo Médici – auge da ditadura militar. Era o tempo das obras faraônicas, como a Transamazônica e a Ponte Rio Niterói. Pelo projeto original, megalomaníaco, a BR-080 ligaria Brasília a São Gabriel da Cachoeira (AM), na fronteira com a Colômbia, numa extensão 3.250 quilômetros. Hoje, a parte construída vai da capital federal a São Miguel do Araguaia (GO). Pouco mais de 500 quilômetros. O trecho implantado no Mato Grosso, entre Matupá e Alô Brasil, com extensão de 470 quilômetros, foi transformado numa estrada estadual, a MT-322. Por falta de recursos, ou por não ser considerada prioritária, ainda não foi asfaltada, embora seja uma alternativa ao escoamento de grãos e gado para a região Norte, pela BR-158.
A estrada estadual desafia e oferece aos viajantes muitas curvas, areais, poeira, trepidação e pontes traiçoeiras. No trecho mais crítico, de 80 quilômetros, cortando o Parque Indígena do Xingu, as pontes sobre riachos são feitas de toras de árvore, o que tem provocado seguidos acidentes, segundo relatos dos motoristas que se aventuram nessa rota em meio à Floresta Amazônica.
Na localidade do Jarinã, distante 110 quilômetros de Matupa, há buracos na lateral de um bueiro capazes de capotar carros. Paro no boteco do povoado para buscar informações. O proprietário afirma que aquilo “não é nada”.
– Tem uma ponte logo adiante onde já caíram vários carros. Eu cai lá no meu Fenemê (FNM) em 84, transportando adubo. Acontece que tem uma curva em cima do pé da ponte. Fiquei oito dias com o caminhão lá. Uns tratores tiraram – relata o dono do bar, que prefere não se identificar.
– Depois, aperseguem [sic] a gente.
Mas prossegue nos seus relatos:
– Faz um ano, caiu um Palio ali. Caiu de manhã. Quando o dono voltou de tarde, tinham levado os pneus. Na mesma semana, caiu uma F-1000. Foram procurar recurso. Quando voltaram, tinham retirado o som do carro. Uns 15 dias atrás, caiu um caminhão Mercedes carregado de lascas (de madeira). Veio soldar o chassi. Quando voltou, tinham tirado as lascas dele. Aqui, anoiteceu, não amanhece.
A ponte está realmente localizada logo após uma longa reta, seguida de uma curva à esquerda. Como é de madeira, estreita, sem proteção na cabeceira, se o motorista se descuida, cai direto no riacho. Ainda há marcas de resgate de carros nas margens.
Pontes de toras
Muitos quilômetros adiante, há o último bar/restaurante antes de São José do Xingu. O seu Juvenal serve um prato feito de muita “sustância”, com ovo frito, salada de alface e tomate. Ele ri, quando falo das “péssimas” condições da estrada e das pontes.
– Você não viu nada. Toma cuidado com as pontes dentro da reserva, são muito perigosas. E cuidado para não perder a balsa dos índios. Eles fecham às cinco da tarde.
Motoristas que também almoçavam alertam sobre a travessia na balsa. O serviço é administrado pelos indígenas do Parque Xingu. O parque nacional, idealizado pelos irmãos Villas Boas, foi criado em 1961 com uma área bem maior, mas conta hoje com 27 mil quilômetros quadrados. Situado numa zona de transição entre o cerrado e a Floresta Amazônica, abriga cerca de 5 mil índios de 15 etnias.
– Eles cobram quanto querem. Já peguei R$ 200,00 para passar a carreta – conta um caminhoneiro.
Almoço concluído, um cafezinho e a estrada. Poucos quilômetros adiante, uma ponte de tábuas sobre toras de árvore, com parte da madeira podre, tem a largura exata do eixo dos caminhões carregados com dezenas de toneladas. Se errarem a rota por 30 centímetros, caem no riacho. A estrada de terra batida é boa. Pelo caminho, há trechos de matas entrecortadas por campos e regiões alagadas.
O carro de passeio segue a cerca de 70 km/h, numa reta longa. A minha preocupação é com as pontes, mas elas não aparecem. De repente, surge um pontilhão à frente. Como não há sinalização e a ponte está no nível da estrada, preciso frear bruscamente. Os pneus arrastam na terra solta, e o carro não para. Percebo que é melhor tirar o pé do freio. Com cerca de 10 metros, o pontilhão é formado por cinco toras de árvores em sentido longitudinal, um pouco afastadas uma das outras. Pela posição do carro, decido alinhar a roda direita com a tora da extremidade e a roda esquerda na tora do meio. O carro passa numa velocidade acima do recomendável, mas sai intacto do outro lado.
Passado o susto, aguardo a passagem de outros carros, posicionado para fazer fotos e vídeos. O primeiro carro também chega rapidamente, freia e tenta alinhar as rodas com as toras. Percebo que a roda esquerda vai cair num vão entre duas toras. Instintivamente, grito:
– Para, para, para!
O motorista para, engata uma ré e logo avança na direção correta, passando pelo pontilhão. Uma foto perdida, mas um acidente a menos. Registro a passagem de caminhões carregados, ônibus cheio de passageiros. Uma roda do ônibus afunda num vão, mas é larga o suficiente para evitar o tombamento. Um caminhoneiro brinca, dizendo que já passou ali à noite.
Mais alguns quilômetros e surge a segunda ponte. Pode ser avistada a uma distância maior que a primeira, mas as frestas entre as toras chegam a 30 centímetros. Não parece possível que o carro passe por ali. Desço, pego uma vara verde e meço a distância entre as rodas dianteiras. Depois, procuro duas toras que tenham a mesma distância. Outro motorista para e ajuda, fazendo sinais com a mão do outro lado do pontilhão:
– Para, para! Mais pra esquerda, endireita, agora vem, vem!
Faço mais fotos e vídeos. Um caminhão de porte médio também deixa uma roda entrar num vão. O veiculo fica um pouco ladeado, mas faz a travessia. Vários motoristas falam que já viram muito acidente naquele trecho. É preciso chamar um trator para retirar o carro. A maioria dos casos fica sem registro policial. O boletim de ocorrência só ocorre quando há vítima fatal ou algum prejuízo de grande monta, por causa do seguro.
A Secretaria de Infraestrutura do Mato Grosso afirmou que há um cronograma de obras de manutenção e substituição de pontes para casos considerados de maior urgência, mas não informou um prazo para a execução dos serviços.
A travessia do Rio Xingu acontece a poucos minutos do encerramento do serviço da balsa. Dura 15 minutos. Poucos quilômetros adiante, numa aldeia indígena, a cobrança é feita numa guarita: R$ 80,00. Na travessia do Rio Tocantins, muitos quilômetros adiante, o preço foi de R$ 20,00, mesmo com mais conforto e num trajeto maior.
Após a travessia, a estrada fica pior, com muita areia solta. No período das chuvas, aquele trecho fica intransitável. Chego a São José do Xingu à noite, mais aliviado do que cansado.
Buracos na ponte
Na manhã seguinte, vou até o povoado Bituca, ainda pela MT-322, e dobro à esquerda para pegar a MT-430, também sem pavimentação, em direção ao município de Confresa. Poucos quilômetros adiante, surge talvez a ponte mais perigosa. Tem cerca de 10 metros de extensão, com cinco buracos enormes. As rodas dos carros de passeio cruzam no limite das crateras. Vinte centímetros mais para o lado e afundariam. A viga lateral do lado esquerdo, para quem segue para Confresa, está totalmente rompida.
Após registrar em fotos e vídeos a passagem de vários caminhões, peço para um deles parar e me conceder uma entrevista. Ele e o colega que vem em comboio descem para conversar.
O motorista Adilson Pereira dos Santos, 32 anos, de Confresa, fala que aquele é o único caminho possível para quem segue para o norte do Mato Grosso. Ele caminha sobre a ponte e mostra os perigos.
– Olha aí, tudo quebrado! Tem outra que já caiu caminhão. A gente se arrisca aqui todo dia. De noite, tem que passar devagarzinho, porque, se errar o pneu aqui, quebra tudo. Aqui, não tá firmando mais nada. Aqui o cara passa arriscando a vida. Olha, pau tudo podre! Se cai, a culpa é do motorista.
Mostro um pedaço de madeira solta sobre um buraco. Ele reage:
– Isso aqui é brincadeira. Um motoqueiro cai aqui e morre. E o governo não tá nem aí, ó!
Afirma que ali é município de São José do Xingu. Pergunto o peso da carga que a carreta transporta.
– Isso é 18 mais 30 (trata-se de uma bitrem), quase 50 toneladas. Carrega boi. Mas aqui é lavoura.
O paraibano Josenildo Barbosa dos Santos, de 57 anos, diz que a maioria das cargas é de soja e milho, muitas com até 60 toneladas. Fala dos acidentes:
– De vez em quando, acontece. A ponte não resiste, cai uma parte. Fecha o trânsito, não passa ninguém. Mais de 20 caminhoneiros parados três dias, pegando galinha dos vizinhos pra comer, até chegar a máquina e a caçamba pra fazer a obra. Tem colega que tá fora da empresa porque levou tranco quando a ponte caiu. Afeta a coluna do camarada. Teve caso em que morreram 15, 16 bois na carreta. Ficaram três dias parado, um sobre o outro, não tem como socorrer.
Josenildo tem a sua explicação para tanto descaso dos governos.
– Mas sabe o que é isso? Eu sou do Nordeste, uma região que tem muita estrada boa. Nordeste não tem riqueza como aqui, mas acontece que lá Tem muito voto. As cidades são muito próximas uma da outra, 15, 30 quilômetros. Tudo é asfaltado, uma maravilha, porque tem muita gente para votar. Aí, o governo investe só no lado de lá. Aqui tem muito boi, mas boi não vota, o fazendeiro não reside na fazenda, os empregados são de fora. O governo, na hipocrisia do voto, só faz obra onde tem muito voto. Aqui não tem, aí fica desprezado, abandonado. As estradas ficam assim.
A Secretaria de Infraestrutura afirma que está executando obras nesse trecho em parceria com prefeituras e produtores da região. Já foram pavimentados 29 quilômetros e outros 48 estão em fase de terraplanagem.
A utilização de pontes de madeira – muitas delas feitas de forma improvisada e em péssimo estado de conservação, como registramos nas Mts 430, 322 e 320 – não é uma exceção no estado. Das 2.485 pontes existentes nas rodovias estaduais, 2.131 são de madeira – ou seja, 85% do total.
O Governo do Mato Grosso aguarda a liberação de R$ 500 milhões da União para investir na construção de pontes nas nove regiões do estado. Quando o dinheiro for aprovado, serão atendidas as estruturas consideradas prioritárias. A Sinfra informa que não há projetos para substituir todas as pontes de madeiras por outras de concreto. “Muitas estruturas estão em bom estado de conservação, necessitando apenas de reparos”, diz nota da secretaria.
Está nos planos do governo a construção de 23 novas pontes de concreto. Dentre elas, a Transpantaneira e a ponte sobre o rio Aripuanã, com 350 metros, na rodovia MT-208, em Colniza. Considerada a maior ponte de madeira da América Latina, está em fase final de construção. Restarão 2.108 estruturas de madeira.
Por: Lucio Vaz e Rubens Amador Filho
Fonte: Congresso em Foco
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